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Tokenização de ativos no Brasil: Enquadramento legal e desafios regulatórios

A tokenização de ativos enfrenta desafios regulatórios no Brasil. A CVM editou normas sobre criptoativos como valores mobiliários e recentemente excluiu tokens de pagamento da Dynasty Global dessa classificação. Tokens envolvem aspectos complexos de direito, computação e economia.

27/8/2024

A tokenização de ativos tem sido tema de grandes debates e repercussão no mercado financeiro e sensível à regulação brasileira nos tempos recentes.  A identificação de um token e o seu enquadramento como valor mobiliário apresentam-se como desafios aos reguladores e aos agentes privados que exploram ativos tokenizados.

Nos últimos dois anos, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários editou, sobre essa temática, o Parecer de Orientação 40/221, que consolida seu entendimento sobre as normas aplicáveis aos criptoativos que se caracterizem como valores mobiliários, e os Ofícios Circulares 04 e 06/232 que, entre outros temas correlatos, orientam os prestadores de serviços envolvidos na atividade de tokenização sobre a provável natureza de valor mobiliário dos chamados “Tokens de Recebíveis” ou “Tokens de Renda Fixa”.  Posteriormente, em abril de 2024, o colegiado da Autarquia manifestou seu entendimento3 a respeito da não caracterização de valor mobiliário dos tokens de pagamento desenvolvidos pela gestora imobiliária Dynasty Global (denominados DYN)4.

A caracterização de um token como valor mobiliário é complexa e envolve conhecimentos de computação, direito e economia. Isso porque tokens circulam em operações que não são estruturadas a partir de um arranjo jurídico, mas sim econômico-tecnológico. Conformá-los a qualquer instituto jurídico exige a compreensão de sua função prática e essência econômica.

Agentes econômicos titularizam e transacionam direitos de propriedade e de crédito por meio sistemas que: (i) registrem precisamente o bem, seu proprietário e eventuais restrições ao direito de propriedade sobre esse bem; e (ii) permitam transações seguras entre os sujeitos de direito.  Tradicionalmente, esses sistemas se ancoram em base de dados mantida pelo Estado ou por agente privado cujo registro da propriedade tenha sido a ele delegado (pelo Estado)5.  

Atualmente, no entanto, há meios alternativos para esse registro, que envolvem: (i) a representação digital de um ativo; e (ii) o seu registro em sistemas de registro distribuído (DLT - distributed ledger technologies), no contexto do que se tem chamado de DeFi – Decentralized Finance – e é nestes cenários em que se destaca o uso de blockchains e a tokenização de ativos.

Blockchains são sistemas de registro distribuído que utilizam codificação computacional e ferramentas criptográficas para armazenar dados.  Nesses sistemas, informações são armazenadas em “blocos consecutivos e encadeados” (por isso o termo blockchain), de maneira que uma nova informação (seja o registro de uma propriedade ou de uma transação, por exemplo) somente é adicionada à cadeia se atender aos requisitos de validação da rede.  Sua utilização no mercado financeiro tem sido difundida em razão dos registros neste tipo de rede serem (i) rastreáveis, (ii) facilmente auditáveis (transparentes) e, em essência, (iii) imutáveis6.

Já a tokenização de ativos se refere à representação digital de um ativo (como ações de uma companhia ou títulos de dívida) a partir do seu registro em uma blockchain. A CMV, no PO 40, classifica os seguintes tipos de tokens: (i) token de pagamento (cryptocurrency ou payment token); (ii) token de utilidade (utility token); e (iii) token referenciado a um ativo (asset-backed token).  Nestes últimos enquadram-se: security tokens; stablecoins; non-fungible tokens (NFTs); e demais ativos objeto de tokenização. E, a par desta classificação, tokens podem (ou não) ser caracterizados como valores mobiliários7.

Na jurisdição brasileira, valores mobiliários são (i) aqueles previstos taxativamente nos incisos I a VIII do art. 2º da lei 6.385/76 ou (ii) quaisquer outros títulos ou contratos de investimento coletivo que, quando ofertados publicamente, gerem “direito de participação, de parceria ou de remuneração, inclusive resultante de prestação de serviços, cujos rendimentos advêm do esforço do empreendedor ou de terceiros”, nos termos do inciso IX do mesmo artigo.

Para enquadramento no conceito aberto do referido inciso IX, a CVM tem, então, exigido os seguintes requisitos (inspirados no Teste de Howey8): (i) aporte em dinheiro ou bem suscetível de avaliação econômica; (ii) contrato ou título que formalize a relação entre investidor e ofertante; (iii) caráter coletivo do investimento; (iv e v) expectativa de benefício econômico (participação, parceria ou remuneração) resultante da atuação preponderante de terceiro que não o investidor; e (vi) oferta pública9.

