A Câmara dos Deputados acaba de aprovar o texto base do projeto de lei complementar 108/24 que regulamenta a reforma tributária e, dentre outros temas, dispõe sobre o ITCMD - Imposto de Transmissão Causa Mortis e Doação. No art. 160, há a seguinte previsão:
Art. 160. O ITCMD incide sobre a transmissão de quaisquer bens ou direitos:
§ 5º Consideram-se, ainda, como doações, para fins da incidência do ITCMD, em transmissões entre pessoas vinculadas:
- os atos societários que resultem em benefícios desproporcionais para sócio ou acionista praticados por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação, incluindo distribuição desproporcional de dividendos, cisão desproporcional e aumento ou redução de capital a preços diferenciados;
O referido artigo parece ter passado despercebido pelo mundo jurídico, embora não por alguns deputados5 que apresentaram as Emendas 13, 22, 24, 35, 44 e 80, todas no sentido da retirada da previsão. Nas emendas os deputados contrários à proposta advertem diversos riscos, dentre eles que a disposição implica ofensa à segurança jurídica e à previsibilidade, ataque à autonomia privada e à liberdade contratual, impacto negativo na economia.
A norma proposta atinge de forma preocupante as relações societárias em todo o país.
A legislação brasileira, historicamente, permite que os sócios estipulem quanto cada um terá direito a receber dos lucros da sociedade, não sendo obrigatória a distribuição dos lucros de forma rigidamente proporcional à participação que cada um possui na sociedade.
A faculdade de distribuição desproporcional é antiga: era admitida e hoje encontra previsão legal tanto na lei das S.A. (lei 6.404/76) como no Código Civil vigente (arts. 997 e 1.007).
Alguns exemplos são suficientes para evidenciar como esta faculdade é fundamental para o desenvolvimento da atividade econômico-empresária.
- Um dos sócios possui o capital necessário para estruturar a atividade, ao passo que o outro, sem recursos, é quem possui maior talento para desempenhar o objeto social. É natural que aquele que investe o dinheiro seja titular de uma fatia maior da sociedade, enquanto o outro, principal responsável pelo desenvolvimento da atividade, recebe lucros em maior proporção.
- Um dos sócios, que possui personalidade única, carismática, extrovertida e espontânea, em determinado ano é o responsável, sozinho, por atrair mais da metade dos clientes atendidos, em que pese ter a mesma quantidade de cotas. Parece razoável que, ao invés de uma proporção igualitária, receba dividendos em valor superior ao dos demais sócios.
- Um dos sócios tem uma ideia genial e, a partir dela, desenvolve um novo produto que logo se torna o principal ativo da sociedade, campeão de vendas por mais de uma década. Em reconhecimento, os demais sócios acordam em atribuir a ele uma proporção maior nos lucros distribuídos.
Todas as hipóteses configuram atos negociais lícitos de repartição de lucros e há mais de um século permitem maior liberdade na ambiência empresarial e crescimento econômico via investimentos.
O dispositivo proposto não proíbe essa distribuição desigual, mas passa a considerá-la como doação (e, portanto, sujeita à incidência do ITCMD) sempre que se der “por liberalidade e sem justificativa negocial passível de comprovação”.
Contudo não se sabe o que será considerado como “por liberalidade”, ou “justificativa negocial passível de comprovação”.
O projeto não apresenta critério objetivo, deixando à autoridades fiscais e posteriormente ao judiciário a missão de arbitrar o que é e o que não é justificável.
Para além da imprevisibilidade das decisões, atribui ao contribuinte o ônus de comprovar uma justificativa que, por vezes, não é passível de comprovação ou constitui verdadeira prova diabólica.
Por exemplo, talento profissional não é objetivamente aferível. No cenário atual, esta prova é desnecessária, cabendo esta decisão aos sócios. Aprovado o projeto, não conseguindo demonstrar o maior talento por meio de provas, o sócio minoritário estaria sujeito ao recolhimento de imposto sobre doação, quando doação não há.
O segundo exemplo é ainda mais ilustrativo. Como poderia o extrovertido sócio, responsável pela captação da maior parte dos clientes, provar que as contratações têm por origem a sua habilidade pessoal, e não outra causa? Teria ele de provar que joga golfe todas as terças-feiras com aquelas pessoas, e nestas oportunidades, os aproximou do negócio desenvolvido pela sociedade? Seria essa a justificativa negocial?
No último caso, seria possível comprovar que a “grande ideia” foi sua? E por quantos anos seria considerada “justificada” a distribuição desigual em favor do inventor?
