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Reflexões sobre a desconsideração da personalidade jurídica de fundos de investimento

O STJ afirma a ausência de personalidade jurídica nos FI, porém, admite a desconsideração da personalidade jurídica em casos excepcionais, o que merece debate apropriado dos operadores do Direito.

27/8/2024

O objetivo do presente artigo é estimular o debate a respeito da desconsideração da personalidade jurídica de fundo de investimento, conforme admitido, ainda que de forma excepcional, pelo STJ no julgamento do REsp 1.965.982/SP1.

O precedente é relativamente recente (julgamento em 5/4/22) e o único, s.m.j., sobre o tema e com admissão da desconsideração da personalidade jurídica até então constante no repositório de jurisprudência do STJ.

A reflexão a respeito do tema é pertinente, considerando o crescimento exponencial na constituição de fundos de investimento, dos valores neles aportados e do seu papel cada vez mais relevante como destino de aplicação de investimentos.

Segundo a ANBIMA - Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais2, o patrimônio líquido (PL) dos fundos de investimento atingiu R$ 9,2 trilhões em julho deste ano. O valor representa um aumento de 15% em comparação a julho de 2023, quando somou R$ 8 trilhões (...).”

O aumento da relevância econômica dos fundos de investimento é inegável, daí porque assume, também, relevância jurídica.

Por sua vez, o precedente aqui discutido deve ser objeto de debate. O posicionamento adotado pelo STJ merece reflexões sobre o seu acerto e congruência com o sistema do direito civil brasileiro.

Nele, de forma excepcional, o STJ admitiu a desconsideração da personalidade jurídica de fundo de investimento uma vez comprovado o abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros), e/ou confusão patrimonial.

Claro, o problema que se impõe de imediato é que os fundos de investimento não têm personalidade jurídica a ser desconsiderada, como admitido a própria ementa do REsp 1.965.982/SP:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. IMPUGNAÇÃO À EXECUÇÃO. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISDICIONAL. CERCEAMENTO DE DEFESA. NÃO OCORRÊNCIA. PRODUÇÃO DE PROVAS. NECESSIDADE. REEXAME DE PROVA. SÚMULA 7/STJ.

DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. PEDIDO E DECISÃO JUDICIAL ANTERIOR. EXISTÊNCIA. REGULARIDADE FORMAL. FIP - FUNDO DE INVESTIMENTO EM PARTICIPAÇÕES. NATUREZA JURÍDICA. CONDOMÍNIO ESPECIAL. COTAS. CONSTRIÇÃO JUDICIAL. POSSIBILIDADE.

(...)

6. Embora destituídos de personalidade jurídica, aos fundos de investimento são imputados direitos e deveres, tanto em suas relações internas quanto externas, e, não obstante exercerem suas atividades por intermédio de seu administrador/gestor, os fundos de investimento podem ser titular, em nome próprio, de direitos e obrigações.

7. O patrimônio gerido pelo FIP pertence, em condomínio, a todos os investidores (cotistas), a impedir a responsabilização do fundo por dívida de um único cotista, de modo que, em tese, não poderia a constrição judicial recair sobre todo o patrimônio comum do fundo de investimento por dívidas de um só cotista, ressalvada a penhora da sua cota-parte.

8. A impossibilidade de responsabilização do fundo por dívidas de um único cotista, de obrigatória observância em circunstâncias normais, deve ceder diante da comprovação inequívoca de que a própria constituição do fundo de investimento se deu de forma fraudulenta, como forma de encobrir ilegalidades e ocultar o patrimônio de empresas pertencentes a um mesmo grupo econômico.

9. Comprovado o abuso de direito, caracterizado pelo desvio de finalidade (ato intencional dos sócios com intuito de fraudar terceiros), e/ou confusão patrimonial, é possível desconsiderar a personalidade jurídica de uma empresa para atingir o patrimônio de outras pertencentes ao mesmo grupo econômico.

10. Hipótese em que a desconsideração inversa da personalidade jurídica foi determinada com base em desvio de finalidade e confusão patrimonial, não constituindo o recurso especial a via processual adequada para modificar as conclusões do acórdão recorrido, obtidas a partir da análise da documentação juntada aos autos. Incidência da súmula 7/STJ.

(...)

(g.n.)

Há tempos se consagrou a lição de que personalidade jurídica se relaciona intimamente com o ser sujeito de direitos. Nesse sentido, a personalidade jurídica é um status, uma qualidade da qual são investidas as associações, as sociedades, as fundações, as organizações religiosas e os partidos políticos (art. 44, Código Civil), tornando-se, dessa forma, sujeitos de direitos.

André Santa Cruz3, ressoando a mais sólida doutrina, afirma que “a principal consequência da personificação das sociedades é o reconhecimento da sociedade como sujeitos de direitos, ou seja, como ente autônomo dotado de personalidade própria – distinta da pessoa dos seus sócios – e com patrimônio também próprio, que não se confunde com o patrimônio dos seus sócios”.

