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Consensualismo e Dispute Boards: O que a experiência recente da ANTT pode sinalizar de tendência para o futuro?

A regulamentação da ANTT sobre Dispute Boards reforça a resolução ágil de disputas em concessões, visando reduzir judicialização e paralisar obras.

29/8/2024

Em artigo anterior publicado por estas autoras1, exploramos e analisamos os Dispute Boards (DBs) como um novo instrumento de resolução de disputas no contexto brasileiro, avaliando sua eficácia comparativa com outros métodos consensuais e tradicionais, bem como seus impactos potenciais na administração pública e na condução de contratos de grande vulto. Neste artigo, apresentamos a experiência mais recente de DBs no Brasil, a partir da regulamentação deste instrumento pela Agência Nacional de Transportes Terrestres (“ANTT”).

Por meio da resolução 6.040, de 4 de abril de 2024, a ANTT incluiu entre o rol da resolução nº 5.845, de 14 de maio de 2019 o “Comitê de Prevenção e Solução de Disputas”, que consiste, justamente, em um DB.2 Assim, além da autocomposição e da arbitragem, a ANTT passou a contar com regramento dos procedimentos para o DB em contratos de concessão de rodovias e ferrovias celebrados pela ANTT junto a seus regulados.

Recorde-se que o DB já havia sido inicialmente previsto em contratos de concessão rodoviária e ferroviária da ANTT. Ocorre que, posteriormente, foram identificadas dificuldades na sua implementação, pela demora em sua instituição e na indicação de membros, além de discussões sobre o nível de exequibilidade e vinculação das propostas. Identificando esses óbices, o Tribunal de Contas da União - TCU determinou que a ANTT regulamentasse o tema antes de sua efetiva aplicação contratual, por meio do Acórdão 4036/2020 TCU-Plenário (Desestatização das BR-153/TO/GO, BR-080/GO e BR-414/GO) e Acórdão 4037/2020 TCU-Plenário (Desestatização da BR-163/MT/PA e BR-230/PA). Com o fim de atender ao TCU, a ANTT incluiu nesses contratos que “A adoção do Comitê de resolução de Conflitos (dispute board) fica condicionada à sua regulamentação pela ANTT, sendo que a sua inexistência não ensejará quaisquer direitos subjetivos à Concessionária.”.

Desta forma, a regulamentação já mencionada, que resultou na resolução nº 6.040, de 4 de abril de 2024, que alterou a resolução nº 5.845, de 14 de maio de 2019, foi iniciada pela ANTT e contou com Análise de Impacto Regulatório (“AIR”)3. Nesta AIR, evidenciou-se que a principal dificuldade a ser dirimida pelo DB seria justamente a crônica paralisação de obras previstas em contratos devido a controvérsias técnicas acerca de soluções de engenharia. Essas controvérsias tendem a aumentar a judicialização acerca dos contratos de concessão e o DB visa trazer mais agilidade e tecnicidade em suas decisões.

Dentre os dispositivos da regulamentação do DB, ressalta-se que se definiu que as decisões podem ser (i) vinculantes, proferidas por comitê adjudicatório, com cumprimento obrigatório e imediato; ou (ii) recomendatórias, proferidas por comitê recomendatório, as quais podem subsidiar a tomada de decisão da ANTT e devem ser proferidas previamente à decisão administrativa.

Ademais, os DBs podem ser de três tipos: (i) permanente, (ii) temporário e (iii) ad hoc. O comitê (i) permanente é instituído desde o início do contrato. Por sua vez, o (ii) temporário é instituído para uma certa fase contratual ou grupo de obras. Nos contratos de concessões de rodovias, por exemplo, a fase mais intensiva de realização de obras ocorre entre o 3° e 8° ano do contrato, momento em que pode ser instituído esse DB temporário. Já o DB (iii) ad hoc é criado para uma controvérsia específica e, em seguida, desconstituído. O comitê ad hoc não deve existir caso haja um comitê permanente ou temporário vigente, mas sim em caso de comitê temporário já encerrado em que surja controvérsia posterior sobre investimentos de grande vulto ou complexidade incluídos posteriormente no contrato.

De acordo com a regulamentação da ANTT, e com a finalidade de trazer isonomia nas decisões tomadas pelo DB, todo comitê contará com três membros, sendo um designado pela ANTT, outro pela concessionária e o terceiro em comum acordo pela ANTT e concessionária. E, ainda, os custos são divididos pela metade entre ANTT e concessionária. O prazo para manifestação do comitê, em regra, é de 20 dias úteis, os quais podem ser estendidos por acordo das partes ou quando haja regra diferente pela câmara especializada eleita pelo contrato. As partes podem pedir reconsideração em 20 dias úteis, com o mesmo prazo sendo oportunizado à outra parte para manifestação, sendo que o comitê deverá proferir nova decisão em 15 dias úteis.

