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A sobrevivência do regime jurídico único está nas mãos do STF

O regime jurídico único, previsto no art. 39 da CF/88, obrigava a criação de normas uniformes para servidores públicos. A EC 19/98 alterou esse artigo, sugerindo o fim dessa obrigatoriedade. O STF deve se manifestar sobre essa mudança.

19/8/2024

O regime jurídico único é o conjunto de normas que rege a relação do servidor com seu patrão, o Estado, o texto original da Constituição, no art. 39, fazia previsão expressa que os entes federados deveriam instituir um regime de trabalho único quanto aos servidores públicos ocupantes de cargos efetivos e comissionados pressupondo-se o caráter estatutário, uma vez que tais servidores estão sujeitos a normas específicas, definidas nos arts. 37 a 41 da Constituição Federal.1

Transcreve-se a seguir o artigo da Constituição, em sua redação original:

CF/88 (redação original):

Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os municípios instituirão, no âmbito de sua competência, regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações públicas. (Vide ADI 2.135)

É sobre o regime jurídico único e a alteração proposta por emenda à constituição que o STF terá que se manifestar de forma definitiva.

Com o advento da EC 19/98, conhecida como “emenda da reforma administrativa”, o caput do Art. 39, que tratava sobre regime jurídico único para os servidores da administração pública direta, das autarquias e das fundações foi alterado, fazendo prevalecer uma interpretação de que havia findado a obrigatoriedade do regime jurídico único, com a seguinte redação abaixo:

CF/88 (redação alterada pela EC 19/98):

Art. 39. A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios instituirão conselho de política de administração e remuneração de pessoal, integrado por servidores designados pelos respectivos Poderes. (Redação dada pela Emenda Constitucional 19/98) (Vide ADI 2.135)

Segundo o ensinamento de Meirelles2, a citada emenda “suprimiu a obrigatoriedade de um regime jurídico único para todos os servidores públicos”, de forma que o regime jurídico poderia ser estatutário, celetista (o da CLT) e administrativo especial; este para os servidores contratados por tempo determinado, conforme o previsto no art. 37, IX, da Constituição.”3

Como conclui Priscilla Sparapani, “após a alteração constitucional supracitada, a adoção de um regime jurídico único para os servidores públicos civis tornou-se facultativa, isto é, a Administração Pública não estaria mais obrigada a estabelecer um único regime para todos os servidores, isso abriu a possibilidade da contratação de novos servidores por regimes diferentes, principalmente o celetista.”4

De fato, após a alteração da redação original do art. 39 da Constituição, abriu-se a possibilidade de contratação para outros regimes, além do estatutário, especialmente nos municípios.

Contudo, no ano de 2000, no STF, foi ajuizada uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 2.135) pelo PT, PDT, PSB e PcdoB, que questionava a contratação de servidores do Estado por meio das regras da CLT.  

A ação questiona um vício formal atribuído à votação da EC 19, promulgada pelo Congresso Nacional em 1998 por meio da PEC 173, sob o fundamento que “pela primeira vez, uma emenda constitucional foi promulgada sem que ambas as Casas tenham aprovado, em dois turnos de votação, alterações ao texto da Carta Constitucional.”

Segundo os partidos, a aprovação da PEC 173 durante o governo Fernando Henrique Cardoso (PSDB), desrespeitou o rito legislativo, pois a pauta não teria sido aprovada, na Câmara dos Deputados, pelo quórum mínimo de 308 votos estipulados pelas regras regimentais (apenas 298 deputados votaram a favor).5

Como consequência, a PEC 173, aprovada durante o governo do FHC, possibilitou que a União, estados e municípios contratassem pessoas via CLT, regime que não prevê, por exemplo, estabilidade garantida aos servidores públicos.

Na sessão plenária do dia 2 de agosto de 2007, em sede de liminar, o STF, por maioria, suspendeu a eficácia do art. 39, caput, da Constituição Federal na redação da Emenda Constitucional 19, de 4/6/98, com efeito ex nunc (dali para adiante), por reconhecer a existência de vício formal em que se deu a votação do referido artigo, e decidiu que o texto original do art. 39, caput, da CF/88 deveria ser restabelecido, mantendo-se, por conseguinte, o regime jurídico único e planos de carreira para os servidores da Administração Pública Direta, das autarquias e das fundações públicas.