Com a personificação, o sujeito de direito assume patrimônio próprio. Tendo patrimônio distinto do patrimônio dos seus sócios, é possível impor limitação de responsabilidades deste pelas dívidas da pessoa jurídica. A autonomia patrimonial, aliás, é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos (art. 49-A, parágrafo único, CC).

Claro, havendo abuso da personalidade jurídica, ela pode ser desconsiderada “para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso” (art. 50, Código Civil).

Essa mecânica personificação à separação patrimonial não se verifica no processo de constituição de um fundo de investimento. Isso porque, a lei expressamente afirma que os fundos de investimento são comunhão de recursos e constituído sob a forma de condomínio de natureza especial (art. 1.368-C, Código Civil).

Ainda que se admita que os fundos de investimento sejam “verdadeiros e integrais sujeitos de direito e obrigações, centros de imputação de direitos e deveres4, o fato é que são despersonalizados.

Daí porque, em que pese a eficácia da ordem judicial de constrição judicial de patrimônio até então protegido, não houve, de qualquer forma, a desconsideração da personalidade jurídica do fundo de investimento, pelo simples motivo de que tal personalidade jurídica não existe.

Poderíamos dizer, então, que o que ocorreu, no mundo real, foi a desconsideração da proteção do patrimônio gerido pelo fundo de investimento a permitir a responsabilização dele por dívida de um único cotista.

Não haveria, então, dentro do CC, outros institutos que se adequem melhor à pretensão de responsabilização do fundo pela dívida de um cotista?

Não podemos esquecer que o CC vigente, longe de ser rígido, possui, na verdade, certa maleabilidade que permite a subsunção de seus diversos institutos à diversas realidades.

É Miguel Reale5, um dos arquitetos do atual Código Civil, que aponta que a opção por normas genéricas ou cláusulas gerais no texto do CC/02 se deu “a fim de possibilitar a criação de modelos jurídicos hermenêuticos, quer pelos advogados, quer pelos juízes, para contínua atualização dos preceitos legais.”

Enquanto a parte geral do Código Civil traz a previsão da desconsideração da personalidade jurídica das pessoas jurídicas, também prevê diversos institutos expressos em normas genéricas e cláusulas gerais que podem ser utilizados para as inúmeras complexidades jurídicas que surgem do dinamismo da vida social e econômica.

Indago, por exemplo, se as disposições concernentes ao negócio jurídico, em especial no que tange à anulabilidade, nulidade e invalidade, não seriam mais recomendáveis para o alcance de patrimônio gerido pelo fundo de investimento do que o uso indiscriminado e sem aprofundada discussão do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, ainda mais considerando que, no primeiro caso não estaríamos diante de uma incongruência jurídica decorrente da desconsideração de um status inexistente.

Ainda que não se ignore a necessidade de decisões eficazes e que, na prática, acabem por resolver a lide, devemos ter cuidado no implemento de remédios jurídicos criados em descompasso com o sistema jurídico em questão.

No caso, pondera-se se a desconsideração da personalidade jurídica de fundos de investimento – entes despersonalizados – não acaba por distorcer o conceito de pessoa jurídica e suas implicações e, por consequência, contribuir para a já notória insegurança jurídica, considerando que, ao que parece, se trata de movimento de interpretação excepcional que deforma conceitos jurídicos sobre os quais se assentam dispositivos legais de conteúdos mais específicos.

Não se trata, a meu ver, de inofensiva manipulação de institutos jurídicos sem que haja significativas consequências no seu entendimento, aplicação e debate jurídico a respeito.

Tendo esse quadro geral em vista, é o caso de se retomar o debate acerca da possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica de fundos de investimento e eventuais opções legais para alcance de patrimônio protegido que façam mais sentido com a estrutura jurídica vigente.

A segurança jurídica, tão abalada nos tempos atuais, precisa ser homenageada e buscada como um elemento cuja importância não se restringe a promover um debate teórico sólido, mas que guarda relação íntima com diversas dinâmicas sociais caras para a nossa vida prática, em especial a econômica.

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1 STJ, 3ª Turma, REsp 1965982 / SP, Min. Rel. Ricado Villas Bôas Cueva, j. 05/04/2022.

2 Disponível aqui: https://www.anbima.com.br/pt_br/institucional/a-anbima/posicionamento.htm

3 SANTA CRUZ, André. Sociedades: Normas Societárias do Código Civil Comentadas: volume 1 / Fábio Ulhoa Coelho, coordenação. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

4 CEREZETTI, Sheila C. Neder; YAMAJI, Crisleine Barbosa; LIMA, Thais Vieira. Direitos dos fundos de investimento. Coordenação: Fernando Kuyven. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2023.

5 REALE, Miguel. Visão geral do novo Código Civil. Revista de Direito Privado. Vol. 9/2002. p. 9 – 17. Jan – Mar: 2002. DTR\2002\41

Eduardo Almeida Fabbio
Advogado no GHBP Advogados. LL.M. em Direito Corporativo pelo IBMEC (cursando), pós-graduado em Direito Empresarial pela Escola Brasileira de Direito e pós-graduado em direito internacional pela Escola Paulista de Direito.

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