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As garantias reais no anteprojeto de reforma do Código Civil: lições do anteprojeto do grupo de estudos temático e do Marco Legal de Garantias

O artigo aborda a necessidade de reforma no sistema de garantias reais do Brasil, destacando o Marco Legal de Garantias e o Anteprojeto GET como tentativas de modernização e simplificação das normas, visando maior eficiência e segurança jurídica.

28/8/2024

Introdução e contextualização do Marco Legal de Garantias e do Anteprojeto GET na Reforma do Código Civil

A necessidade de uma reforma ampla nas garantias da obrigação no Direito brasileiro é evidente. O Código Civil de 2002, em grande parte, repetiu as regras do Código de 1916, levando a uma evolução do Direito das Garantias por meio de leis especiais e soluções casuísticas. Embora a Lei 14.711/2023 (conhecida como Marco Legal das Garantias) tenha introduzido melhorias importantes, especialmente ao financiamento imobiliário, o sistema brasileiro de garantias reais ainda carece de uma atualização mais profunda e bem sistematizada.

Com efeito, como afirmamos em recente obra coletiva coordenada por Bernardo Chezzi e Martha El Debs (O Novo Marco das Garantias: Aspectos Práticos e Teóricos, Ed. Jus Podium), a Lei 14.711/2023 “representou uma pequena parte dessa iniciativa almejada de reforma. Há algo de presunçoso, e mesmo enganoso, na sua denominação de “Marco Legal de Garantias”, apelido de origem política e não doutrinária. Um Marco Legal é algo que refunda um instituto ou uma área do Direito, o que jamais foi a pretensão do projeto. Ao contrário, tratou-se de texto encomendado, cujo escopo era bastante reduzido”.

Em janeiro de 2021, o Ministério da Economia criou o Grupo de Estudos Temático – Garantias Reais (GET), por meio da Portaria nº 826/2021, com o objetivo de propor uma reforma abrangente dos dispositivos do Código Civil, relacionados às garantias reais, e de harmonizar a legislação especial existente. Esse grupo1, do qual fui relator, apresentou um anteprojeto que propunha a reforma de cerca de 50 artigos e a inclusão de outros 50, com maior ênfase na regulamentação das garantias reais sobre bens móveis e forte influência da Lei Modelo da ONU sobre Garantias Reais Mobiliárias, de 2016, que tem sido a referência para reformas propostas mundialmente, em especial no que diz respeito à execução e ao registro de garantias2.

Muitos dos participantes do GET atuaram, também, na redação do PL 4.188, que originou a Lei 14.711/2023. Por essa razão, eram projetos compatíveis e complementares, e o governo federal pretendia enviar ao Congresso Nacional o Anteprojeto GET tão logo aprovado o PL 4.188.

A aprovação da Lei nº 14.711 ocorreu em outubro de 2023, de forma praticamente concomitante à criação da Comissão de Juristas responsável pela revisão e atualização do Código Civil no Senado Federal (CJCODCIVIL), sob a presidência do min. Luis Felipe Salomão. Não havia mais, portanto, possibilidade de envio do Anteprojeto GET ao Congresso Nacional como um projeto de lei autônomo. Consultado o Ministério da Fazenda, responsável pelo GET, optou-se por enviá-lo à Subcomissão de Direito das Coisas, já no contexto da reforma geral do Código Civil, cuja relatoria coube ao des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, tendo ainda como membros Marcelo de Oliveira Milagres, Maria Cristina Paiva Santiago e Carlos Antônio Vieira Fernandes Filho. Desde logo houve grande interesse e receptividade, pela Submissão, em avaliar a debater as sugestões a ela submetidas.

O Anteprojeto GET baseou-se em alguns pilares, que apresentamos de forma resumida:

i. Simplificação e unificação das normas de constituição da garantia real, de modo que todas as garantias reais (incluindo a propriedade fiduciária) sejam submetidas, no que for possível, às mesmas regras contratuais de formação e publicidade, eliminando diferenças decorrentes de subsistemas, como a modalidade de alienação fiduciária restrita às instituições financeiras, prevista na Lei nº 4.728/1965, e permitindo a reserva, a permuta e a posposição de grau da garantia real;

ii. Introdução de novo tratamento do capítulo da propriedade fiduciária com descrição das funções de administração (trust) e garantia, com revogação de dispositivos específicos da formação e do regime da propriedade fiduciária em garantia, que passariam a submeter-se ao mesmo tratamento harmônico dado às garantias reais;

