Migalhas de Peso

O reequilíbrio econômico-financeiro de contratos públicos em decorrência da variação cambial

Em contratos com o Poder Público, quando orçamentos são baseados em moedas estrangeiras, a flutuação cambial deve ser suportada pelo contratado. No entanto, aumentos excessivos na cotação podem justificar ajustes para restabelecer o equilíbrio econômico-financeiro.

28/8/2024

Sabe-se que em determinados contratos firmados com o Poder Público envolvendo empreendimentos de infraestrutura, insumos e bens importados, por vezes o orçamento e a proposta comercial dos licitantes estarão fixados ou embasados em moedas estrangeiras (principalmente dólar ou euro). Nessas situações, o art. 92, inciso XV, da lei de licitações (lei 14.133/21) prevê a necessidade de o contrato dispor as condições de importação e a data e a taxa de câmbio para conversão, tendo sido entendimento do Tribunal de Contas da União que a mera flutuação cambial, dentro dos limites normais de volatilidade, deve ser suportada pelo particular contratado, arcando com os riscos do negócio e os custos associados à sua atividade empresarial.

No entanto, em situações de imprevisibilidade ou previsibilidade cujas consequências sejam difíceis de serem apuradas, a alta expressiva da moeda estrangeira que causa um ônus excessivo ao contratado deve permitir o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato firmado com o Poder Público.

É exatamente a situação que se verifica no atual cenário econômico brasileiro.

Conforme dados fornecidos pelo boletim do Banco Central, em seu site, o Brasil encerrou o mês de agosto/23 com a cotação de compra do dólar no valor de R$ 4,92 e o euro no valor de R$ 5,33 (31/8/23). De lá para cá, em 12 meses, a cotação de ambas as moedas deu um salto de mais de 14% de aumento, encerrando o dólar, no mês de agosto/24, a R$ 5,49 e o euro a R$ 6,13 (26/8/24).

As moedas seguem tendência de alta nos últimos meses, impactadas não só pelo cenário internacional, envolvendo eleições americanas, expectativa de corte de juros, conflitos diplomáticos, entre outros, como também pelo cenário nacional, envolvendo alcance de meta fiscal e demais questões políticas que impactam na variação cambial.

Em termos práticos, viu-se que ao longo dos últimos doze meses, essa variação cambial teve um impacto significativo nas transações comerciais internacionais e, para o propósito deste artigo, pode ser motivo de desequilíbrio econômico nos contratos públicos firmados com base em orçamento estrangeiro.

Situações como essa demandam a aplicação da teoria da imprevisão, que se aplica a eventos externos ao contrato, imprevisíveis ou previsíveis com consequências incalculáveis, que afetam o equilíbrio econômico-financeiro de forma alheia à vontade das partes.

A título de exemplo, o TCU, por meio do acórdão 8.032/23, sob relatoria do ministro Benjamin Zymler, pontuou que “(...) variações cambiais com o potencial de ensejar uma onerosidade excessiva a qualquer das partes podem redundar na necessidade de termo aditivo para a recomposição do equilíbrio contratual”, e ainda que “possa existir certa previsibilidade na flutuação do câmbio, e mesmo que possa existir um viés de alta ou de baixa da moeda estrangeira – em virtude das observações recentes do valor cambial – existirá sempre uma imponderação na sua cotação. Esse é, senão, o caso clássico de fato previsível, mas de consequências incalculáveis”.

O acórdão 1.431/17, de relatoria do ministro Vital do Rêgo, já ponderava que devem ser observados parâmetros e definições, especialmente para contratos cujo objeto principal seja a prestação de serviços no Brasil, com importação de bens ou serviços, para se considerar a variação cambial um fator apto a ensejar a recomposição de preços em contratos públicos, a saber:

  1. tratar-se de um fato cujas consequências sejam incalculáveis e não previsíveis pelo gestor médio na celebração do contrato;
  2. causar uma ruptura severa na equação econômico-financeira, impondo ônus excessivo a uma das partes; e
  3. a elevação dos custos deve retardar ou impedir a execução do contrato.

Em notável precedente sobre esse caso, o STJ já se posicionou pela indenização da empresa contratada em razão da desvalorização cambial da moeda brasileira, no ano de 1999. No REsp 1.433.434, o ministro Sérgio Kukina destacou que a mudança “abrupta” na política cambial, naquele caso concreto, caracterizou-se como situação extraordinária, sendo justa a repactuação dos termos ou, visto que o contrato já tinha sido cumprido, a indenização pelas perdas sofridas.

E nem poderia ser diferente. o dever de o Poder Público ressarcir o contratado pelo desequilíbrio da equação econômico-financeira da avença decorre dos preceitos constitucionais, trazidos pelo art. 37, inciso XXI da Constituição Federal, que assegura ao particular que contrata com a Administração Pública a manutenção “das condições efetivas da proposta”, bem como o art. 65 da lei 8.666/93 (lei de licitações e contratos administrativos), por sua vez, dispõe sobre a possibilidade de alteração dos contratos administrativos “para restabelecer a relação que as partes pactuaram inicialmente entre os encargos do contrato e a retribuição da administração para a justa remuneração (…) objetivando a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro inicial do contrato”.

Essa postura é coerente com o dever do Poder Público de ressarcir o contratado pelo desequilíbrio da equação econômico-financeira, conforme estabelecido pelo art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, que garante ao particular contratado pela Administração Pública a manutenção das condições efetivas da proposta, bem como pelo art. 104, §2º, da lei 14.133/21, que dispõe sobre a necessidade de que as cláusulas econômico-financeiras do contrato sejam revistas para que se mantenha o equilíbrio contratual.

Além disso, o direito ao reequilíbrio também se baseia no princípio jurídico que proíbe o enriquecimento sem causa, expresso no artigo 884 do Código Civil, pois a Administração se beneficiaria dos serviços prestados pelo contratado sem remunerá-lo adequadamente.

Assim, entende-se plenamente possível, diante do atual cenário econômico nacional e mundial, a necessidade de se avaliar contratos públicos que tenham sua base orçamentária em moeda estrangeira, ponderando a incidência da teoria da imprevisão, haja vista a alta volatilidade e crescimento da moeda americana e do euro frente ao real brasileiro, de modo que, dependendo do caso específico, o restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato é um dever do Poder Público e um direito do contratado, sendo necessária a adoção de medidas jurídicas para garantir esse direito caso não seja possível obter uma solução pela via administrativa.

Camillo Giamundo
Doutorando e mestre em Direito Administrado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e sócio fundador do escritório Giamundo Neto Advogados.

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