Feita essa breve apresentação da regulamentação da ANTT e do seu histórico de evolução, passa-se a seguir a apresentar a experiência recente da agência sobre o tema. Pelo que se pôde apurar, a partir de fontes públicas, há 9 (nove) contratos com a previsão de DB, conforme tabela abaixo:

Tabela 1 – Contratos4 celebrados pela ANTT com previsão de DB ao longo dos anos (2020-20245)

 

Contrato

Região

Ano de Assinatura

Instituído

Partes envolvidas no DB:

Quant. Membros do DB

1

Estrada de Ferro Vitória a Minas

ES/MG

18/12/2020

Não

ANTT, Vale, Valec (Infra S.A.)

3

2

BR-153/TO/GO, BR-080/GO e BR-414/GO (Ecovias do Araguaia)

TO/GO

29/09/2021

Não

Ecovias do Araguaia, ANTT

3

3

R-116/101/SP/RJ (Rodovia Presidente Dutra)

SP/RJ

28/01/2022

Não

CCR Rio SP, ANTT

3

4

BR-163/MT/PA e BR-230/PA (Via Brasil)

MT/PA

01/07/2022

Não

 Via Brasil, ANTT

3

5

MRS Logística - Prorrogação Antecipada

MG/RJ/SP

28/07/2022

Não

ANTT, MRS, CBTU/MG, SEINFRA/MG

3

6

BR-116/465/493/RJ/MG (EcoRioMinas)

RJ/MG

22/08/2022

Não

EcoRioMinas, ANTT

3

7

 BR-277/373/376/476/PR e PR-418/423/427/PR (PR Vias - Lote 1)

PR

30/01/2024

Não

Via Araucária, ANTT

3

8

BR-153/277/369/PR e PR-092/151/239/407/408/411/508/804/855 (PR Vias - Lote 2)

PR

30/01/2024

Não

EPR Litoral Pioneiro, ANTT

3

Fonte: elaboração própria.

A Vale, na mesma data de assinatura do 3º termo aditivo que regrou a prorrogação antecipada da EFVM (Estrada de Ferro Vitória a Minas), também assinou a o 3º termo aditivo de prorrogação antecipada da EFC (Estrada de Ferro Carajás). No entanto, a regra do DB não foi inserida neste último contrato.

Isso se deu porque o DB na EFVM foi criado por meio do Anexo 9 somente com a finalidade de dirimir eventuais conflitos relacionados a obras da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste), cuja construção fez parte das obrigações contratuais, como subsídio cruzado no contrato de concessão da EFVM. O comitê, conforme subcláusula 13.5, é composto por três membros, sendo indicados: um de comum acordo entre ANTT e Valec (atualmente denominada Infra S.A.); um pela concessionária; um de comum acordo entre as Partes, que será o Presidente. Em ambos os contratos há a regra da cláusula arbitral.

No caso do 4º termo aditivo da prorrogação antecipada da MRS, o DB também está previsto para dirimir eventual controvérsia específica. No Apêndice D de Obrigações Complementares consta a sua previsão:

“7.4. A Concessionária deverá adotar as medidas necessárias à compatibilização da futura linha 2 (Nova Suíça – Barreiro) da CBTU-MG com a infraestrutura e operação da Ferrovia, inclusive quanto à implantação da estação de passageiros do Serviço de Transporte Metroferroviário com localização prevista para o pátio do Barreiro e imediações.”

O DB é previsto na subcláusula 7.4.3 e dispõe que os membros serão indicados da seguinte forma: um pela concessionária; um pela CBTU/MG; e um de comum acordo pela concessionária e CBTU/MG, que será o Presidente. ANTT e SEINFRA não são partes do DB, mas de acordo com a subcláusula 7.4.5, deverão ter acesso a documentos e atividades do DB, podendo opinar.

Nos contratos de rodovias nota-se um incremento nas cláusulas acerca de divisão dos custos do DB, os quais são suportados igualmente divididos entre ANTT e concessionária, para que se prevejam métodos de adoção de cálculo de revisão ordinária para compensação dos valores antecipados pagos pela concessionária, e posteriormente devolvidos pelo concedente, por meio do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato. Na cláusula da Ecovias do Araguaia não havia previsão expressa sobre esse adiantamento, o que foi inserido posteriormente nas demais concessões de rodovias. Em todos os contratos constam também as possibilidades de uso da arbitragem e autocomposição de conflitos.

Nota-se, a partir desses dados, evidências dessa evolução histórica, no sentido de que a primeira inserção desse instrumento em contrato ocorreu em 2020, mesmo antes da resolução nº 6.040, de 4 de abril de 2024, que alterou a resolução nº 5.845, de 14 de maio de 2019. A linha do tempo evidencia essa evolução temporal:

Gráfico 1 – Uso dos DBs pela ANTT ao longo dos anos (2020-2024)

Fonte: elaboração própria.

Ademais, observa-se que apesar de haver 8 DBs previstos nos contratos, ainda não há nenhum instituído. Também é possível verificar que a ANTT tem seguido o padrão da inclusão de 3 membros nos DBs. Quanto às partes envolvidas, nota-se também dispersão, concentrando-se, como já era de se esperar, na ANTT. Dentre os entes privados, o grupo Ecorodovias é aquele com maior quantitativo de contratos com previsão de DB.