iii. Generalização do penhor não possessório sobre qualquer espécie de bem móvel, simplificando o regime atual, que requer a utilização de modalidades de penhor especial ou de alienação fiduciária para constituir garantia não possessória, e eliminando o paradigma do penhor como contrato real;

iv. Permissão, de forma genérica, de constituição de garantias sobre universalidades (como estoques, créditos revolventes ou categorias inteiras de bens móveis), sem a necessidade de sucessivos aditamentos do instrumento de garantia;

v. Conservação automática da garantia, por sub-rogação real, sobre frutos e bens substitutos ou decorrentes da transformação dos bens objeto da garantia, sem a necessidade de novo registro, permitindo melhor uso de garantias sobre estoques do comércio, do agronegócio e da indústria;

vi. Simplificação das normas relacionadas à especialização das obrigações garantidas, permitindo a adoção de cláusulas omnibus, que autorizam garantir todas as obrigações presentes e futuras de um determinado devedor, de forma genérica;

vii. Harmonização do regime de publicidade e prioridade das garantias, inclusive legais e processuais, com a necessidade de registro das penhoras e das garantias legais como condição para sua oponibilidade perante terceiros, mesmo para os bens móveis, em reforço ao princípio da concentração dos ônus reais nos registros públicos, e com a introdução de diversas normas para solução de conflitos de prioridades entre garantias;

 viii. Harmonização das regras de excussão extrajudicial das garantias reais, com a regulamentação da venda direta (via parata), da apropriação pelo credor, com a devolução do valor excedente (pacto marciano) e do reapossamento dos bens.

O relatório da Subcomissão de Direito das Coisas incorporou, para a matéria das garantias reais, quase todas as disposições do Anteprojeto GET, com algumas inclusões, supressões e adaptações que, em muitos casos, aprimoraram as normas propostas. O amplo aproveitamento foi destacado no relatório entregue à relatoria geral (p.145): “A subcomissão deliberou, por unanimidade, aproveitar em grande parte o trabalho excelente elaborado pelo Grupo de Estudos Temáticos (GET) criado pela Portaria 826, de 19 de janeiro de 2021, pela Secretaria Especial de Produtividade e Competitividade (SEPEC), do Ministério da Fazenda, que durante um ano estudou, com a participação de notáveis juristas, membros do executivo federal e do mercado, a possibilidade de modernizar a estrutura das garantias reais aos tempos que correm”.

Coube, então, à relatoria-geral, dos professores Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, a ingrata tarefa de fazer dos diversos relatórios de subcomissões um todo coeso e, ao mesmo tempo, de serem guardiães do Código, de procurar evitar alterações demasiadas ou radicais que comprometessem sua harmonia e coesão. Trata-se de tarefa impossível, dados a extensão do Código Civil, o sem-número de alterações propostas pelas subcomissões e o prazo exíguo de que se dispunha. Ainda assim, houve bons debates nesse processo, que permitiram, em alguns casos, alcançar elementos importantes de consenso, a exemplo da introdução do pacto marciano na execução das garantias reais.

Embora sem adotar todas as inovações que pretendíamos no Anteprojeto GET, e os aprimoramentos que se sugeriam no relatório da subcomissão de Direito das Coisas, o anteprojeto final da Comissão de Juristas representou relevante avanço no Direito das Garantias, trilhando o caminho da reforma na direção correta. Algumas alterações serão necessárias, cuja avaliação caberá ao Congresso Nacional. A seguir, passamos a explorar as inovações e os pontos de atenção do relatório da Comissão de Juristas, apontando, em cada caso, as soluções do Anteprojeto GET e nossas sugestões de melhoria.

Parte Geral

O Anteprojeto GET propunha algumas alterações na Parte Geral do Código Civil, com o objetivo de alinhá-la ao Título das Garantias Reais. Essas mudanças abordavam a cessão de crédito (arts. 288, 291, 292, 298 e 299), o vencimento antecipado (art. 333) e a novação. No caso da novação, incluía-se um novo parágrafo ao art. 364, estabelecendo que a novação pactuada com preservação da garantia real resultaria apenas em averbação no registro de imóveis, sem necessidade de cancelamento da garantia original, salvo se prejudicasse direitos de terceiros. Contudo, exceto pelo art. 333, as sugestões relativas à Parte Geral não foram incorporadas ao Anteprojeto da Comissão de Juristas.

