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Leilão – Contribuição para a efetividade do processo

O artigo discute a evolução do processo civil no Brasil, enfatizando a importância da efetividade e da entrega de resultados concretos para as partes envolvidas. A ideia central é que o processo não deve apenas gerar sentenças, mas também proporcionar soluções práticas e justas, equilibrando os direitos de credores e devedores.

21/8/2024

A ideia de que do processo se deva esperar efetividade, isto é, que através dele se alcance um objetivo concreto, de modo a satisfazer quem do processo necessite, é, por incrível que pareça, relativamente nova entre nós, ao menos com a clareza com que, hoje, em nossos estudos de processo civil, a entendemos.

Há muito pouco tempo, o grande objetivo do processo era a obtenção de uma sentença de mérito transitada em julgado ou, como sustentavam grandes nomes da doutrina processualista, na década de 60, o escopo do processo era o de impor a regra jurídica concreta que, com fundamento no direito vigente, fosse apta a regular a situação jurídica posta em juízo pela parte.

Com o passar do tempo a doutrina passou a sustentar – exatamente na linha do que a doutrina italiana também o fazia, que o processo deveria ter como objetivo entregar para a parte o “bem da vida”, isto é, o resultado concreto, no plano prático, ou, em linguagem mais simples, aquilo que a parte que procurava o sistema judicial dele esperava como resposta.

Certamente que os jurisdicionados não se contentariam com meras palavras, isto é, com uma sentença judicial transitada em julgado, mas sim com o resultado prático equivalente a tudo aquilo que teriam se do processo não tivessem necessidade.

Em razão dessa obviedade é que se passou a estudar o chamado processo civil de resultados, quer dizer, um processo capaz de promover transformações concretas e não apenas ideais ou imaginárias, na vida de Maria ou de João, quer dizer, na vida real.

E o processo apto a oferecer resultados concretos, verdadeiros, palpáveis, insere-se no contexto a que fiz referência logo ao início, da efetividade, que, por sua vez, insere-se no contexto da garantia do acesso à justiça ou da inafastabilidade da jurisdição, com assento na Constituição Federal e que não é garantia dotada de força e que busca eficácia e eficiência.

Na lição de Cândido Rangel Dinamarco, a efetividade do processo “significa a sua almejada aptidão a eliminar insatisfações, com justiça e fazendo cumprir o direito, além de valer como meio de educação geral para o exercício e respeito aos direitos e canal de participação dos indivíduos nos destinos da sociedade e assegurar-lhes a liberdade”.1

O acesso à justiça não pode ser a porta de acesso a um labirinto, cheio de surpresas e que, lá no final, resulte em decepção. O acesso à justiça, como se vê hoje, não significa apenas, portanto, a garantia de exercício do direito de ação, de ingresso no sistema judicial, mas também o de a parte ser ouvida, exercer o ônus de argumentar, produzir provas e, ao fim, obter do Estado uma resposta que seja útil, efetiva e tempestiva, de modo a assegurar concretamente os bens jurídicos devidos àquele que tem razão.

E o acesso à justiça, ou à ordem jurídica justa, tem uma de suas formas caracterizada pelo acesso ao sistema judicial, por meio do exercício do direito de ação.

Seria cansativo e profundamente inadequado discorrer de modo exaustivo sobre a classificação das ações ou sobre as modalidades de tutela processual ou, como preferem os processualistas eruditos, sobre os diferentes tipos de eficácia do processo: declaratória, constitutiva, condenatória, mandamental e executiva.

Destaco, ainda que só de passagem, e apenas para lembrar alguns conceitos fundamentais, que a classificação das ações é feita em razão do tipo de providência pedida pelo autor quando do exercício da demanda, isto é, do direito de ação. Esse critério de classificação parte do pressuposto de que toda ação contém determinado pedido de provimento jurisdicional e que é possível estabelecer diferenças entre as ações exata e precisamente na medida da distinção que se faça entre as possíveis providências que João ou Maria pedem em juízo.

Assim, por esse critério vinculado ao tipo de provimento pedido ao Estado, as ações podem ser de conhecimento, de execução ou urgentes. Nas ações de conhecimento, a autora ou autor pedem ao Judiciário que diga quem tem razão. Pede-se que o juiz esmiuce a prova, isto é, o retrato possível dos fatos ocorridos no passado, e depois diga qual é a norma jurídica aplicável.

