Remonta-se a Pero Vaz de Caminha o primeiro ato “cartorário” produzido no país, justamente a carta em que dava notícia da descoberta das novas terras à Coroa portuguesa, que possuía, segundo nossos estudiosos, a natureza de “ata notarial”1. Talvez por tal filiação inicial, tenha-se também aí originado um dos grandes mitos que permeiam o tema “cartório”, sempre levantado por aqueles que, embora bem intencionados, carecem de conhecimento específico e aprofundado sobre o tema, sendo esses, justamente, os que normalmente pregam por mudanças mais drásticas: o mito segundo o qual o cartório seria uma “herança lusitana que só existe no Brasil”.
Muito ao contrário, e neste ponto abordando diretamente os cartórios de notas, a herança “lusitana” fora anteriormente recebida pelos portugueses de seus irmãos castelhanos, os quais, por sua vez, a receberam dos notários franceses e italianos que se faziam presentes em praticamente todas as nações da Europa desde o século XIII.
Especificamente em relação ao “tabelião” – ou, em seu nome mais famoso no exterior, “notário” –, a atividade está presente hoje na maior parte dos países do globo, abrangendo mais de 2/3 do PIB mundial e ¾ da população, conforme dados da UINL - União Internacional do Notariado Latino2 – sendo encontrado em absolutamente todos os países da América Latina, 2 estados americanos, 1 estado canadense, em toda a Europa continental, na Ásia, incluindo China, Japão e Coreia, e em diversos países africanos, sendo considerado um agente de facilitação das transações comerciais entre as diversas culturas, inclusive dentro de um mesmo país3.
Mesmo na Inglaterra, país de onde deriva o sistema da “Common Law”, tradicionalmente oposto às formalidades, existem tabeliães na cidade de Londres, numa câmara com 36 notários4 que são procurados pelas empresas britânicas de forma totalmente facultativa para a elaboração de seus contratos mais solenes, numa tradição de aproximação da Ilha ao Continente que remonta ao século XIV, quando se instalaram os primeiros “scriveners notaries” na capital inglesa5.
A presença de notários em todos os cantos da Terra também desmente outro mito muito disseminado: a de que os notários seriam um custo desnecessário carregado pela economia brasileira. Ao contrário, pesquisas sérias e recentes demonstram que o notário tem, histórica e atualmente, um papel chave na dinamização das transações econômicas.
Assim, os professores da Caltech, Jean-Laurent Rosenthal e Philip Hoffman, juntamente com o professor da Ecole d’économie de Paris, Gilles Postel-Vinay, publicaram em 2019 sua pesquisa demonstrando como durante séculos o trabalho de notários franceses substituiu, com grande eficiência, a subpenetração bancária, histórica entre os gauleses, sendo capazes de movimentar, já em 1840, um volume de crédito que só foi atingido pelo sistema bancário americano em 19506.
Da mesma forma, um pesquisador da Sociedade Italiana de Economia, Demografia e Estatística publicou recente estudo sobre os dados produzidos pelo relatório “Doing Business” do Banco Mundial no tocante às transferências imobiliárias, apontando que “a análise agregada das 190 economias examinadas com o indicador ‘Registrando propriedades’ e seus sub-indicadores (qualidade, velocidade e economia) demonstra que países usando notários nas transações imobiliárias são os mais eficientes”7.
É essa também a visão da FAO, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura, que, ao analisar o papel da justiça preventiva na garantia dos direitos de propriedade, coloca os notários como agentes especialmente importantes, que “devem estar conscientes de suas responsabilidades como atores da justiça e lutar para promover a governança da propriedade e da posse imobiliária no seu campo de atividade”, em especial, “protegendo e estando a serviço das partes mais fracas”8.
Ora, esses últimos dados desmontam ainda outro mito comum, segundo o qual, se não houvessem “cartórios”, o mercado seria mais eficiente. Sobre esse último mito, os professores de Harvard, Peter Murray, e de Friburgo, Rolf Sturner, comparando as transações imobiliárias em 5 países europeus e 2 estados americanos, chegaram à conclusão que os custos eram efetivamente mais altos nos Estados Unidos do que nos países usando o notariado9.
Igualmente, comparando as tabelas públicas das empresas especializadas em transações imobiliárias americanas e as tabelas fixadas para os notários italianos, Eliana Morandi, da Universidade de Trieste, concluiu que nas duas faixas analisadas – para imóveis no valor de 140 e de 350 mil euros – os valores mais baixos cobrados pelas companhias americanas seriam cerca de 400 euros mais altos do que aqueles cobrados pelos notários italianos10.
E no Brasil, por exemplo, desde a promulgação da lei 11.441/07, que autorizou a lavratura de inventários, partilhas, separações e divórcios consensuais em Tabelionatos de Notas mediante escritura pública, os Cartórios de Notas de todo o Brasil têm desempenhado um papel fundamental na desjudicialização, contribuindo para a eficiência e a redução de custos no sistema de justiça.
Os números são expressivos: desde 2007, mais de 2,3 milhões de atos foram realizados pelos cartórios, resultando em uma economia histórica ao Estado. Essa economia advém da redução da sobrecarga do Poder Judiciário e da agilidade com que esses atos são processados extrajudicialmente. Em termos de tempo, o contraste é significativo: enquanto um processo judicial de inventário pode se arrastar por pelo menos 2 anos, no cartório esse mesmo ato pode ser concluído em apenas um dia.