No art. 333, duas inovações foram propostas pelo anteprojeto GET: a inclusão de um inciso IV, que esclarece a possibilidade de estipular hipóteses convencionais de vencimento antecipado da dívida, sugestão esta que foi aceita no Anteprojeto do Código Civil; e, em segundo lugar, sugeriu-se a troca de posições entre o atual inciso II do art. 333 e o inciso III do art. 1.425. Ambos os artigos tratam do vencimento antecipado, sendo o art. 333 no contexto geral das obrigações e o art. 1.425 no contexto específico das garantias reais. O inciso II do art. 333 aborda uma hipótese específica às garantias reais, que estaria mais bem posicionada no art. 1.425. Por outro lado, o inciso III do art. 1.425, que trata de hipótese geral sobre obrigações com pagamento em prestações sucessivas, deveria ser alocado no art. 333. Essa sugestão de reorganização não foi acolhida pela Comissão de Juristas do Código Civil.

O Anteprojeto do Código Civil também buscou inovar ao incluir um parágrafo único no art. 303, aparentemente para permitir que o cessionário do direito real aquisitivo de imóvel, objeto de propriedade fiduciária em garantia, realizasse a assunção da dívida. No entanto, o texto desse parágrafo referiu-se ao cessionário do crédito garantido por propriedade fiduciária, o que parece indicar uma confusão entre as posições passiva e ativa na relação de crédito e garantia.

Propriedade Fiduciária

No capítulo referente à propriedade fiduciária (Capítulo IX do Título III – Da Propriedade, arts. 1.361 e seguintes), o Anteprojeto GET propunha duas modificações importantes. A primeira, de caráter substantivo, tratava da propriedade fiduciária de forma geral, dividindo-a em modalidades de garantia e de gestão, e introduzindo a regra geral do trust ao Código Civil. Como se sabe, já há negócios fiduciários típicos previstos em outras disposições do Código, como a administração fiduciária dos fundos de investimento e o fideicomisso.

Além disso, o Anteprojeto GET sugeria uma alteração de forma significativa: as disposições gerais relativas à propriedade fiduciária e as específicas à modalidade de gestão permaneceriam em sua localização atual, enquanto as regras sobre alienação fiduciária em garantia seriam movidas para um novo capítulo, no final do Título X do Livro III. Essa mudança visava a harmonizar a alienação fiduciária em garantia com o regime geral das garantias reais, promovendo uma melhor sistematização do tema. Vale dizer, a submissão ao direito geral das garantias reais já existe no Código Civil, em razão de norma expressa contida no art. 1.367.

A Comissão de Juristas, em grande parte, acatou as sugestões relativas à substância da propriedade fiduciária. Muitas das disposições introduzidas pelo Anteprojeto GET foram incorporadas, ainda que em locais diferentes. De modo geral, essas disposições foram agrupadas nos parágrafos do art. 1.361 e nos novos arts. 1.361-A e 1.361-B. Em alguns casos, a redação foi aprimorada, como no parágrafo único do art. 1.361-A (art. 1.366 no Anteprojeto GET), que destaca as hipóteses de dolo e má-fé como elementos que desconstituem a separação patrimonial decorrente da propriedade fiduciária de gestão, evitando o uso do trust como mecanismo de blindagem patrimonial.

Por outro lado, no que se refere à forma, a Comissão de Juristas decidiu manter as disposições específicas sobre a propriedade fiduciária em garantia no mesmo capítulo, diferentemente do proposto no Anteprojeto GET. Essa escolha, embora mantenha a estrutura atual do Código, pode gerar confusão ao leitor, ao misturar temas com pouca relação entre si (propriedade em garantia e propriedade fiduciária de gestão). A melhor escolha, a nosso ver, teria sido tratar da modalidade de garantia no Título X, das garantias reais. No entanto, caso a escolha formal da Comissão de Juristas seja mantida, sugerimos que, ao menos, o Capítulo da Propriedade Fiduciária seja subdividido em seções, separando claramente as normas gerais, as normas da modalidade de gestão e as normas de garantia. Essa subdivisão requereria alguns ajustes, a exemplo do art. 1.361-B, que contém normas específicas de ambas as modalidades.

Normas gerais das garantias reais

O Título X do Livro III foi alvo de importantes alterações no Anteprojeto GET, com o objetivo de harmonizar o Direito das Garantias Reais. A primeira proposta foi a modificação da epígrafe desse título, que passaria de “Do Penhor, da Hipoteca e da Anticrese” para simplesmente “Das Garantias Reais”, refletindo a intenção “sistematizante” da reforma. Outras alterações em epígrafes e subdivisões de capítulos também foram sugeridas, mas não acolhidas pela Comissão de Juristas, sem uma justificativa clara.