Gráfico 2 – Partes envolvidas nos contratos com previsão de DBs (2020-2024) 

Fonte: elaboração própria.

Por fim, ainda a partir dos dados acima apresentados, é possível vislumbrar quais as regiões do Brasil que podem ser mais beneficiadas em caso da instituição e da adequada operacionalização dos DBs em seus respectivos contratos. Nota-se, novamente, dispersão regional, com maior concentração em Minas Gerais (3), Paraná (2), São Paulo (2) e Rio de Janeiro (2).

Gráfico 3 – Regiões afetadas pelos contratos com previsão de DBs (2020-2024)

Fonte: elaboração própria.

Os DBs são ferramenta eficaz para a resolução de disputas, particularmente na experiência da ANTT. O artigo apresentou uma visão detalhada da implementação dos DBs pela ANTT, incluindo a regulamentação recente e a análise de seu impacto na prevenção de paralisações de obras e na redução da judicialização de contratos de concessão. Foram apresentados dados sobre contratos com previsão de DB e a evolução do uso desses comitês ao longo do tempo. Até o presente momento, a ANTT já conta com 9 (nove) contratos celebrados com cláusulas prevendo DBs, todos eles com a composição de 3 (três membros. Apesar disso, nenhum deles ainda foi instituído. Há dispersão entre as partes envolvidas nos contratos com DBs celebrados, sendo que em termos geográficos, as regiões de Minas Gerais, Goiás e Paraná tendem a ser aquelas mais beneficiadas em caso da instituição e do seu adequado funcionamento.

Essa experiência recente da ANTT com os DBs ilustra um avanço significativo na resolução de disputas em contratos de grande vulto, especialmente em concessões de infraestrutura. A implementação dos DBs, apesar de ainda não estar plenamente estabelecida, sinaliza uma tendência positiva para a redução da litigiosidade e a agilização de soluções técnicas em obras públicas. A regulamentação pela ANTT, alinhada com as diretrizes do TCU, demonstra um compromisso com a eficiência e a transparência na administração pública.

Os dados apresentados revelam que, embora a previsão de DBs esteja incluída em diversos contratos desde 2019, a instituição efetiva desses comitês ainda está em processo. No entanto, a existência de uma regulamentação específica e a inclusão de membros especializados nos comitês são passos importantes para a consolidação dos DBs como uma ferramenta valiosa para a prevenção e resolução de conflitos.

Olhando para o futuro, espera-se que os DBs se tornem uma prática comum na gestão de contratos públicos, contribuindo para um ambiente contratual mais saudável e para a continuidade dos projetos sem interrupções. A experiência da ANTT pode servir de modelo para outras agências e setores, promovendo uma cultura de consensualismo e colaboração que beneficia tanto a administração pública quanto os entes privados envolvidos.

________

1 ATHAYDE, Amanda. RUAS, Cynthia. ROST, Maria Augusta. Dispute boards na forma como o país lida com disputas contratuais. Conjur, 6 ago. 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-06/consensualismo-e-dispute-boards-dbs-primeiras-linhas/. Acesso em 8 ago 2024.

2 resolução ANTT nº 5.845/2019. Art. 26-A A ANTT e a concessionária poderão constituir comitê de prevenção e solução de disputas para prevenir e solucionar divergências de natureza eminentemente técnica, que envolvam direitos patrimoniais disponíveis, relacionadas às seguintes matérias:  

3 Processo SEI nº 50500.282130/2022-10

4 Todos os contratos de concessão da ANTT podem ser encontrados nos seguintes links: https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/ferrovias/concessoes-ferroviarias e https://www.gov.br/antt/pt-br/assuntos/rodovias/concessionarias.

5 Dados até junho/2024.

Amanda Athayde
Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto. Doutora em Direito Comercial pela USP, bacharel em Direito pela UFMG e em administração de empresas com habilitação em comércio exterior pela UNA, ex-aluna da Université Paris I - Panthéon Sorbonne, autora de livros, organizadora de livros, autora de diversos artigos acadêmicos e de capítulos de livros na área de Direito Empresarial, Direito da Concorrência, comércio internacional, compliance, acordos de leniência, anticorrupção, defesa comercial e interesse público.

Cynthia Ruas
Especialista em Regulação da ANTT - Direito, desde 2013. Atualmente, é Gerente de Estruturação Regulatória e Superintendente Substituta da Superintendência de Concessão da Infraestrutura. Já ocupou cargos na ANTT de Coordenadora Substituta de Defesa da Concorrência, Coordenadora de Relações Internacionais, Gerente de Relacionamento Internacional e com o Mercado, Gerente de Regulação Aplicada e Superintendente Executiva Interina. Anteriormente, teve experiências profissionais em direito da concorrência no CADE e no Trench Rossi Watanabe, com ênfase em carteis e leniências. É advogada e detém pós-graduação em Direito do Estado e MBA em Economia Comportamental.

Maria Augusta Rost
Mestre em Direito pela Universidade de Brasília (UnB) e Sócia da Fenelon Barretto Rost Advogados.

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