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O reconhecimento das doenças degenerativas como doenças ocupacionais no Direito do Trabalho

No direito trabalhista, doenças degenerativas muitas vezes são erroneamente excluídas como doenças ocupacionais com base na lei 8.213/91. Essa interpretação simplista ignora fatores como condições de trabalho e riscos específicos que podem contribuir para a doença.

15/8/2024

As doenças degenerativas são frequentemente interpretadas de maneira equivocada no contexto do direito trabalhista, especialmente no que tange à sua classificação como doenças ocupacionais. O art. 20, § 1º, alínea "a", da lei 8.213/91, que expressa que doenças degenerativas não são consideradas doenças do trabalho, tem sido, em muitas situações, utilizado de forma simplista e inadequada para afastar automaticamente qualquer relação entre tais doenças e as atividades laborais desempenhadas pelos trabalhadores. Essa interpretação, que pode ser fruto de uma má compreensão da norma ou de uma intenção deliberada de limitar a responsabilidade dos empregadores, ignora a complexidade da saúde ocupacional e os diversos fatores que devem ser considerados para um diagnóstico preciso.

A interpretação generalista do dispositivo legal mencionado resulta na tendência de se considerar toda e qualquer doença degenerativa como fruto exclusivo do processo natural de envelhecimento, sem uma análise profunda dos riscos inerentes ao ambiente de trabalho. Fatores como exposição prolongada a condições ergonômicas inadequadas, esforço físico repetitivo, falta de uso ou inadequação dos EPIs - Equipamentos de Proteção Individual, e as condições específicas do posto de trabalho são frequentemente negligenciados. Além disso, a idade do trabalhador e o tempo de exposição ao risco são elementos essenciais que devem ser levados em conta para se avaliar corretamente a concausalidade – o papel das condições de trabalho no agravamento ou aceleração de uma doença degenerativa.

No âmbito pericial, essa abordagem superficial também tem causado controvérsias e prejuízos aos trabalhadores. Em muitos casos, a análise pericial desconsidera a realidade do ambiente de trabalho e os dados epidemiológicos reconhecidos, como os mapeados no decreto 3.048/99, que identifica e classifica diversas doenças profissionais e do trabalho. A ausência de uma avaliação cuidadosa e objetiva das condições laborais pode resultar em diagnósticos equivocados, onde doenças relacionadas ao trabalho são indevidamente tratadas como condições meramente degenerativas e não relacionadas ao labor, gerando injustiças flagrantes contra trabalhadores que, muitas vezes, dependem da decisão judicial para garantir seus direitos e subsistência.

Apesar dessas dificuldades, há uma crescente evolução no entendimento jurídico acerca da classificação de doenças degenerativas como ocupacionais. A Justiça do Trabalho tem, progressivamente, reconhecido que o fato de uma doença ter características degenerativas não impede que ela seja enquadrada como doença do trabalho, desde que se demonstre que as condições laborais contribuíram significativamente para seu desenvolvimento ou agravamento. Esse reconhecimento da concausalidade, em especial nos casos de doenças que afetam a coluna vertebral, articulações e sistema musculoesquelético, representa um avanço significativo na proteção dos direitos dos trabalhadores.

Um exemplo concreto desse entendimento pode ser observado no processo 0100684-76.2023.5.01.0032, julgado pela 32ª vara do Trabalho do Rio de Janeiro. O reclamante, empregado como operador de máquinas, desenvolveu lesões graves na coluna lombossacra e tornozelo, que, segundo argumentou, foram agravadas pelas condições de trabalho. A perícia médica realizada no caso foi decisiva para demonstrar que, embora as lesões tivessem origem multifatorial e incluíssem fatores degenerativos, o ambiente de trabalho e as atividades desempenhadas pelo trabalhador foram concausas significativas para o agravamento de sua condição de saúde.

O juízo reconheceu que, mesmo em se tratando de uma doença com múltiplas causas, o papel do trabalho na aceleração e agravamento das lesões justificava seu enquadramento como doença ocupacional. Essa decisão, alinhada à jurisprudência moderna, sublinha a importância de uma análise individualizada e cuidadosa das condições de trabalho, afastando a interpretação restritiva e simplista da legislação previdenciária que, por vezes, é utilizada para eximir os empregadores de suas responsabilidades.

A jurisprudência atual também destaca a responsabilidade do empregador em adotar todas as medidas necessárias para prevenir o adoecimento de seus empregados. A ausência de condições adequadas de trabalho, como demonstrado no caso mencionado, pode resultar em condenações significativas, incluindo o pagamento de indenizações por danos materiais e morais, além de pensão vitalícia proporcional ao grau de incapacidade resultante da doença. Essas decisões servem como um importante alerta para as empresas sobre a necessidade de garantir um ambiente de trabalho seguro e adequado, evitando assim a responsabilidade por doenças ocupacionais.

Portanto, é crucial que os empregadores compreendam a importância de adotar uma postura preventiva no que tange à saúde ocupacional. A implementação de programas eficazes de segurança e saúde no trabalho, incluindo a adequação das condições ergonômicas e a correta utilização de EPIs, não só minimiza o risco de doenças ocupacionais, como também reduz a exposição a passivos judiciais que podem ser altamente onerosos. Ademais, a transparência e a boa fé na relação entre empregador e empregado são fundamentais para evitar conflitos e litígios desnecessários.

A crescente aceitação do conceito de concausalidade no direito do trabalho brasileiro reforça a necessidade de uma abordagem mais humanizada e técnica na avaliação das doenças ocupacionais. A simplificação do diagnóstico de doenças degenerativas sem considerar o contexto laboral pode resultar em injustiças que comprometem a dignidade do trabalhador, um dos pilares fundamentais da nossa Constituição. Portanto, o reconhecimento de doenças ocupacionais exige um exame minucioso, que deve incluir não apenas a análise médica, mas também a consideração das condições de trabalho a que o empregado esteve submetido.

Concluindo, a evolução do entendimento jurídico sobre a classificação das doenças degenerativas como ocupacionais, especialmente nos casos onde há a presença de fatores de risco no ambiente de trabalho, representa uma importante vitória para a justiça social no Brasil. A Justiça do Trabalho tem desempenhado um papel fundamental na proteção dos direitos dos trabalhadores, reconhecendo a complexidade das relações laborais e a influência do ambiente de trabalho no desenvolvimento de doenças.

Para trabalhadores e advogados que atuam na área trabalhista, é essencial estar atento a essas nuances jurídicas e à importância de uma defesa bem fundamentada, que considere todos os aspectos pertinentes ao caso. A correta identificação da causalidade e/ou concausalidade em processos envolvendo doenças degenerativas pode ser determinante para o sucesso da demanda e para a obtenção da reparação justa aos danos sofridos, evidenciando a importância de um acompanhamento jurídico especializado.

Antonia de Maria Ximenes Oliveira
Advogada especializada em Direito do Trabalho, Diretora Jurídica do SPC/RJ; Delegada da Comissão de Prerrogativas da OAB/RJ; possui especializações em Direito do trabalho como MBA em Acidente de trabalho/doenças ocupacionais, e em Direito Constitucional e Direitos Humanos - pela Universidade de Coimbra/PT.

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