Em artigo inserto na publicação "Doutrina edição comemorativa dos 35 anos do STJ", o min. Washington Bolívar de Brito reforça a necessidade de debate mais apurado sobre o tema da inteligência artificial, traçando um panorama das discussões e regulações nos principais centros mundiais.
Isto o faz não sem antes passar pelos “motivos dos temores”, especialmente atrelados à visão dos próprios especialistas em IA, à exposição de dados pessoais, aos riscos para a estabilidade financeira mundial, assim como à contínua demanda em relação ao meio ambiente - com potencial lesivo evidente.
Lançando as atenções para o Poder Judiciário, o texto assim destaca, com espeque nas lições de Antônio Luis Machado Neto:
“A substituição de juízes por Chatbots generativos Superinteligentes e o progresso do Judiciário obtido com a supremacia dos princípios processuais da celeridade e economia sobre o princípio fundamental da dignidade humana, além de insuperável inversão de valores, constituiria paradoxo tecnológico incompatível com todas as Declarações de Direitos estabelecidas solenemente pela Humanidade. A substituição do juiz natural por Chatbot-juiz, mesmo que tenha os atributos essenciais de imparcialidade e independência, exigidos de qualquer juiz, é incompatível com a garantia de um julgamento justo, porquanto ainda lhe faltariam os sentimentos normais de um ser humano, incapacitando-o de utilizar, dentre outros, o método jurídico como compreensão.”
Não se pode deixar de notar que a reflexão acima é um alento diante das insistentes considerações acerca da disrupção e da inevitabilidade, tal como se o desenvolvimento tecnológico fosse o único equivalente possível de progresso.
Não é excesso lembrar que as aplicações possíveis no âmbito do Poder Judiciário possuem diversas vertentes, algumas com concreto potencial de contribuir para a melhoria dos serviços públicos judiciários.
Outras, contudo, seguem por linhas que merecem mais profundas reflexões, como, por exemplo, aquelas que preconizam as técnicas de processamento de linguagem natural (PLN) com emprego de algoritmo de aprendizagem sob petições iniciais e documentos comprobatórios ou, ainda, a automação para minutar sentenças e realizar “triagem” de processos (vide Painel de Projetos de IA no Poder Judiciário).
O certo é que a conclusão exposta no texto citado ainda traz como pano de fundo a precisa concepção de que é a pessoa humana, com suas faculdades, que realiza a Justiça. “O que é um ‘julgamento justo’? Questiona.
Pense o leitor, como exemplo, na longa jornada evolutiva para se atingir a racionalidade ou mesmo para alcançar o entendimento, ainda em curso, acerca das múltiplas inteligências. E o árduo caminho para lidar com os instintos e as emoções, abordando-os de maneiras diversas – situando-os igualmente na ordem natural da vida.
Quanto à linguagem, não é necessário muito esforço para refletir como laboramos, por muitos e muitos anos, em favor do melhor entendimento de nós mesmos e dos outros, descrevendo realidades, comportamentos, contando histórias, registrando eventos importantes.
Pense ainda no custo pessoal, relacional e cultural para os nossos antepassados regimentarem elementos vitais associados à ética e à boa vida.
No Direito, especificamente, o que precisamos vivenciar e sofrer para entender a importância de ouvir uma parte acerca de uma acusação que lhe é feita, possibilitar-lhe a defesa por todos os meios disponíveis ou mesmo de ser esta parte julgada por um juiz imparcial? E quanto à dignidade da pessoa humana? Duas grandes guerras, em curto período da história, escancararam como somos vulneráveis e, enquanto humanos, como precisamos de proteção.
Desenvolvemos, ainda, uma série de mecanismos para resolução dos conflitos inerentes à condição humana, incluindo a própria atividade judicante.
Quantas pessoas perderam a vida por todas estas coisas? Um sem número de anônimos e outros considerados pilares culturais e espirituais como Sócrates, Jesus, Martin Luther King Junior, Ghandi.
Aparentemente, todo mundo sabe disso. Acontece que os já referidos mantras da disrupção e inevitabilidade, associados à inteligência artificial e ao desenvolvimento das máquinas, estão sendo reproduzidos massivamente – muitas vezes em tom que coloca a alma humana e suas faculdades em plano remoto.
A obstinação em querer chegar a algum lugar onde reina a superinteligência artificial, com toda sua suposta eficiência e otimização, pode nos fazer esquecer de onde vieram os pilares que caracterizam a vida humana e, em espécie, o próprio Estado Democrático de Direito.
Neste sentido, para ilustração, cabe propor mais um exercício – um tanto lúdico é claro - no qual as regras referentes à apreciação das provas no Processo Civil são alteradas. Vejamos:
Art. 370. Caberá ao juiz, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Art. 370. Caberá à inteligência artificial, de ofício ou a requerimento da parte, determinar as provas necessárias ao julgamento do mérito.
Ou ainda:
Art. 371. O juiz apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Art. 371. A inteligência artificial apreciará a prova constante dos autos, independentemente do sujeito que a tiver promovido, e indicará na decisão as razões da formação de seu convencimento.
Talvez tenhamos que mudar o verbo, não mais sendo cabível “apreciar”. Talvez, algo equivalente a “processar dados”.
Feito o exercício, cabe questionar: Por que não agir com prudência (faculdade humana) quanto ao uso da IA? Por que não cuidar dos valores humanos em primeiro plano, como prioridade? Por que antes não assegurar, dentro do máximo possível, a segurança jurídica? Por que não revisitar as humanidades para relembrar o que está efetivamente em jogo?
É preciso frisar que a legitimidade do Poder Judiciário e das suas decisões emana deste esteio valorativo, vinculado aos princípios e garantias que resultaram do caminho evolutivo que trilhamos como humanidade e da atividade direta de pessoas.
A inteligência artificial não possui tal esteio, sendo um manifesto acessório. Em outras palavras, ela não possui o lastro orgânico e espiritual da evolução humana, marcado pela superação de desafios existenciais. Ela é apenas mais um fruto da ação humana e deve ser colocada em seu lugar (como acessório) o quanto antes, isto é, enquanto o Poder Judiciário não tiver sua legitimidade seriamente questionada devido ao uso substitutivo da IA em detrimento de atividades propriamente humanas.
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INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL - CONTROLAR OU PERECER, disponível em Revista 35anos - 19.08.2024 - Versão Final Eletrônica em 165.indd (stj.jus.br).
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