Apesar da aparente intenção da Comissão de Juristas de preservar ao máximo a forma atual do Código, a maior parte das sugestões de substância do Anteprojeto GET acabou sendo por ela incorporada, ainda que com simplificações significativas, em alguns casos, que merecem olhar mais detido.

Ao longo do Título X, o Anteprojeto GET procurou substituir, sempre que possível, as denominações específicas das modalidades de garantias pelo termo genérico “garantia real”. Essa abordagem visava a garantir que as normas gerais contidas no Capítulo I se aplicassem a outros negócios com função de garantia, como a alienação fiduciária (cuja aplicação subsidiária já é determinada pelo art. 1.367), a retrovenda, a reserva de domínio e o arrendamento mercantil financeiro. Esse tratamento dito “unitário e funcional”, proveniente da Lei Modelo da ONU sobre Garantias Reais, era anunciado pela modificação do caput do art. 1.419 e o acréscimo de um parágrafo único. Este parágrafo afirmava, de forma similar à regra internacional, que “o disposto neste Título X aplica-se a todas as modalidades de garantia real, ainda que decorrentes da reserva ou atribuição do direito de propriedade, com escopo de garantia, bem como à formalização, à publicidade, à prioridade e à execução das dívidas decorrentes de contratos de arrendamento mercantil financeiro”.

A Comissão de Juristas parece ter acatado o tratamento unitário e funcional, mas optou por uma redação mais simplificada no parágrafo único proposto. O texto adotado pela Comissão afirma que “o disposto neste Título X aplica-se, no que couber, às demais modalidades de garantia real”. No entanto, ao simplificar a redação originalmente proposta no Anteprojeto GET, a versão da Comissão pode gerar incertezas quanto ao objetivo pretendido.

No art. 1.420, a Comissão de Juristas acolheu a sugestão do Anteprojeto GET referente à garantia real prestada por condômino. No entanto, deixou de incorporar regras importantes contidas no § 3º proposto pelo Anteprojeto GET, que previa o seguinte: “§ 3º Também podem ser objeto de garantia real: I - os bens que se tornem objeto da garantia por força de sub-rogação real; II - os bens alienáveis sujeitos a cláusula de impenhorabilidade; III - os bens objeto de uma garantia constituída na forma do art. 1.432-B. § 4º Os bens inalienáveis podem ser objeto de anticrese”. Entre essas disposições, a que se destaca pela relevância prática é a que trata dos bens sujeitos à cláusula de impenhorabilidade. Parte da doutrina e da jurisprudência frequentemente se equivoca ao entender que tais bens não podem ser objeto de garantia real. Diferentemente da impenhorabilidade legal, cujas regras e exceções obedecem a normas específicas, a cláusula de impenhorabilidade imposta em testamento ou doação não torna o bem inalienável ou fora de comércio; se o bem pode ser voluntariamente alienado, é evidente que pode ser dado em garantia real. A inclusão dessa regra no Código seria altamente desejável, pois ajudaria a corrigir um erro comum de aplicação dos institutos.

No art. 1.422, a Comissão de Juristas acatou a permissão de permuta e posposição de graus da garantia real, conforme previa o Anteprojeto GET, ressalvando, entretanto, que só se aplica aos credores solventes, em contratos paritários e simétricos. A adoção da expressão “paritários e simétricos” permeou o anteprojeto da Comissão de Juristas, sendo importante, em alguns casos, para estabelecer limites à autonomia privada e proteger hipossuficientes. Não parece ser o caso, todavia, de aplicar essa restrição à permuta de graus de prioridade, negócio entabulado entre credores de um mesmo garantidor, em que não há expectativa de hipossuficiência. Ademais, deixou-se de prever importante regra de proteção de terceiros, contida no art. 1.424-D do Anteprojeto GET, que determinava que o benefício outorgado ao cessionário não ultrapasse, em prejuízo de terceiros, as condições da garantia de maior prioridade. Essa regra é necessária quando a permuta de grau se realiza entre garantias não imediatamente subsequentes.