Dessa maneira, uma vez assim enquadrados, exige-se que tanto o ofertante quanto a oferta atendam aos parâmetros regulatórios da Autarquia e que sejam observadas todas as regras relativas à divulgação de informações (full and fair disclosure).

A dificuldade para o enquadramento de tokens como valores mobiliários, no entanto, reside nas novas formas ainda não abarcadas pela regulação.

No caso Dynasty, por exemplo, o mecanismo de buyback and burn foi central na discussão sobre o possível enquadramento dos DYNs como valores mobiliários.  Pelo referido mecanismo, a Dynasty, com recursos oriundos dos imóveis que adquiria, comprava DYNs disponíveis no mercado para retirá-los de circulação em períodos de “volatilidades anormais”, sob o argumento de gerar escassez para manter o poder de compra dos DYNs.  O colegiado da CVM entendeu, então, que faltaria ao enquadramento dos DYNs como valor mobiliário a “expectativa de retorno econômico resultante da atuação preponderante de terceiro”, posto que o buyback and burn somente se prestaria à manutenção do poder de compra dos DYNs, e não à valorização destes a partir do desenvolvimento de empreendimento comum.

Outro exemplo de difícil enquadramento de tokens como valores mobiliários se dá no âmbito de jogos do tipo “play-to-earn”. Nesses jogos, os esforços do próprio jogador (investidor) podem levar à geração de recompensas (representadas no jogo como tokens).   A companhia emissora dos tokens é responsável apenas pela criação do ambiente (jogo), mas o esforço para a geração e valorização dos tokens advém preponderantemente do investidor.

Diante dessa insegurança jurídica inicial, têm sido especialmente relevantes as experiências em sandboxes regulatórios. Em 2019, por exemplo, a Autoridade Monetária de Singapura permitiu que a fintech BondEvalue lançasse exchange para circulação de tokens inteiramente estruturada em blockchain (a BondbloX), com acesso restrito a investidores cujo patrimônio mínimo fosse de US$ 5 milhões, a fim de testar o funcionamento no mercado desta nova tecnologia somente com players qualificados10.  

Essas iniciativas demonstram a crescente atenção dos órgãos reguladores para aprimorar a fiscalização no setor.  Conforme relatório da Chainanalysis publicado em fevereiro deste ano, cerca de 61,5% do volume total de transações ilícitas envolvendo criptoativos foram medidas a partir de sanções legalmente impostas, evidenciando a intensificação da dedicação dos órgãos regulatórios e aprimoramento de seu enforcement a respeito do tema11.

Com tantas mudanças e inovações, que apresentaram novas especificidades para o enquadramento ou não de um token como valor mobiliário, espera-se que os reguladores sedimentem seu entendimento com o desenrolar dos casos, a partir da compreensão dessas novas tecnologias no mundo real e do seu impacto para o mercado e para os investidores. Agentes econômicos que lidam com ativos tokenizados, portanto, precisarão acompanhar a evolução do entendimento dos órgãos reguladores, para a viabilizar seus empreendimentos de maneira responsável, segura e em conformidade com as exigências legais e regulatórias aplicáveis.

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1 Parecer de Orientação CVM nº 40, de 11 de outubro de 2022 (“PO 40”).

2 Ofício-Circular nº 4/2023/CVM/SSE, de 4 de abril de 2023 e Ofício-Circular nº 6/2023/CVM/SSE, de 05 de julho de 2023.

3 Processo 19957.014289/2022-97.

4 No caso da Dynasty, esta havia formulado consulta à CVM quanto à caracterização do token DYN como valor mobiliário.  Os DYNs, conforme o whitepaper da Dynasty, são “tokens de pagamento (ERC-20) com referência no mercado imobiliário global. [Ocupam] posição distinta no mercado de criptomoedas [...] [pois] mantêm a essência dos tokens de pagamento, que utiliza o potencial máximo da tecnologia blockchain, [enquanto estão] diretamente vinculados a ativos tangíveis do mundo real, especificamente ativos imobiliários”.

A Área Técnica (SSE) havia enquadrado os DYNs como valores mobiliários, o que atraia, portanto, a competência regulatória da Autarquia.  Mas, em votação dividida, o colegiado afastou este entendimento após cerca de dois anos da matéria em discussão: o presidente João Pedro Nascimento e o diretor Daniel Maeda votaram pelo enquadramento, enquanto os diretores Marina Copola, Otto lobo e João Accioly votaram em sentido contrário.

