A lei Federal 14.133/21, inobstante o inequívoco avanço civilizatório, pecou em omitir regras relevantes existentes na lei revogada.
Existem omissões quanto aos requisitos dos convênios, omissão quanto à validade das propostas e, ainda, quanto à singularidade do objeto da inexigibilidade. Também houve omissão quanto ao sorteio como critério de desempate e, ainda, quanto à “repescagem licitatória”.
Outra omissão (sem previsão na lei revogada) é quanto ao princípio da primazia da licitação que mesmo não tendo previsão expressa é decorrência do princípio constitucional da eficiência.
Há uma polêmica surgida em razão desta omissão. O uso de uma regra da lei revogada configura (ou pode configurar) o hibridismo vedado pelo artigo 191 da lei 14.133/21.
Sobre os temas já tivemos oportunidade de escrever sobre o uso da “Primazia da licitação e repescagem licitatória1”, bem como do “Fracionamento por hibridismo2”
Hibridismo é uma vedação ao uso concomitante de sistemas
Pedimos licença àqueles que divergem, mas a simples inclusão de uma regra que existiu na revogada lei 8.666/93 não configura o “hibridismo” vedado pelo art. 191 da lei 14.133/21.
O hibridismo tem como regra vedar o uso de dois sistemas licitatórios em vigor. Assim, a opção pelo uso da lei 8.666/93 exclui, necessariamente, o uso da lei 14.133/21.
Nesse sentido é que não se poderia, durante a vigência concomitante das leis 8.666/93 e lei 14.133/21 haver utilização das duas leis para o mesmo objeto. A dispensa de licitação, por exemplo, deveria ser feita por uma das leis. O uso de dispensa com o mesmo objeto “somando” os valores configura aquilo que denominamos de “Fracionamento por hibridismo”.
Não há que se falar em “hibridismo” no atual momento pois a lei Federal 8.666/93 foi, definitivamente, sepultada. Não há hibridismo em relação a uma lei e outra que sequer existe neste mundo.
A utilização de regras que existiram na lei 8.666/93, portanto, não se configura como hibridismo pelo simples fato de que a regra utilizada sequer existe no mundo jurídico.
A regra copiada no edital como uma espécie de saudade legislativa é apenas e tão somente uma regra do edital.
A revogação de uma lei não tem o condão de proibir, automaticamente, o uso de suas expressões e/ou regras num edital pelo simples motivo de ter sido revogada.
O princípio da vinculação edital tem como finalidade preencher lacunas específicas do procedimento licitatório e não pode ser tolhido nem pode sofrer restrições senão quanto aos demais princípio do art. 5º da lei 14.133/21 além de regras jurídicas de maior patamar.
Uso das regras da lei 8.666/93
O risco de configuração do “hibridismo” vedado pelo art. 191 dalei Federal 14.133/21 ficou definitivamente afastado com a revogação da lei 8.666/93.
Assim, regras que facilitem a gestão de contratos podem ser utilizadas e terão a categoria jurídica de “regra do edital” e não regras da lei 8.666/93.
RECOMENDAMOS, inclusive o uso de várias delas por facilitarem a gestão de contratos e não se conflitarem com lei de licitações em vigor.
Temos utilizado o termo “vigência pós mortem” para nos ferirmos às regras dos convênios já que, substancialmente, não houve mudança entre as duas regras sobre convênios senão maior detalhamento por parte da lei revogada. Nesse sentido, remetemos o leitor ao texto3.
No mesmo sentido quanto à singularidade do objeto na contratação por inexigibilidade, conforme mencionamos em nossa obra4.
Quanto à omissão da validade das propostas, não há menção expressa na lei de licitações, mas o bom senso recomenda que haja tal previsão. Na maioria dos entes políticos tem sido utilizado o prazo de 60 previsto na lei 10.520/22. O simples fato do prazo de 60 (sessenta) dias ter previsão na mencionada lei revogada, não torna impossível o uso do mesmo prazo, obviamente.