Os arts. 1.423-A e 1.423-B incorporaram inovações significativas provenientes do Anteprojeto GET. O art. 1.423-A estabelece que todas as garantias reais, inclusive aquelas de origem judicial, só se constituem com o registro. Essa inovação reforça o princípio da concentração dos atos na matrícula, especialmente em relação às penhoras e hipotecas judiciais, além de sublinhar a necessidade de registro das penhoras sobre créditos e móveis corpóreos no Registro de Títulos e Documentos (RTD), uma inovação introduzida na Lei de Registros Públicos pela Lei 14.382/2022. O parágrafo único do art. 1.423-A dispõe sobre a eficácia interpartes das garantias, em relação aos seus efeitos pessoais, mesmo antes do registro. Essa abordagem reflete uma visão mais atual dos direitos reais limitados, considerando seu caráter relacional, e está alinhada com modelos internacionais, como a Lei Modelo da ONU sobre Garantias Reais. O art. 1.423-B, por sua vez, introduz a figura da reserva de grau, que, apesar de já admitida pela doutrina, ainda não havia sido formalmente reconhecida pela lei.

O art. 1.424 introduziu a possibilidade de que a garantia estipule um período de cobertura, como alternativa ao prazo final de pagamento. Essa opção é especialmente relevante para garantias constituídas em benefício de dívidas futuras, condicionais ou múltiplas, como é o caso das garantias “omnibus”, que asseguram de forma indeterminada todas as operações de crédito vigentes entre duas partes. O parágrafo único desse artigo também acolheu uma sugestão do Anteprojeto GET, permitindo que os bens objeto da garantia sejam descritos a partir de universalidades de fato, o que flexibiliza o princípio da especialidade objetiva, alinhando-se aos modelos internacionais. No entanto, a redação adotada pela Comissão de Juristas foi significativamente simplificada em relação à versão original do Anteprojeto GET. A nosso ver, essa simplificação pode dificultar a interpretação quanto ao alcance da norma, tornando necessária uma revisão mais detalhada. Além disso, a Comissão limitou a flexibilização do princípio da especialidade aos negócios paritários e simétricos, o que nos parece inadequado. Tal limitação não se justifica, especialmente considerando que essa forma de garantia busca abarcar situações anteriormente cobertas pelos penhores mercantil e industrial, os quais nunca tiveram essa restrição.

Por fim, o art. 1.424-A generaliza a possibilidade de constituição de garantias subsequentes, em diferentes graus, uma hipótese anteriormente prevista apenas para a hipoteca. Com essa alteração, a regra passa a abranger todas as modalidades de garantias reais, adotando a mesma redação proposta no Anteprojeto GET.

Três relevantes sugestões do Anteprojeto GET deixaram de ser incorporadas aos arts. 1.424, 1.427 e 1.430, ainda no capítulo destinado às normas gerais das garantias reais.

A primeira, que adotava o número 1.424-C no Anteprojeto GET, flexibilizava a especialização das obrigações garantidas, diretamente inspirada na Lei Modelo da ONU sobre Garantias Reais. Essa disposição permitia expressamente garantias para obrigações futuras, condicionais ou determináveis, além das garantias "omnibus" mencionadas anteriormente. Além disso, a proposta trazia para o capítulo das normas gerais a regra atualmente contida no art. 1.487, que trata das hipotecas em garantia de dívidas futuras, generalizando essa mesma regra para todas as modalidades de garantias reais. A implementação dessa alteração é, portanto, necessária para uma harmonização mais eficaz do regime das garantias reais.

Outra importantíssima alteração consistia na criação de um artigo que sistematizava as modalidades de excussão extrajudicial das garantias reais, sob o número 1.427-A. Esse dispositivo previa a possibilidade de venda privada dos bens objeto de garantia (cláusula via parata) e de apropriação (pacto marciano), estabelecendo regras procedimentais detalhadas para ambas as situações. Além disso, limitava o alcance dessas modalidades e introduzia proteções para o garantidor hipossuficiente. No Código atual, a venda privada é expressamente prevista para o penhor e a propriedade fiduciária, mas não se estende às hipotecas. Além disso, não há disposições procedimentais claras, como a necessidade de notificação prévia do garantidor, concessão de prazo ou avaliação dos bens, o que revela uma evidente lacuna normativa. A Comissão de Juristas, entretanto, optou por não regular a venda privada, concentrando-se apenas no pacto marciano, que foi introduzido de forma pouco coesa no art. 1.428, cuja redação merece revisão e correção.

Por fim, o art. 1.430-A do Anteprojeto GET abordava o direito do credor à obtenção da posse nos seguintes termos: “O bem móvel será reapossado extrajudicialmente, quando não houver oposição de quem o detenha, ou judicialmente, mediante busca e apreensão, requerida na execução ou em procedimento autônomo; e o bem imóvel mediante ação própria, na qual será deferida a desocupação em sessenta dias, observada a lei especial.” Com essa disposição, concentravam-se a regulamentação do reapossamento liminar de bens imóveis, atualmente prevista na Lei 9.514/1997 para a alienação fiduciária de imóveis, e do reapossamento extrajudicial de bens móveis, medida posteriormente introduzida de forma simplificada na Lei 14.711/2023. Cumpre ressaltar que a Lei 14.711/2023 deixou de prever a necessidade de ausência de oposição para o reapossamento extrajudicial, um requisito comum nos modelos internacionais que tratam do tema. Essa omissão levou ao ajuizamento de uma ação direta de inconstitucionalidade, atualmente pendente de julgamento no STF.