Já nas ações executivas, a parte não pede ao juiz para que observe e avalia as provas daquilo que aconteceu no passado ou que diga qual a norma aplicável, mas, sim, que garanta resultado prático, fisicamente concreto, por exemplo, a retirada de um bem imóvel do patrimônio do devedor e sua alienação para entregar o dinheiro obtido ao credor (nas ações de conhecimento, os pedidos podem ser declaratórios apenas, constitutivos, em que a parte pede ao PJ que constitua, modifique ou desconstitua determinada situação jurídica, condenatórios, mandamentais ou executivos lato sensu, caso em que a sentença é, em si mesma, apta a produzir efeitos de transformação no mundo real, até mesmo independentemente de pedido da parte).

Após essas rápidas observações, que me propus a fazer a título de sugestão para reflexão a respeito de conceitos de há muito conhecidos, dirijo-me especificamente ao tema, observando, desde logo, que se trata de considerações introdutórias e genéricas, sem discorrer sobre detalhes da modalidade de alienação escolhida, o leilão.

No curso do processo de execução ou da ação de execução a que o legislador chama de fase de cumprimento, ocorrem os atos de força, destinados a fazer cumprir a promessa de efetividade. Eles se caracterizam basicamente pela penhora de bens e, quando for o caso, por sua avaliação.

Evidentemente que esses atos de força, de constrição de bens que pertençam ao patrimônio do devedor, não se podem fazer de forma desequilibrada, de modo a transformar a ação executiva num movimento de desrespeito aos direitos do devedor que, afinal, ainda que nessa condição, tem direitos, inclusive fundamentais, que devem ser respeitados.

A execução deve ser, portanto, equilibrada, num sutil balanço entre princípios que devem garantir direitos de credor e direitos do devedor.

Então, deve haver um ajuste entre a necessidade de que a execução tenha a máxima utilidade e a regra de que ao executado se imponha o menor sacrifício possível.

Segundo já registrou o Superior Tribunal de Justiça, em acórdão de relatoria do Min. Marco Aurélio Bellizze, “o propósito do leilão para alienação de bens do devedor é auferir o maior preço para satisfação dos créditos, respeitando o princípio da menor onerosidade do devedor e a desejável efetividade para o credor. Para tanto, o regime expropriatório estabelece regras e parâmetros a serem observados, erigindo pilares e balizas que sustentam e delimitam a medida extrema”.2

Feita a penhora e a avaliação, tudo adequado à ideia de execução equilibrada, há o passo seguinte, consistente na oportunidade para que o exequente opte por algumas das formas de expropriação, nos termos do art. 825 do Código de Processo Civil.

Interessa, neste espaço, tratar da alienação, prevista no art. 879. Não se trata de investigar ou discorrer sobre a alienação por iniciativa particular, mas, sim, a respeito da alienação por leilão judicial, eletrônico ou presencial, sendo que este modo, o presencial, é subsidiário, e só ocorrerá se for impossível sua realização por meio eletrônico. É importante destacar que a vida real tem suas preferências, apesar de a preferência da lei ser, às vezes, outra.

É importante observar que o leilão é a forma residual de alienação, por ser exatamente o último dos métodos previstos na lei. É o que diz o art. 881 do CPC, ao estabelecer que a alienação far-se-á por leilão judicial “se não efetivada a adjudicação ou a alienação por iniciativa particular”.

A prática tem demonstrado que o leilão é a forma mais utilizada no dia a dia forense.

No cotejo com os demais meios de alienação (incluindo, neste conceito, a adjudicação) o leilão é a forma mais equilibrada de se promover a satisfação do crédito. E essa afirmação pode ser feita com base em vários argumentos.

No leilão, abre-se oportunidade a que interessados participem, fazendo com que tanto credor quanto devedor se beneficiem pela eventual disputa. Quanto mais expressivo o resultado financeiro obtido, mais o credor recebe e menos se sacrifica o devedor. Logo, o leilão é benéfico a ambos. Consequentemente, o leilão é benéfico ao sistema judicial, na exata medida em que permite a obtenção de resultados concretos, de entrega de valores ao credor, e a desoneração do devedor.

