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Da compatibilidade e juridicidade da cláusula de incomunicabilidade de frutos e do regime da comunhão parcial de bens

No regime de comunhão parcial, frutos de bens particulares são partilhados, exceto quando há cláusula de incomunicabilidade na doação, conforme decisão do STJ.

16/8/2024

Como sabido, o regime da comunhão parcial de bens estabelece o compartilhamento em igual proporção de um mesmo patrimônio adquirido após a celebração do casamento civil, à guisa do previsto no art. 1.660 do CC.

Dito de outra forma, os bens adquiridos durante a união pertencerão a ambos os cônjuges, não importando quem comprou ou em nome de quem foi registrado, ao passo que os bens previamente existentes ao matrimônio/união não serão compartilhados, além de outras hipóteses de incomunicabilidade dos bens, que se encontram enumeradas no art. 1.659 do CC.

Pois bem.

A legislação de regência (art. 1660, V, do CC) prevê que serão objeto de comunhão “os frutos dos bens comuns, ou dos particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão.”

Ou seja, ainda que o bem particular de um dos cônjuges (ie. bem imóvel adquirido previamente a união) não se comunique, os frutos percebidos e decorrentes de tal bem na constância da união serão objeto de partilha entre os nubentes. 

O referido cenário não levanta qualquer disputa por decorrer de cristalina previsão legal.

A situação se torna juridicamente mais interessante na hipótese de que um dos cônjuges que venha a receber bem móvel ou imóvel em doação, na qual o doador consigne cláusula específica de incomunicabilidade dos frutos do bem doado.   

À  primeira vista pode parecer que existiria um conflito normativo entre a autonomia privada do doador e os preceitos do regime da comunhão parcial de bens.

Entretanto, trata-se de um mero conflito aparente de normas, capaz de ser solucionado a partir de uma interpretação exegética dos comandos legais.

Explica-se.

O art. 1.660, V, do Código Civil constitui uma regra geral, inexistindo na legislação pátria qualquer vedação à cláusula de incomunicabilidade dos frutos de um bem doado.

A interpretação ora defendida possui acolhida nas lições de doutrinadores de escol como Paulo Luiz Netto Lôbo, Caio Mário da Silva Pereira e Maria Helena Diniz. Confira-se:

 “A incomunicabilidade, todavia, pode ser estendida aos frutos do bem doado ou herdado, se assim tiver estipulado o doador ou o testador, no benefício exclusivo do cônjuge beneficiário”1

 “Nada impede que o doador ou testador, ao instituir o gravame, determine que competirá ao donatário ou ao herdeiro a administração desses bens, impondo que os respectivos rendimentos e frutos sejam recebidos ou percebidos pelo beneficiário, sem se comunicarem. A disposição do artigo, que se aplica no silêncio do instrumento, não constitui norma de ordem pública, comportando, portanto, derrogação pela metade do doador ou testador, que é o Juiz único das razões que a seu critério presidam a cláusula que estabeleceu. Portanto, o artigo em apreço poderá deixar de ser aplicado, caso o doador ou testador também tenha estabelecido, no próprio instrumento de doação ou testamento, a incomunicabilidade aos frutos e rendimentos dos bens transmitidos”2

“Faltando estipulação em contrário, ter-se-á comunicabilidade dos frutos auferidos durante o casamento”.3

Nessa linha, em se tratando do regime da comunhão parcial, haverá a comunicação dos frutos percebidos do bem particular na constância da união, exceto na situação de existir cláusula específica de incomunicabilidade dos frutos. 

O Superior Tribunal de Justiça já teve a oportunidade de se debruçar sobre o tema na assentada do REsp 1.164.887/RS, ocasião em que a 3ª Turma, à unanimidade de votos, confirmou a incomunicabilidade de frutos oriundos de bem doado com cláusula de incomunicabilidade em união regida pela comunhão parcial de bens:

RECURSO ESPECIAL. PROCESSO CIVIL E CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. REGIME DE BENS. COMUNHÃO DE BENS. DOAÇÃO. MATRIMÔNIO ANTERIOR. ART. 265 DO CÓDIGO CIVIL DE 1916. CLÁUSULA GENÉRICA. FRUTOS CIVIS. INCOMUNICABILIDADE. POSSIBILIDADE. CLÁUSULA EXPRESSA. INEXISTÊNCIA DE VEDAÇÃO. CONTA CONJUNTA NO EXTERIOR. INCONTROVÉRSIA. PRINCÍPIO DA BOA-FÉ OBJETIVA. NECESSIDADE DE PARTILHA. FUNDAMENTO AUTÔNOMO. ENRIQUECIMENTO SEM CAUSA. SÚMULA Nº 283/STF. ALIMENTOS. DEVER DE SUSTENTO. FILHO COMUM. BINÔMIO NECESSIDADE E POSSIBILIDADE. SÚMULA Nº 7/STJ. NECESSIDADE DE PACTO ANTENUPCIAL. SÚMULAS NºS 282, 356 E 284/STF.

1. O doador pode dispor em cláusula expressa a incomunicabilidade dos frutos de bem doado no benefício exclusivo do cônjuge beneficiário antes da celebração de casamento sob o regime de comunhão parcial dos bens.

2. O mandamento legal previsto no art. 265 do Código Civil de 1916 (correspondente ao art. 1.669 do atual Código Civil), de natureza genérica, não veda previsão em sentido contrário.

3. A partilha de conta conjunta aberta no exterior é incontroversa nos autos, circunstância insindicável ante o óbice da Súmula nº 7/STJ.

4. O princípio da boa-fé objetiva (art. 422 do Código Civil) rege as relações de família sob o prisma patrimonial.

5. Incide o óbice da Súmula nº 283 do Supremo Tribunal Federal, pois há fundamento autônomo inatacado no especial, a saber: a possibilidade de locupletamento ilícito do cônjuge varão de quantia pertencente ao casal.

6. O dever de prover o sustento da filha comum compete a ambos os genitores, cada qual devendo concorrer de forma proporcional aos seus recursos, circunstâncias e variáveis insindicáveis nesta instância especial.

7. A alegação de que os gravames da incomunicabilidade deveriam ter sido realizados através de pacto antenupcial ou registrados em cartório não foi prequestionado, inexistindo alegação de dispositivo legal violado nesse ponto, o que atrai o teor das Súmulas nºs 282, 356 e 284/STF.

8. Recurso especial parcialmente conhecido, e nessa parte, não provido.

(REsp n. 1.164.887/RS, relator Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/4/2014, DJe de 29/4/2014.)(g.n.)

Por outro lado, há intérpretes que concluem que a regra do art. 1.660, do Código Civil seria norma cogente e de imperiosa observação em todos os casamentos em que os nubentes optaram pelo regime da comunhão parcial de bens, não se tratando de direito disponível, e portanto, não podendo ser afastada.

Ocorre que, para além dos fundamentos anteriormente narrados, tal linha interpretativa acaba por colidir com um dos preceitos basilares de hermenêutica, qual seja, que não cabe ao intérprete restringir quando a lei não restringe, condicionar quando a lei não condiciona, ou exigir quando a lei não exige.

Cabe reiterar que não há qualquer vedação expressa pelo ordenamento jurídico à eficácia da cláusula de incomunicabilidade de frutos na constância da união, de modo que o negócio jurídico é perfeito e válido independentemente de o (a) donatário(a) ter se casado posteriormente, visto que a doação vincula todos os contratos subjacentes e posteriores, inclusive, o ulterior matrimônio.

Outrossim, tornar juridicamente inválida a disposição de incomunicabilidade dos frutos significa completo menoscabo a liberdade negocial e autonomia privada do doador, que em regra deve ser sempre prestigiada. 

Assim, conclui-se que não há qualquer incompatibilidade entre a cláusula de incomunicabilidade de frutos de bens particulares e o regime da comunhão parcial de bens.

________

1 Paulo Luiz Netto Lôbo, Código Civil Comentado, Direito de Família - Relações de Parentesco - Direito Patrimonial - arts. 1.591 a 1.693, Volume XVI, 2003, São Paulo, Editora Atlas, p. 313

2 Caio Mário da Silva Pereira, Instituições de Direito Civil. vol. V – 22. ed. – Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 203

3 Código Civil Anotado, 2012, 16ª edição, Editora Saraiva, p. 1.226

Caio Humberto Pássaro de Laet
Advogado do escritório Trindade & Reis Advogados Associados.

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