Alterações no penhor

No que diz respeito ao penhor, a principal mudança introduzida pelo Anteprojeto GET era a reformulação do penhor como contrato convencional, sujeito a registro, em substituição à noção tradicional de penhor como contrato real. Essa mudança é atualmente um consenso na doutrina civilista internacional e foi adotada na maioria dos códigos civis que passaram por reformas no século XX. Atualmente, o penhor possessório praticamente não existe. O penhor contemporâneo é constituído sem desapossamento, de maneira análoga à hipoteca, sendo o depósito do bem (em favor do credor ou de terceiro) uma possibilidade permitida de forma excepcional, como elemento acidental.

O Código Civil de 2002 não ignorava o penhor sem desapossamento. No entanto, estabelecia o penhor possessório como regra geral no caput do art. 1.431, permitindo o desapossamento apenas nas modalidades de penhor especial, cujo tratamento no Código era limitado. O Anteprojeto GET propunha uma inversão dessa lógica, definindo o penhor como não possessório no caput e permitindo o depósito como uma exceção, prevista em parágrafo. Infelizmente, a Comissão de Juristas adotou uma posição intermediária que, a nosso ver, continua inadequada.

Embora tenha retirado corretamente do caput a definição do penhor como contrato real, adotando uma redação próxima à do Anteprojeto GET, manteve dois parágrafos que continuam a tratar a retenção da posse pelo garantidor pignoratício como excepcional. O § 1º faz referência aos penhores especiais, como modalidades em que a posse permanece com o “devedor”, enquanto o § 2º permite que, nos demais negócios simétricos e paritários, as partes possam convencionar a manutenção da posse com o “devedor”. Essa abordagem apresenta dois equívocos: primeiro, confunde-se “devedor” com “garantidor pignoratício”, sem considerar a hipótese de penhor constituído para dívida de terceiro; segundo, a retenção da posse pelo garantidor deveria ser a regra, não a exceção. Manter a posse com o garantidor é mais vantajoso para ele, que assim conserva o benefício das utilidades do bem dado em garantia. Não há razão para limitar essa possibilidade apenas aos “negócios simétricos e paritários”.

Além disso, a escolha da Comissão de Juristas por uma abordagem “intermediária” resultou em um menor número de alterações nos artigos que tratam dos direitos e deveres das partes no contrato de penhor (arts. 1.433 a 1.435) e nas regras específicas dos penhores rural, mercantil, industrial e de veículos. Embora as sugestões do Anteprojeto GET tenham sido parcialmente incorporadas a esses artigos, a redação final ainda apresenta certo conflito ideológico entre o modelo original do Código (em que o penhor possessório é a regra geral e o penhor não possessório a exceção) e o modelo diametralmente oposto que o Anteprojeto GET pretendia implantar. Essa inconsistência revela uma transformação incompleta de paradigma. Em alguns pontos, as disposições parecem se basear no paradigma original do contrato real, enquanto em outros, partem do novo paradigma de ausência de desapossamento. O resultado é um conjunto normativo menos coeso, que pode gerar confusões interpretativas e dificuldades na aplicação prática.

Os arts. 1.431-A e seguintes da Comissão de Juristas repetem, em grande parte, as redações correspondentes do Anteprojeto GET. Essas disposições tratam das regras de sub-rogação real do objeto do penhor, essenciais para as diversas situações em que os bens empenhados são posteriormente substituídos ou transformados. Essas regras são particularmente importantes para o uso eficaz das garantias sobre estoques no comércio, no agronegócio e na indústria. No entanto, alguns pontos podem ser aprimorados nesses dispositivos. O uso da expressão "contratos paritários e simétricos" no caput do art. 1.431 parece ser inadequado. Além disso, na tentativa de simplificar a redação, a Comissão de Juristas deixou de incorporar algumas regras específicas sobre a sub-rogação de títulos de crédito, que estavam previstas no Anteprojeto GET, resultando em lacuna normativa.