Ao presumir que a distribuição desigual é utilizada para dissimular doação, a regra projetada contraria princípio geral de direito, de que a má-fé não se presume.
A discussão sobre eventual incidência de ITCMD na distribuição desproporcional não é estranha às autoridades fiscais e bem serve a demonstrar a divergência de posicionamentos sobre o tema, bem como o excesso de exigências pelas autoridades fiscais para que a distribuição desproporcional seja considerada como ato negocial.
Em 20196 a SEFAZ - Secretaria da Fazenda do Estado do São Paulo, respondeu a consulta fiscal 20952M1/19, respondendo que não haveria incidência de ITCMD, desde que a distribuição tenha sido definida em acordo prévio, registrada em contrato social, e a definição dos percentuais seja realizada antes da distribuição dos lucros, contudo fazendo constar da decisão, que mesmo na existência destes elementos probatórios, constando previsão da desproporção na distribuição em contrato social, se a receita entender a existência de “liberalidade” ou de “animus donandi” seria ainda passível de incidência de ITCMD.
Em consulta anterior (Consulta 398/12 DE 4/2/15) a mesma autoridade fazendária estabeleceu parâmetros ainda mais restritivos, como a existência de acordo prévio devidamente registrado no contrato social, estipulando precisamente o percentual que cada sócio receberá quando houver as distribuições de lucro.
Os Tribunais já analisaram a matéria (de forma muito tímida) e sempre em torno da “regular” distribuição desproporcional, não havendo, contudo, definição clara jurisprudencial.
Em julgados de 2020 e 2021 o TJ/PR, afastou a incidência de ITCMD sobre a distribuição desproporcional de lucros, mesmo quando a divisão desproporcional não estiver prevista no contrato social (fato que a Receita Federal exige). O TJ/R considerou como suficiente a existência de ata de reunião entre os sócios.
No CARF, o acórdão 1301-006.803, resume o entendimento fazendário federal de que seriam “requisitos formais” para a distribuição desproporcional:
- Necessidade de preestabelecimento no contrato social da distribuição desigual de lucros;
- Existência de atas de assembleias, reuniões que tratem especificadamente das distribuições antecipadas de dividendos de forma desproporcional;
- Necessidade de comprovação contábil do lucro e forma de divisão;
- Necessidade de registro das atas nos órgãos competentes;
- Necessidade de estabelecimento de critérios para distribuição diferenciada que conste de documentos anteriores (preferencialmente do próprio contrato social).
Ficam conceitos abertos, e a consequência de seus empregos irrefletidos já pode ser antevista: a autoridade fazendária terá interpretação mais favorável à caracterização como doação, o contribuinte defenderá se tratar de regular distribuição de lucros, a divergência levará centenas de novos processos aos tribunais, que oscilando entre as posições, levarão décadas até a formação de uma jurisprudência uniforme sobre o que caracteriza uma “justificativa negocial passível de comprovação”.
E segundo as decisões até agora proferidas sobre o tema, a definição dependerá do órgão responsável pela interpretação e, até no mesmo órgão, a data em que se manifestará sobre o tema.
Há o famoso precedente de 1817 que mostra como a questão é controversa. Quando o Estado de Nova York determinou a inspeção compulsória dos barris de óleo de peixe para evitar que os comerciantes lograssem os consumidores ao misturar considerável quantidade de água, que ficava oculta sob o óleo. Em dado momento, os agentes da fiscalização quiseram submeter também os barris de óleo de baleia do sr. Judd ao procedimento de inspeção, o qual de pronto se negou, explicando que se tratava de óleo de baleia, cientificamente reconhecida como mamífero, e não como peixe. Judicializada a questão, o júri de Nova York decidiu que, para o direito, a baleia é peixe.
De certo modo, o texto-base faz o mesmo.
Dá natureza jurídica presumida de doação à distribuição desproporcional de dividendos. A regra presume (na medida em que exige prova em sentido contrário) que toda sociedade que utilize deste mecanismo, está em verdade está a encobrir um fraudulento desejo de doar valores entre sócios, algo que, permissa vênia, não admite presunção tampouco corresponde à prática social.
Ao fim, a regra projetada, que visa maior arrecadação, provavelmente redundará em pouca eficiência e, ao invés da aumentar os bolsos do tesouro, muito possivelmente gerará mais custos para Estado na fiscalização e judicialização da matéria. Para além, a insegurança que recairá sobre a faculdade de distribuição desproporcional de lucros refletirá de forma grave no desenvolvimento econômico, no fomento aos investimentos estrangeiros, entre outros, que constituem os objetivos perseguidos pela reforma tributária.