Como já enumerei em outra oportunidade, com Eduardo Talamini, há três importantes aspectos do leilão que devem ser levados em conta: “(I) na alienação judicial, mais do que desapropriação do bem, há sua simultânea transferência para patrimônio de terceiro (arrematante); (II) realiza-se procedimento público, destinado a encontrar quem oferece o melhor preço e, em certos casos, melhores condições de pagamento (há licitação, regulada pela lei processual). Os interessados na aquisição do bem disputam entre si, formulando lances (ou lanços), i.e., proposta de pagamento de determinado valor, em determinadas condições; (III) é ato executivo cuja finalidade é a consecução de dinheiro para a satisfação do credor”.3

O leilão é um certame licitatório, em que a maior oferta, como regra, adquire o bem leiloado, nos termos da parte inicial do parágrafo segundo do art. 892 do CPC, podendo haver proposta de pagamento parcelado, mas com preferência legal para a proposta de pagamento do valor à vista, conforme dispõe o parágrafo sétimo do art. 895 do CPC.

O Código é minucioso nesse tema, na medida em que garante segurança jurídica e proporciona condições para que o processo de execução se identifique como um processo de resultados.

Há alguns exemplos que merecem análise.

O primeiro deles é que, nos termos da lei, a apresentação de proposta de arrematação parcelada não suspende a realização do leilão, conforme o art. 895, parágrafo sexto, até porque, no leilão, é bem possível que, dependendo da atratividade exercida pelo bem, possam vir a ser apresentadas propostas de pagamento à vista que, “sempre prevalecerá sobre as propostas de pagamento parcelado”, nos termos do parágrafo sétimo do art. 895.

É de se notar, e trata-se de desafio à reflexão, que o texto do Código não se refere a uma preferência para o pagamento à vista em caso de igualdade de oferta. Diferentemente, prevê que sempre prevalecerá a oferta de lanço a ser pago à vista, ainda que em valor menor do que a proposta de arrematação a prazo.

A dúvida que pode surgir nesse debate é exatamente a respeito do limite a que se possa chegar para definir qual seja o valor menor que deva prevalecer na hipótese de proposta de pagamento à vista, em detrimento do pagamento a prazo.

A prevalência de maior preço, ou de proposta mais vantajosa, referida no parágrafo oitavo, inciso I, do art. 895, ocorrerá se houver duas ou mais propostas de pagamento parcelado.

Com Eduardo Talamini, tenho sustentado que essa previsão legal é discutível: “imagine-se que um interessado propôs a aquisição por determinado valor em três parcelas mensais, e outro, por valor um por cento maior, mas em trinta parcelas mensais e com a aplicação do pior índice de correção monetária possível. Na racionalidade e razoabilidade da vida cotidiana, ninguém teria dúvidas de que a primeira oferta é a melhor. Pela letra da lei, o juiz teria que escolher a segunda. O correto, nessa hipótese, é impor-se ao juiz o dever de proceder ao balanceamento de aspectos da proposta (valores ofertados, prazo de parcelamento, condições de pagamento, índice utilizado para a correção das parcelas etc.), para assim definir qual a melhor”.4

Isso significa dar ênfase, dar força, dar eficácia ao princípio da efetividade da execução, que tem dois lados, isto é, deve ser efetiva para o credor, que recebe seu crédito, e para o devedor, que se vê desonerado da obrigação inadimplida.

Essa é a ideia de execução equilibrada que deve prevalecer, em benefício dos interessados – credor e devedor – e em benefício do próprio sistema jurídico, que é, em última análise, o esteio do Estado de Direito e consequentemente, da democracia.

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1 DINAMARCO, Cândido Rangel. A instrumentalidade do processo. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 1999. p. 271.

2 REsp n. 1.909.299/PR, relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 07.03.2023, DJe de 14.03.2023.

3 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: execução. 19. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 324.

4 WAMBIER, Luiz Rodrigues; TALAMINI, Eduardo. Curso avançado de processo civil: execução. 19. ed. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. p. 332-333.

Luiz Rodrigues Wambier
Advogado; Doutor em Direito pela PUCSP; Professor no programa de Mestrado e Doutorado do IDP - Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa; Membro Consultor da Comissão Especial de Leilões da OAB-RJ.

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