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A (im)possibilidade de renúncia ao direito concorrencial sucessório pelo cônjuge

Reflexões sobre a possibilidade ou não de renunciar ao direito sucessório do cônjuge/ companheiro em pacto antenupcial ou contrato de convivência.

26/8/2024

O Direito das Sucessões, apesar dos avanços sociais, ainda impõe grandes restrições à autonomia privada, especialmente no que se refere aos herdeiros necessários. O CC/02, em seu art. 1.845, inclui o cônjuge entre os herdeiros necessários, juntamente com ascendentes e descendentes. Essa inclusão acarreta várias restrições, como a impossibilidade de exclusão do cônjuge da herança e a reserva da metade do patrimônio, conhecida como legítima.

Essa situação cria um conflito entre a liberdade conferida pelo Direito de Família e as limitações impostas pelo Direito das Sucessões. No âmbito familiar, o casal tem a liberdade de escolher o regime de bens por meio de um pacto antenupcial, no caso do casamento, ou por meio de um contrato de convivência, no caso da união estável.

A escolha pelo regime de separação total de bens, em especial, reflete o desejo de que os patrimônios de cada cônjuge não se misturem, especialmente em casos onde há filhos de relacionamentos anteriores.

Entretanto, no regime da separação total de bens, surgem dois efeitos distintos dependendo da causa do término da relação: o divórcio ou o falecimento. No divórcio, de fato as expectativas do casal são atingidas e os patrimônios não se misturam, permanecendo cada um com seu patrimônio individual. Porém, em caso de falecimento, o cônjuge sobrevivente concorre na herança com descendentes e ascendentes, conforme previsto no art. 1.829 do CC.

Diante desse cenário, muitos casais, ao tomarem conhecimento das consequências sucessórias, optam por não se casar, buscando evitar a aplicação dessas regras. A situação é ainda mais complexa considerando que o art. 426 do CC, respaldado por parte da doutrina e algumas decisões judiciais, considera nula qualquer estipulação em pacto antenupcial ou contrato de convivência que vise renunciar à herança de pessoa viva.

Essa proibição revela uma grande contradição: permite-se ao casal decidir livremente sobre o patrimônio em vida, mas essa liberdade é limitada no caso de falecimento de um dos cônjuges. No entanto, a doutrina e a jurisprudência têm defendido a relativização dessa norma, especialmente no que diz respeito ao cônjuge e ao companheiro.

Rolf Madaleno, um dos defensores dessa relativização, argumenta que:

"Os pactos matrimoniais devem atender, em respeito ao princípio da liberdade contratual, a todas as questões futuras, enquanto lícitas, recíprocas e suficientemente esclarecidas, acerca dos aspectos econômicos do casamento ou da união estável, permitindo que seus efeitos se produzam durante o matrimônio ou com sua dissolução pelo divórcio ou pela morte, contanto que as cláusulas imponham absoluta igualdade de direitos e obrigações entre os cônjuges e conviventes no tocante ao seu regime econômico familiar e sucessório, merecendo profunda ponderação a constatação de que a autonomia privada, ao respeitar o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, confere amplo poder discricionário nas relações patrimoniais dos cônjuges e conviventes (MADALENO, Rolf. Renúncia de herança no pacto antenupcial. Revista IBDFAM, Belo Horizonte, v.27, p 18-19, jan./fev. 2019)

Inclusive, nosso ordenamento,no o §2º do art. 113 do CC, estabelece que as partes “poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei.” Isso reforça a possibilidade de as partes acordarem, antecipadamente, sobre a renúncia ao direito concorrencial sucessório, seja por pacto antenupcial ou contrato de união estável.

Propostas de alteração legislativa

O anteprojeto de reforma do Código Civil traz uma importante novidade no âmbito das sucessões: a exclusão do cônjuge do rol de herdeiros necessários. Ainda que o cônjuge continue na ordem de sucessão hereditária prevista no art. 1.829 do CC, atrás de descendentes e ascendentes, essa mudança representaria um avanço significativo na autonomia privada dos casais.

A proposta cria, ainda, a possibilidade de cônjuges renunciarem à herança deixada pelo marido, esposa ou companheiro em caso de morte. A renúncia à herança poderá vigorar em pacto antenupcial ou em contrato de união estável.

Entretanto, até que essas mudanças legislativas sejam efetivadas e os tribunais consolidem o entendimento sobre a renúncia antecipada ao direito concorrencial sucessório, é fundamental adotar medidas para minimizar possíveis consequências. A utilização de outros instrumentos de planejamento patrimonial, como por exemplo o testamento, em conjunto com a renúncia pactuada em pacto antenupcial ou contrato de convivência, é recomendada para garantir que a vontade das partes seja respeitada.

Conclusão

Em conclusão, a renúncia ao direito concorrencial sucessório pelo cônjuge é um tema que ainda gera controvérsia e exige cautela. A doutrina e a jurisprudência têm caminhado para uma maior flexibilização das normas, mas até que haja uma alteração legislativa consolidada, é prudente adotar instrumentos complementares, como o testamento, para assegurar a autonomia privada e o respeito à vontade dos cônjuges.

Isabela Lourenção
Advogada especialista em Direito das Famílias e Sucessões e que atua no planejamento, proteção e regularização da família e patrimônio.

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