Talvez esta pergunta valha alguns milhões de dólares. Respondê-la assim de supetão e dando fim a questão é um pouco mais que impossível. Mas dá para refletir um pouco e apontar algumas causas, quem sabe, e esperar que o leitor talvez possa dar outras e melhores opiniões; mas o fato inconteste é que muito dinheiro e recursos são gastos nessa nossa sociedade belicosa, com litígios muitos que envolvem parcos valores e que consomem a energia de nossos tribunais, e não só deles. E que pior, ao que parece vem aumentando cada vez mais, talvez em parte pelo movimento de polarização.
Com certeza, a razão pela qual nos tornamos uma sociedade altamente disposta a guerrear todos os dias milhares de demoradas batalhas, sujeitas a derrotas, vitórias de Pirro, e com altos custos, certamente decorre de vários fatores.
Somos um povo latino e como dizem alguns, de sangue quente, e seguimos o Direito Romano. Tive oportunidade de viver na Inglaterra por alguns anos, tendo retornado ao Brasil em 2015. Interessado que sou nesse campo, procurei saber sobre as formas de resolução de conflito naquele País. Por lá a estrutura advém do Direito Anglicano. Em geral, conflitos nas escolas são solucionados pelo conselho escolar, que dá voz a todos os lados, ouve as partes, aconselha, emite opiniões, sugere soluções, que em grande parte das vezes são acatadas. Nas empresas, especialmente as grandes, dá-se o mesmo. Há lideranças em bairros e localidades urbanas que também auxiliam na solução de conflitos. E isso é escalado. As pessoas se sentem amparadas, porque tem alguém para ouvir suas questões e para estender a mão.
Talvez o maior diferencial, pelo menos que eu tenha notado, é que para os britânicos, os mediadores, árbitros e magistrados não são e nem poderiam ser figuras divinas, prontos e aptos a fazer justiça. Pra fazer justiça não dá para ser simplesmente humano. Justiça é coisa lá de outras dimensões, de Deus ou dos Deuses, a depender da fé de cada um. As pessoas que se ativam nas funções jurisdicionais são meros seres humanos, que se espera sejam vocacionados, escolhidos e treinados para resolver os conflitos ou propor soluções razoáveis, a partir de fatos e versões, e com base em códigos civilizatórios. Não fazem justiça, mas aplicam normas, equilibram relações, agem com bom senso, dão uma resposta razoável.
Esse entendimento diverso, por si, qualifica as expectativas de forma muito distinta do que ocorre aqui. Parece incrível, mas caso alguém se disponha, aqui entre nós, a ouvir uma parte e depois outra em um litígio, é absolutamente curioso, mas as duas tem 100% de razão, e narram fatos de óticas absolutamente distintas, puxando a verdade sempre para si, e batem o pé. Ignoram a singela máxima de Drummond; em que pontua que a porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez.
Nesse contexto, parece óbvia a razão pela qual os esforços de implantação de sistemas de mediação e arbitragem no País tem resultados muito tímidos. Por falta de alteridade e muita teimosia, vão-se todos os litígios para o judiciário, que em muitos casos vem cumprindo sua função de tentar oferecer formas mais simples e ágeis de resolução de conflitos.
Na justiça comum, temos os juizados especiais. E nesses, há a possibilidade de seguir-se com processos digitais. Mas é uma loucura, por exemplo, a quantidade de processos individuais, um a um, que tem de ser solucionados contra grandes empresas, com objetos idênticos ou muito parecidos. E os setores se repetem. Telefonia, bancário, planos de saúde, aéreas, sites de varejo on-line etc. São questões que em grande parte poderiam ser solucionados por ações coletivas e civis públicas, em que depois de ganhas os consumidores teriam somente que se habilitar, ou ainda na execução já ser determinado o pagamento direto aos consumidores.