Da mesma forma, o edital pode incluir como último critério de desempate o sorteio previsto na revogada lei 8.666/93 e, ainda a regra da “repescagem”.
A repescagem tem absoluta adequação com o princípio da “primazia licitatória” já que não faz sentido que a administração pública “prefira” uma contratação direta do que um reinício da licitação onde a competitividade filtra preço e qualidade.
Sobre a regra da repescagem, lembremos do seu teor sob a égide da lei revogada.
“Art. 48
(...)
Parágrafo único - Quando todos os licitantes forem inabilitados ou todas as propostas forem desclassificadas, a administração poderá fixar aos licitantes o prazo de oito dias úteis para a apresentação de nova documentação ou de outras propostas escoimadas das causas referidas neste artigo, facultada, no caso de convite, a redução deste prazo para três dias úteis"
Nada impede, como dissemos, a aplicação da regra acima, desde que haja inclusão no edital, já que a Lei 8.666/1993 foi revogada e, se estivesse em vigor, não poderia ter aplicação num edital regido pela lei 14.133/21 sob pena de configuração do hibridismo. Atualmente, porém, a regra cima não existe como regra legal e pode ser utilizada como regra do edital.
Divergência aparente com o E. TCE/SP
A decisão a seguir transcrita e mencionada por Alexandre Sarquis5, poderia passar a falsa impressão de que divergiríamos da Corte Bandeirante de Contas.
Vejamos:
“Dando seguimento, e avançando na lista de desempate alinhavada no edital, caso opte por certame regido pela Nova Lei de Licitações, a administração não pode empregar o sorteio como parâmetro para adjudicar o objeto.
Com efeito, o art. 60 e respectivos §§ da lei Federal 14.133/21 estabelecem lista fechada e sequencial para solução de igualdades (decorrentes das expressões “serão utilizados” e “nesta ordem”), a qual deve ser rigorosamente obedecida, não estando a sorte entre as possibilidades estipuladas.
Nem se argumente que essa escolha como fator de discriminação pode ser legitimada por empréstimo de mecanismo da lei Federal 8.666/93, uma vez que o § 2º do art. 191 do Novo Diploma Licitatório veda a combinação dessas normas.” TC 6679/989/23, d.j. 17/5/23, con. rel. Cristiana de Castro Moraes.” (grifos nossos).
Notem que a data da decisão é deveras esclarecedora e por isso foi grifada. Na época havia possibilidade de uso de uma das leis licitatórias (8.666/93 ou 14.133/21). O hibridismo, como dissemos, supra, pressupõe a dupla vigência de leis o que, de fato, existia no momento da decisão da eminente Conselheira.
Não há, portanto, divergência do subscritor com a eminente Conselheira, máxime porque o subscritor tem como profissão dar soluções aos operadores das licitações o que significa, na imensa maioria das vezes, adequar-se às Cortes de Contas.
Conclusão
Por todo o exposto, no atual momento legislativo, é possível e por vezes recomendável, a utilização de regras da revogada lei 8.666/93, na condição de regras do edital, desde que não conflitem com as demais regras licitatórias. A “repescagem” e o sorteio (dentre outras) devem constar nos editais pois estão em consonância com a “primazia licitatória” sendo dever do administrador público evitar dispensas que podem ser evitadas por regras expressamente previstas no edital.
1 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/413166/primazia-da-licitacao-e-repescagem-licitatoria
2 Disponível em: SANTOS, Laércio José Loureiro, “Inovações da Lei de Licitações e Polêmicas Licitatória”, Ed Dialética, 3ª Edição, 2.024, Capitulo 15, págs. 161 a 164.
3 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jun-23/loureiro-vigencia-post-mortem-artigo-116-lei-866693/.
4 Disponível em: SANTOS, Laércio José Loureiro, “Inovações da Lei de Licitações e Polêmicas Licitatória”, Ed Dialética, 3ª Edição, 2.024, Capitulo 14.3, pág. 152
5 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-ago-01/anatomia-do-empate-na-nova-lei-de-licitacoes/