No que concerne ao contexto jurídico brasileiro, o instituto do juiz das garantias – introduzido pela lei 13.964/19, conhecida como "Pacote Anticrime" –, representa(ria) uma inovação significativa no ordenamento jurídico brasileiro, especialmente no campo do Direito Penal e Processual Penal. Será? Deveria!
Objetivamente, a figura do juiz das garantias foi criada com o fito de assegurar maior imparcialidade e equidade na condução dos processos penais, separando as funções de quem conduz a fase investigativa daquelas de quem julgará o mérito da causa.
Na prática, a ideia de dividir as funções judiciais entre investigação e julgamento não é nova e está presente em outros ordenamentos jurídicos, como no sistema francês, por exemplo.
Por aqui (no Brasil), a proposta visa garantir que aquele juiz que decidirá sobre a culpabilidade do acusado não seja o mesmo que autorizou medidas cautelares durante a investigação, como prisões temporárias, interceptações telefônicas ou busca e apreensão.
É exatamente essa separação, o sentido nuclear do juiz das garantias: buscar minimizar possíveis preconceitos formados durante a fase investigativa e contaminações ideológicas no fim de assegurar um julgamento mais justo àqueles atirados ao “mar revolto” do Processo Penal.
E por falar em CPP, o art. 3º-A do Código de Processo Penal, incluído pela lei 13.964/19, traz que:
“Art. 3º-A. O processo penal terá estrutura acusatória, vedadas a iniciativa do juiz na fase de investigação e a substituição da atuação probatória do órgão de acusação”.
Essa definição traz uma nova perspectiva ao papel do juiz, que deixa de ser apenas um árbitro passivo e assume uma postura mais ativa na proteção dos direitos fundamentais.
Em texto anterior à implementação do “Pacote Anticrime”, o jurista Jacinto Nelson de Miranda Coutinho já ensinava que:
“Há dois sistemas processuais penais fundamentais: o inquisitório e o acusatório. O primeiro surgiu no seio da Igreja Católica em 1215, no IV Concílio de Latrão, sob o papado de Inocêncio III. O segundo nasceu na Inglaterra, sob o reinado de Henrique II, a partir da instituição do trial by jury (1166). A diferença essencial entre ambos reside na gestão da prova. Quando a função de levar provas ao processo é do juiz (por exemplo, artigo 156 do CPP vigente), o sistema é inquisitório. Quando é das partes (por exemplo, art. 4º do PLS 156/09), o sistema é acusatório”.
É que quando se fala em sistema penal brasileiro, os operadores do Direito se vêem às margens de um rio, onde a realidade pode mudar a depender de quem entrar na água e resolver nadar; uns se afogam!
Ponto em que o doutrinador Jacinto Nelson de Miranda Coutinho já expressava preocupações ao dizer – antes da aprovação da lei –, que:
“Reformas pontuais não são suficientes. Uma mudança ampla é necessária, a fim de que nela se incluam todos os aspectos pertinentes à reformulação do sistema. O primeiro passo talvez seja uma mudança cultural, pois de nada adiantará uma reforma legislativa completa se os ‘aplicadores’ da lei (mormente os juízes) mantiverem a mesma mentalidade (inquisitória) de outrora”.
Eis o paradoxo apontado acima pelo mestre dos mestres, pois embora nossa estrutura penal seja acusatória, ela integra um sistema de mentalidade e ações inquisitórias onde o “juiz é o dono do processo”.
É o que Luigi Ferrajoli, destacado jurista italiano, complementa sobre as características do sistema inquisitivo:
"Uma confiança tendencialmente ilimitada na bondade do poder e na sua capacidade de alcançar a verdade, ou seja, tal sistema confia, não somente na verdade, como também na tutela do inocente às presumidas virtudes do poder que julga."
Frisa-se tamanha preocupação, pois em termos de democracia processual, tanto a estrutura como o sistema deveriam ser acusatórios de fato, direito e “papel passado”; já diriam os antigos. Uma redundância sem graça, mas necessariamente escrita aqui.
Isso, porque na prática a mentalidade de muitos operadores do Direito é inquisitiva. Basta observar o passado recente, onde alguns que aplaudiam ações de um juiz federal do Paraná, hoje se insurgem com o mesmo tipo de postura de um ministro da suprema corte.
O Juiz das Garantias precisa ser tratado com seriedade, mormente ao equilíbrio entre garantir os direitos fundamentais do investigado e permitir a condução adequada das investigações criminais por quem deve fazê-la; sem passionalidades, egos e vaidades.
Afinal, espera-se que o magistrado responsável pelo julgamento não tenha participado da fase investigativa. E assim, portanto, que suas veneráveis decisões sejam imparciais, baseadas exclusivamente nas provas produzidas durante o processo; tanto pela acusação, como pela defesa em sede de investigação defensiva.
Deste modo, tal instituto representa uma importante página a ser virada no Direito Processual Penal brasileiro, alinhando-se às melhores práticas internacionais de proteção aos direitos fundamentais.
Uma vez bem (e para o Bem) implementado, o juiz das garantias pode contribuir para um sistema com mais justiça e menos sensação de “justiçamento” que nos remete a Mário Quintana, quando o poeta gaúcho diz que:
“No fundo, não há bons nem maus. Há apenas os que sentem prazer em fazer o bem e os que sentem prazer em fazer o mal. Tudo é volúpia...” (QUINTANA. Mário)
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