5 No Brasil, são exemplos os cartórios; as instituições integrantes do Sistema Financeiro Nacional (como instituições financeiras e de pagamento); além de infraestruturas do mercado financeiro (como custodiantes e escrituradores de valores mobiliários; e a central depositária mantida pela B3). No entanto, esses sistemas de registro de propriedade são adstritos ao território nacional, o que gera impactos no custo, na velocidade e na transparência em operações transfronteiriças. Não somente, mas o custo de transação, mesmo em território nacional, é elevado, em razão da falta de interoperabilidade entre os sistemas.

6 PORTO, Antônio Maristrello; LIMA JUNIOR, João Manoel de; SILVA, Gabriela Borges. Tecnologia Blockchain e Direito Societário: aplicações práticas e desafios para a regulação. Revista de Informação Legislativa: RIL, Brasília, DF, v. 56, n. 223, p. 11-30, jul./set. 2019. Disponível em: http://www12.senado.leg.br/ril/edicoes/56/223/ril_v56_n223_p11. Acesso em 28.06.2024. Para definição conceitual, ver também: RAUCHS, Michel; GLIDDEN, Andrew; GORDON, Brian; PIETERS, Gina C.; RECANATINI, Martino; ROSTAND, François; VAGNEUR, Kathryn; ZHANG, Bryan Zheng, Distributed Ledger Technology Systems: a conceptual framework. Cambridge Centre for Alternative Finance, ago. 2018. Disponível em: https://www.jbs.cam.ac.uk/faculty-research/centres/alternative-finance/publications/distributed-ledger-technology-systems/. Acesso em 28.06.2024.

7 Merece nota que, quanto aos ativos digitais, incide regime dualista de regulação.  Além da competência regulatória da CVM (relacionada aos ativos caracterizados como valores mobiliários), há também a do Banco Central do Brasil (BCB), conforme a Lei Ordinária 14.478/2022 (o “Marco Legal das Criptomoedas”) e o Decreto 11.563, de 2023.  Prestadoras que se dediquem a atividades de oferta direta, intermediação e custódia de criptoativos (chamadas de VASPs – Virtual Asset Service Providers), somente poderão funcionar no Brasil mediante autorização do BCB.

8 Precedente da Suprema Corte dos Estados dos Unidos, SEC v. W.J. Howey Co., de 1946.

9 PA CVM nº RJ2007/11593, Dir. Rel. Marcos Barbosa Pinto, julgado em 15/01/2008; e PO 40.

10 “Trata-se de um projeto de fracionalização de debêntures, com foco em reduzir as barreiras de entrada de investimentos e o tempo de liquidação [...] houve uma queda no investimento mínimo dos bonds, que saiu de até US$ 250 mil para apenas US$ 1.000, e a liquidação passou a ser instantânea, em vez do antigo D+2. No Brasil, já existem projetos de tokenização em curso dentro dos sandboxes regulatórios do BCB e da CVM. [...] A Vórtx QR Tokenizadora, joint-venture entre uma infratech e uma gestora do mercado cripto, foi criada para tokenizar títulos e estabelecer uma negociação regulada; a OTC estuda a emissão de títulos de dívida em DLT”. ANBIMA. Tokenização de títulos e valores mobiliários, jul. 2022. Disponível em:https://www.anbima.com.br/data/files/6A/02/2A/35/6D597810DA3F0978B82BA2A8/Tokenizacao%20de%20titulos%20e%20valores%20mobiliarios_vf.pdf. Acesso em: 28.06.2024.

11 “Sanctioned entities and jurisdictions together accounted for a combined $14.9 billion worth of transaction volume in 2023, which represents 61.5% of all illicit transaction volume we measured on the year. Most of this total is driven by cryptocurrency services that were sanctioned by the U.S. Department of the Treasury's Office of Foreign Assets Control (OFAC), or are located in sanctioned jurisdictions, and can continue to operate because they’re in jurisdictions where U.S. sanctions are not enforced”. CHAINANALYSIS. The 2024 Crypto Crime Report, fev. 2024. Disponível em: https://go.chainalysis.com/crypto-crime-2024.html. Acesso em: 28.06.2024.

Marcella Munaretto Cabral
Advogada integrante do Monteiro de Castro, Setoguti Advogados. Pós-graduanda em direito societário no Insper Instituto de Ensino e Pesquisa. Bacharela em direito pela Universidade de São Paulo (USP).

Fernanda de Brito Freire do Nascimento
Colaboradora do monteiro de castro, setoguti advogados. Graduanda em Direito pela UFPE

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