A respeito da decisão da ministra Ellen Grace pela suspensão da Emenda, comenta DI PIETRO, que com a decisão, a aplicação das normas legais que dispunham sobre regime jurídico único, editadas na vigência da redação original do art. 39, voltam a ter vigência no ordenamento, sendo respeitadas as situações consolidadas na vigência da redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, até o julgamento do mérito:

“O fundamento para a decisão foi o fato de que a proposta de alteração do caput do art. 39 não foi aprovada pela maioria qualificada (3/5 dos parlamentares) da Câmara dos Deputados, em primeiro turno, conforme previsto no art. 60, § 2º da CF. Ao proclamar o resultado do julgamento, a ministra Ellen Grace esclareceu que a sua decisão tem efeito ex nunc, vigorando a partir da data de sua decisão, qual seja 2/8/07. Assim, voltam, portanto, a ter aplicação as normas legais que dispunham sobre regime jurídico único, editadas na vigência da redação original do artigo 39, sendo respeitadas as situações consolidadas na vigência da redação dada pela Emenda Constitucional 19/98, até o julgamento do mérito. (DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 2014, p. 608- grifo nosso).

Em 2020, a Corte iniciou o julgamento do mérito do pedido dos partidos, que recebeu voto parcialmente favorável da relatora, ministra Cármen Lúcia, em setembro daquele ano. Na ocasião, a ministra considerou como inconstitucional o trecho da Emenda 19/1998 que eliminou o regime jurídico único da administração pública, por ofensa ao art. 60, §20, da Constituição Federal, que prevê a obrigatoriedade de discussão e votação em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, considerando-se aprovada se obtiver, em ambos, três quintos dos votos dos respectivos membros.

Na prática, a ministra manteve a liminar de 2007, defendendo a invalidação do art. 39, inserido pela EC 19 na Constituição, por ofensa ao devido processo legislativo definido na Constituição.

 O ministro Gilmar Mendes antecipou o voto, com divergência, por entender que não houve erro material, pois o texto foi aprovado na comissão especial e votado no plenário, por ter alcançado a votação nas duas casas legislativas (Câmara dos Deputados e Senado Federal), não haveria ofensa ao art. 60, §2º, da Constituição.

Com a concessão parcial da liminar na ADI 2.135 pelo E. STF, a redação original do caput do art. 39 da Constituição Federal voltou à vigência, mas o julgamento de mérito havia sido suspenso, em razão do pedido de vista do ministro Nunes Marques. 

Desde então, a redação originária do art. 39 da Constituição Federal tem prevalecido, com a obrigatoriedade do regime jurídico único, ou seja, com a contratação na Administração Direta, autárquica e fundacional pública pelo regime estatutário, pois a decisão cautelar passou a produzir efeitos de imediato.

No dia 30/3/24, o ministro Nunes Marques devolveu os autos para julgamento, e há previsão de julgamento do mérito no dia 21/8/24.

A decisão pendente na ADI 2.135 poderá ter repercussão relevante para um serviço público com tratamento unívoco para aquelas e aqueles em condições de identidade na administração pública.

Espera-se que seja mantido o RJU. Como leciona a ministra do STF, Cármen Lúcia Antunes Rocha, “o que a norma constitucional contida no art. 39, em sua versão originária, veio trazer ao sistema foi a superação daquele estado administrativo caótico e a obrigatoriedade de um tratamento unívoco para o servidor de cada entidade, a fim de que o tratamento desigual para aqueles em condição de identidade não pudesse ocorrer e gerar situações de injustiça, insegurança e comprometimento da própria qualidade do serviço e atendimento da demanda social.”6

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1 Constituição Federal de 1988, Art. 37. “A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...).”

Constituição Federal de 1988, Art. 41: “São estáveis, após dois anos de efetivo exercício, os servidores nomeados em virtude de concurso.”

2 HELY LOPES MEIRELLES,  Direito administrativo brasileiro, 28ª ed., São Paulo; Malheiros, 2003, p. 392-393.

3 Idem.

Disponível em: https://sindibel.com.br/2023/04/mudanca-do-regime-juridico-dos-servidores-publicos/ Acesso em 14/08/2024.

5 Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2021/08/18/stf-julga-acao-que-pode-por-fim-a-estabilidade-no-servico-publico-em-dia-de-greve-contra-pec-32 Acesso em 14/08/2024.

6 ROCHA,  Cármen Lúcia Antunes. Princípios Constitucionais dos servidores públicos. São Paulo: 199, p. 113.

Camilla Louise Galdino Cândido
Advogada da LBS Advogados - Loguercio, Beiro e Surian Sociedade de Advogados, da área de Servidor Público.

Mádila Barros Severino de Lima
Advogada no LBS Advogadas e Advogados.

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