O art. 1.432 também reproduz, em grande parte, os dispositivos do Anteprojeto GET relativos à publicidade dos penhores. A Comissão de Juristas introduziu uma inovação importante com a inclusão do § 1º, que parece tratar do registro de garantias sobre ativos registrados em blockchain. Embora este seja um tema relevante, que não foi abordado pelo Anteprojeto GET, a redação proposta pela Comissão de Juristas deixa dúvidas quanto ao alcance do dispositivo. Dependendo da interpretação, pode-se entender que o registro em blockchain substitui o registro público, inclusive para garantias sobre bens corpóreos. É essencial que o Congresso Nacional revise cuidadosamente esse dispositivo para garantir a compatibilização dos alcances respectivos do registro público e do registro de ativos em blockchain, conferindo segurança jurídica à constituição das garantias reais.

Além da norma geral do art. 1.432, os arts. 1.432-A e B do Anteprojeto GET continham uma extensa regulamentação das regras de prioridade sobre bens móveis, inspiradas na Lei Modelo da ONU sobre Garantias Reais, que não foi adotada pela Comissão de Juristas. Embora essas regras possam parecer complexas à primeira vista, elas visavam a resolver as diversas hipóteses de conflito que surgem à medida que a flexibilização e simplificação das garantias reais incentivam seu maior uso, especialmente em casos de garantias em graus subsequentes e bens móveis sujeitos a constante alienação ou transformação. Presume-se que o curto tempo disponível à Comissão de Juristas não permitiu o debate e a compreensão adequada dessas normas. No entanto, essas regras devem ser discutidas no Congresso Nacional para evitar uma lacuna normativa significativa nos conflitos entre penhores. Tais conflitos são, de fato, mais complexos e, devido à natureza dos bens móveis, diferem da simples aplicação da regra prior in tempore, como ocorre com as hipotecas.

Finalmente, por um lado, foram incorporadas muitas das sugestões do Anteprojeto GET às normas dos penhores especiais, em alguns casos com melhorias de redação, que deixaram os dispositivos mais claros e objetivos. Por outro lado, algumas sugestões não foram incorporadas ao penhor de créditos e de direitos, especialmente no que diz respeito ao tratamento do penhor de créditos futuros e ao penhor de títulos de crédito representativos de bens corpóreos (como certificados de depósito e conhecimentos de embarque).

Alterações na hipoteca

O Anteprojeto GET trouxe poucas alterações à hipoteca, considerando que muitas mudanças nas garantias imobiliárias foram implementadas pela Lei 14.711/2023. As alterações adotadas pela Comissão de Juristas, essencialmente, reproduzem as sugestões do Anteprojeto GET, no mérito, com algumas modificações de redação. Embora essas mudanças tenham melhorado a legibilidade em alguns casos, em outros, acabaram por gerar equívocos de terminologia ou interpretação, que serão destacados a seguir.

O art. 1.473 foi alterado para prever a sub-rogação real, sobre a propriedade plena, das garantias constituídas sobre o direito real do promitente comprador e o direito aquisitivo oriundo da propriedade resolúvel, mediante aquisição superveniente, os quais o anteprojeto permitiu que fossem objeto de hipoteca. Os arts. 1.473-A e B, entretanto, possuem dois equívocos.

A norma do art. 1.473-A, no Anteprojeto GET, previa o direito de o credor hipotecário solicitar o registro do contrato de promessa de compra e venda na matrícula, para que, em razão do princípio da continuidade registral, fosse possível o subsequente registro da própria hipoteca. A redação da Comissão de Juristas, porém, apenas menciona o direito de registrar a própria hipoteca, algo que já é evidente, suprimindo a referência ao registro do contrato de promessa, que constitui o objeto da hipoteca e cuja legitimidade para registro pode ser controversa. O art. 1.473-B, por sua vez, trouxe uma inovação positiva ao prever que a adjudicação compulsória do imóvel objeto de promessa possa ser requerida pelo credor hipotecário judicial ou extrajudicialmente. Contudo, a redação omitiu que o exercício dessa prerrogativa se dá em substituição processual, um aspecto que, a nosso ver, deveria ser mencionado expressamente.

O art. 1.479 foi modificado para permitir que o abandono hipotecário possa ser realizado não apenas pelo adquirente de um imóvel hipotecado, mas por qualquer terceiro garantidor que não responda pessoalmente pela dívida, mesmo sem aquisição. No entanto, a Comissão de Juristas deixou de alterar o caput e o parágrafo do art. 1.480, como sugeria o Anteprojeto GET, para substituir a palavra “adquirente” por “proprietário”, resultando em uma inconsistência entre esses dispositivos que merece correção.