E as empresas se beneficiam repetidamente da falta de legitimidade de diferentes órgãos para a propositura dessas ações. Em diversos países existem as class actions. E por que aqui não? É simples, pelo lobby dos poderosos. Imagine-se que na justificativa do porquê projetos como esses não vingaram, estão argumentos de que nossa sociedade ainda não está evoluída a esse ponto. Ou seja, nossa sociedade apenas está evoluída ao ponto das grandes corporações poderem fazer o que quiserem com nossos consumidores.
Outro problema gritante, sem correspondente mundial, é a demora e o descaso com o cidadão que tem algo a receber do Erário. Deixa até de ser um descaso para se tornar uma violência. Poder-se-ia criar um sistema de solução pelo menos para as pequenas dívidas. Uma central de acordos para casos, por exemplo, até 50 ou 100 salários-mínimos que fosse, nem que alcançasse somente as pessoas físicas. Diversos países fazem isso. Mas não, aqui tudo que envolve órgãos públicos é uma complicação sem fim. Você toma uma multa por rodízio e tem 30 dias pra pagar, senão tem mais multa, depois tomam até seu veículo. Se cair em um buraco que mais parece uma cisterna e quebrar todo seu carro, para receber da municipalidade, e se receber, vão-se 20 anos ou mais. E tem de ser por intermédio de um processo judicial. Ninguém compreende nosso sistema. E muitas vezes para receber você ainda tem que aceitar dar um grande desconto ao Erário.
As questões trabalhistas são um caso a parte. São dezenas de milhares de ações. No curso de um percentual muito significativo as empresas desaparecem e nada é recebido. A quantidade de verbas e direitos e a dificuldade de sua apuração é uma dificuldade, especialmente para empresas menores e pessoas físicas. A gratuidade incentiva alguns advogados a requererem o impossível e calcularem valores astronômicos. O procedimento, que deveria ser simples, é formal e demorado. Espera-se por vezes mais de ano por uma primeira audiência. Não há uma forma mais simplificada de processo. Os ritos sumários não o são. Não há sequer um despacho saneador que decida quais as provas necessárias ou se a inicial está em termos; assim, por vezes após mais de um ano, na audiência, a ação é extinta e começa tudo de novo. As ações coletivas de Sindicatos costumam ser rejeitadas por juízes de primeira instância, obrigando os substitutos processuais a subirem com os processos aos tribunais superiores para seu conhecimento. Ou os juízes primeiros, em parte, não tem conhecimento de direito coletivo, ou estranhamente tem medo de perder seu emprego, julgando erroneamente que ele depende de uma jornada exaustiva de trabalho. Tudo isso contribui para que o número de acordos seja aquém do esperado. São pouquíssimos os tribunais que não gastam mais para sua manutenção do que a soma de todas as indenizações pagas em cada ano.
Os efeitos que a possibilidade de qualquer processo subir até a mais alta instância, em grau extraordinário, nem que seja por subterfugio de recursos quase inomináveis, causa na demora dos processos e reflete na dificuldade de se alcançar acordos, é também patente.
Fiquemos por aqui, para não nos alongarmos descrevendo outras mazelas.
Nesse ambiente, os litígios são cada vez mais incentivados. Os acordos ficam cada vez mais longe de ser realizados. Os cidadãos contribuintes têm raiva do Erário, os consumidores não morrem de amores pelas empresas, os trabalhadores não veem com bons olhos as empresas. As empresas têm receio até por vezes de facilitarem a vida dos trabalhadores, pois algumas atitudes benéficas podem provocar futuras ações. Forma-se um círculo vicioso de litígios muito difícil de ser quebrado. Uma cultura arraigada. Cultura regada pela falta de confiança, pelo medo de ser lesado.
Esse o aspecto que gostaria de comentar nesse breve artigo. São apenas algumas impressões sobre alguns poucos fatores formadores e fomentadores desse ambiente litigioso que habitamos. A mudança dessa cultura somente será alcançada com muito esforço. Com a ação conjunta de nosso legislativo, judiciário, governo, instituições, empresas e cidadãos. Todas as opiniões e reflexões, a meu entender, são muito válidas.