Além do tempo, o custo também é um fator crucial. No âmbito judicial, o custo médio por processo é de aproximadamente R$ 2.369,73. Em contrapartida, a realização de um inventário no cartório custa em média R$ 324,00. Essa diferença não só alivia financeiramente o Estado como também torna o procedimento mais acessível ao cidadão. Desde a implementação da lei, a economia gerada pelos cartórios já ultrapassa R$ 5,6 bilhões11.
Para atingir tal maior eficiência, é certo que o notariado mundial, mas especialmente o brasileiro, teve também de se modernizar. E, nesse aspecto, a digitalização dos cartórios de notas brasileiros é destaque em todo o mundo12, sendo hoje possível lavrar todos os atos notariais, procurações, escrituras, atas e os tão famigerados reconhecimentos de firma através de um único aplicativo – o “E-notariado”, que, em cerca de 4 anos de existência já completou mais de 2 milhões de atos digitais concluídos sem qualquer gasto com deslocamento, com toda a “burocracia” encrustada na palma da mão do usuário.
Mesmo os antes complexos processos judiciais de usucapião e adjudicação compulsória podem hoje ser solicitados de forma totalmente remota para seu início perante um tabelião de notas.
Essa modernização não apenas reduz a carga do Judiciário, permitindo que este se concentre em casos mais complexos, mas também oferece aos cidadãos uma experiência menos onerosa e menos estressante. A extrajudicialização garante um controle maior sobre os procedimentos, com previsibilidade de custos e prazos, além da segurança jurídica proporcionada pela atuação dos tabeliães, profissionais altamente qualificados e fiscalizados pelo Poder Judiciário.
Enfim, mais de 500 anos depois da carta de Pero Vaz, milhares de atas notariais são lavradas nos tabelionatos de notas de todo país, de forma totalmente digital e remota, ironicamente, impulsionadas pelo avanço do mundo digital, em que a “verdade” é produzida e manipulada sem qualquer garantia de perenidade, sendo modificada sem deixar qualquer rastro, pelo que os cidadãos ainda procuram, de forma totalmente facultativa e por sua própria e livre escolha, um notário, para fazer as chamadas “atas de internet”, transformando um conteúdo volátil em um documento perene, com a chancela da confiança depositada pela sociedade, há séculos, no “Cartório de notas” que lavrou o documento.
É justamente nesse mundo de internet, de fácil dispersão de ideias falsas e sem fundamentação científica, que o cartório de notas ganha ainda mais relevância. Não é à toa que o grande “poetinha”, na letra completa de seu consagrado Samba da Benção, assim exigia para comprovar a declaração divina:
“Ninguém vai me dizer que tem
Sem provar muito bem provado
Com certidão passada em cartório do céu
E assinado embaixo: Deus.
E com firma reconhecida!”
Entra ano, sai ano, e as críticas banais aos cartórios se repetem, sem qualquer aprofundamento ou conhecimento de causa.
Talvez a única verdade que comumente se propaga em relação aos cartórios de notas seja a antiguidade de sua instituição, que advém de séculos. Tão antiga quanto as primeiras Universidades do mundo, à idade do notariado poderia ser aplicada, como reflexão, a simples lei da seleção natural: o notariado sobreviveu ao feudalismo, aos Estados totais, à democracia, e à globalização, o que daria provas de ser, talvez, uma das instituições com maior capacidade de adaptação de nossa história. Há de considerar se o verdadeiro problema dos cartórios de notas do Brasil hoje não seja justamente esse: a propagação de textos eletrônicos voltados para a mera captura do tema, sendo construídos por frases fáceis, que se difundem a partir de “verdades” convenientes, enquanto a divulgação de estudos substanciais, meritórios e imparciais, que reflitam a veracidade da realidade, parece ser cada vez mais raro.
1 Nesse sentido, Brandelli, Leonardo. Teoria Geral do Direito Notarial.
2 Disponível em: https://www.uinl.org/. Acesso em 08.08.2024.
3 Ver o Estudo de Edi Natasari, Budiman GInting, Runtung e Syafruddin Kalo, Notary Role in the Development of Sharia-Based Economy. 2019. Em que os autores, pesquisadores indonésios, exploram o importante papel desempenhado pelos notários na formalização de contratos baseados na lei islâmica.
4 Para efeitos de comparação, na cidade de São Paulo, existem 30 tabeliães
5 Disponível em: https://scrivener-notaries.org.uk/. Acesso em 08.08.2024.
6 V. o livro dos autores citados publicado em 2019 pelas Universidades de Princeton e Oxford, Dark Matter Credit .
7 V. CAPPIELLO, Antonio. Doing Business Report and Real Estate Transfers: Far Better with Legal Controls and Notarial Guarantee. 2020.
8 V. FAO. Responsible Governance of tenure and preventive justice. A guide for notaries and other practioners in the preventive administration of justice. 2022.
9 V. a publicação dos professores “The Civil Law Notary: a neutral lawyer for the situation”.
10 Il Notaio: alternativa civilistica alla 'title insurance'? 2005.
11 ANOREG/BR. Cartório em Números: Suplemento Especial Desjudicialização. 5ª ed., 2023, p. 13. Disponível em: https://www.anoreg.org.br/site/wp-content/uploads/2024/01/Cartorios-em-Numeros-5a-Edicao-2023-Especial-Desjudicializacao.pdf. Acesso em: 19 ago. 2024.
12 Tendo sido chamado de “fonte de inspiração na prática de atos eletrônicos para o notariado mundial”. V. Disponível em: https://cnbsp.org.br/2023/12/05/cnb-cf-simposio-mundial-destaca-brasil-como-fonte-de-inspiracao-na-pratica-de-atos-eletronicos/. Acesso em 08.08.2024.