Ao art. 1.488 foi acrescida importante regra que prevê que a alienação do imóvel hipotecado pelo empreendedor imobiliário implica a automática sub-rogação da hipoteca sobre o crédito decorrente da venda, independentemente de novo registro. Essa disposição visa a proteger o credor financeiro da obra, cuja garantia pode perder eficácia perante o consumidor adquirente de unidades em razão da Súmula 308 do STJ.

Finalmente, foi corrigido um erro do Código original no art. 1.498, cuja aplicação deveria ser restrita às hipotecas legais, assim como ocorria no artigo correspondente do Código de 1916, sendo o art. 1.485 o aplicável às hipotecas convencionais.

Alterações na anticrese

Quanto à anticrese, o art. 1.507 adota uma sugestão do Anteprojeto GET que permite ao credor anticrético alugar o imóvel objeto de anticrese ao próprio proprietário que constituiu a anticrese, liberando-se, assim, dos deveres de administração do bem, mas conservando o direito de retenção decorrente da posse indireta. Essa modalidade, conhecida na doutrina francesa como antichrèse-bail, foi introduzida no Código Civil francês e oferece uma nova utilidade à anticrese, que pode se mostrar uma alternativa mais vantajosa para o credor.

Conclusões

A reforma das garantias reais, no Código Civil, é um passo significativo na modernização do Direito brasileiro em direção às melhores práticas internacionais. O Anteprojeto GET, amplamente incorporado e aprimorado pela Subcomissão de Direito das Coisas, em seu relatório, representa uma atualização significativa e necessária do direito vigente, refletindo as necessidades atuais do mercado e da economia. Embora o trabalho da Comissão de Juristas, em geral, tenha, inclusive, aprimorado parte das propostas originais, algumas escolhas resultaram em inconsistências e omissões que merecem atenção cuidadosa do Congresso Nacional.

A harmonização e a simplificação do uso das garantias reais bem como a adaptação às novas realidades garantem maior segurança jurídica e eficiência na concessão de crédito. A correta compreensão da proposta e a continuidade do debate legislativo são essenciais para assegurar que o sistema de garantias reais no Brasil seja robusto, coeso e capaz de atender às demandas contemporâneas.

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1 O grupo foi composto por: (i) Daniel Lago Rodrigues - Oficial de Registro de Imóveis, Títulos e Documentos e Civil das Pessoas Jurídicas da Comarca de Taboão da Serra/SP; (ii) Fábio Rocha Pinto e Silva - Presidente da Comissão de Crédito Imobiliário e Garantias do Ibradim; (iii) Francisco Eduardo Loureiro - Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo; (iv) Gisela Sampaio da Cruz Guedes - Professora da Universidade Estadual do Rio de Janeiro; (v) João Carlos de Andrade Uzêda Accioly – Advogado e Diretor da Comissão de Valores Mobiliários; (vi) José Antônio Cetraro - Consultor Jurídico da Abecip; (vii) Luis Vicente De Chiara – Diretor Jurídico da Febraban; (viii) Melhim Namen Chalhub - Especialista em Direito Privado e Parecerista; (ix) Otávio Luiz Rodrigues Júnior - Professor da Universidade de São Paulo e ex-Conselheiro do Conselho Nacional do Ministério Público; (x) Pablo Waldemar Rentería - Doutor em Direito Civil e ex-diretor da Comissão de Valores Mobiliários; (xi) Patricia André de Camargo Ferraz – ex-diretora de Relações Institucionais do Cori-BR; (xii) Robson de Alvarenga - Presidente do IRTDPJ-SP; e (xiii) Rodrigo Xavier Leonardo - Professor da Universidade Federal do Paraná.

2 Disponível em https://www.gov.br/participamaisbrasil/projeto-reforma-garantias

Fábio Rocha Pinto e Silva
Mestre e doutor em Direito Civil (USP). Doutor em Direito Civil, em dupla titulação (Univ. Panthéon-Assas, Paris II). Presidente da Comissão de Crédito Imobiliário e Garantias do Instituto Brasileiro de Direito Imobiliário - IBRADIM. Delegado do governo brasileiro perante o grupo de trabalho de reforma das garantias da UNCITRAL/ONU (2015-2018). Relator do GET-Garantias (Ministério da Economia), do anteprojeto de reforma das garantias reais no Código Civil. Participante dos grupos 4 e 5 do IMK, responsáveis pela redação da MP 1.085/21 e do PL 4.188/21. Advogado atuante na área de Direito Imobiliário e de Financiamento Imobiliário.

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