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Apontamentos sobre liberdade de cátedra acadêmica na França e no Quebec

Na França, a "liberdade acadêmica" foi formalmente incluída no direito em 2020 pela lei de Programação de Pesquisa, garantindo a independência e liberdade de expressão dos professores e pesquisadores.

12/8/2024

Na França, um dos exemplos mais emblemáticos sobre liberdade de cátedra foi dado pelo debate sobre o “islamismo-esquerdismo” durante o qual, em fevereiro/21, o ministro responsável pelo ensino superior solicitou um relatório sobre a propagação desta corrente nas universidades francesas. Este acontecimento fez com que o legislador introduzisse, pela primeira vez no direito francês, a noção de "liberdade acadêmica". O art. 15 da lei de Programação de Pesquisa, de 24 de dezembro de 2020, alterou o código educacional, que passou a afirmar que "a liberdade acadêmica é a garantia de excelência no ensino superior e na pesquisa francesa” (THE CONVERSATION, 2022).

Somente em 2020 que, na França, a expressão “liberdade acadêmica” entrou expressamente no direito interno. Em sua dimensão individual, a liberdade acadêmica é descrita como a “total independência” e “toda a liberdade de expressão” dos professores-pesquisadores, conforme o artigo L.952-2 do Código Educativo.

Consoante Olivier Beaud, o valor constitucional dos professores-pesquisadores foi reconhecido pelo Conselho Constitucional em 1984, embora a existência da liberdade de pesquisa e ensino não seja expressamente reconhecida, porém,  são abrangidos, de certa forma, pela liberdade de expressão.

Mas afinal, qual o objetivo da liberdade acadêmica?

O seu propósito é servir à busca da verdade sem qualquer impedimento ou coerção. Contudo, esse objetivo só pode ser alcançado se os acadêmicos forem livres para realizar suas pesquisas e compartilhar os resultados, com a mesma liberdade, principalmente durante o ensino. Afinal, a liberdade acadêmica só tem sentido e só pode ser aplicada quando o professor desenvolve suas atividades de pesquisa e ensino. (art. L.952-2 do Código de Educação francês).

Fora do ambiente, a liberdade acadêmica não se justifica,  não pode  ser aplicada ou reivindicada. O Conselho de Estado, mais alto tribunal administrativo francês, decidiu que o fato de um professor acadêmico ter tido “uma atitude humilhante em relação a dois estudantes, incluindo alusões pessoais de caráter sexual, suscetível de atentar contra a sua dignidade [...] deveria ser vista como separada das funções docentes deste professor” que não poderia, se “beneficiar da proteção da liberdade de expressão dos professores-pesquisadores garantida pelo artigo L.952-2 do Código da Educação” (CE, 21 de junho/19, Req. 424582).

Embora seja óbvio que a liberdade acadêmica não poderia abranger tais observações, a ligação entre a expressão de um ponto de vista e as atividades de ensino e pesquisa, às vezes, é mais difícil de estabelecer. Resta o fato de que a proteção conferida pela liberdade acadêmica de fato se detém nas fronteiras das missões universitárias. (THE CONVERSATION, 2022)

Fora das suas funções, os professores acadêmicos não são privados de toda a liberdade, pois desfrutam de liberdades da “lei comum” que são necessariamente limitadas. Destarte, como qualquer outro cidadão e como quando exercem as suas funções acadêmicas, eles estão submissos às disposições penais que sancionam os abusos da liberdade de expressão: por exemplo, devem se abster de fazer comentários abusivos, difamatórios ou racistas.

Ficam então sujeitos, no caso de funcionários públicos, às regras decorrentes da lei da função pública, que obrigam os professores a respeitarem certo número de restrições e obrigações exteriores às suas funções, como deveres de reserva, neutralidade, lealdade ou mesmo discrição profissional.

Em caso de descumprimento destas obrigações profissionais, os professores universitários expõem-se a sanções disciplinares. Essa hipótese está longe de ser fictícia e alguns exemplos emblemáticos pontuam a história do direito universitário (THE CONVERSATION, 2022).

Podemos citar o caso desse professor-pesquisador, também titular de cargo eletivo, que foi impedido de exercer qualquer função docente ou de pesquisa em sua universidade por um período de cinco anos por ter feito comentários passíveis de “lançar dúvidas sobre a existência das câmaras de gás” durante uma reunião com a imprensa organizada em seu escritório político. Estes e outros exemplos demonstram a importância de identificar e assimilar o conteúdo e o alcance da liberdade acadêmica, essencial a qualquer sociedade democrática, a qual deve ser preservada em sua plena legitimidade, não podendo, contudo, ser invocada para autorizar qualquer comportamento, em circunstâncias em que manifestamente não se aplica (THE CONVERSATION, 2022).

No Quebec (Canadá), com a aprovação em 2022 do PL 32, ficou permitido ao Governo definir a liberdade acadêmica universitária e identificar os seus beneficiários, assegurar que as instituições em causa adotem uma política exclusiva de reconhecimento, promoção e proteção, que deve prever alguns elementos, nomeadamente a constituição de uma comissão e a implementação de ações de sensibilização e informação. A aprovação do projeto de lei permite, finalmente, garantir que esses estabelecimentos sejam responsáveis pela implementação dessa política.

Assim, o governo reconhece que a autonomia universitária e a liberdade acadêmica universitária constituem condições essenciais para o cumprimento da missão das instituições educacionais universitárias. Destarte, consoante afirma Danielle McCann, Ministra do Ensino Superior, “todos os assuntos podem ser abordados e todas as palavras podem ser ditas em um contexto educacional. (...) As universidades têm o papel de garantir uma educação de qualidade para seus alunos, devendo proporcionar um ambiente propício ao aprendizado, à discussão e ao debate” (QUEBEC, 2022).

Em 12 de julho de 2022, o jornal Le Soleil publicou uma  carta aberta defendendo a liberdade acadêmica sem condições, encabeçada pelos professores Maximilian C. Forte, da Universidade Concordia e Anne-Hélène Jutras, da Universidade de Montreal, e co-assinada por dezenas de professores universitários e outros profissionais. Referida carta pedia o cancelamento da suspensão não remunerada dos professores Patrick Provost e Nicolas Derome, punidos pela Universidade Laval por terem manifestado opiniões e preocupações sobre a vacinação de crianças contrárias à narrativa comumente aceita.

Segundo a Carta encabeçada, as opiniões expressas pelos dois professores, fundamentadas ou não, são protegidas pelas leis e regulamentos que regem a liberdade de expressão. Um impasse foi gerado, pois um dos princípios defendidos pela Université Laval em sua Declaração Institucional sobre a proteção e valorização da liberdade de expressão, publicado em 2 de fevereiro de 2021,  reconhece que “a liberdade acadêmica protege o direito de ensinar, aprender, estudar e publicar sem medo da ortodoxia ou ameaça de retaliação e discriminação”.

A Universidade Laval ainda ressalta que, “as ideias, mesmo as controversas, devem poder ser expressas, ouvidas e debatidas”. Estabelece ainda,  limites à liberdade acadêmica, podendo intervir se a ideia ou a forma de a expressar violar “as leis canadenses ou quebequenses e a sua aplicação, nomeadamente no que diz respeito à difamação, discurso de ódio ou incitação à violência; acordos coletivos, regulamentos ou políticas vigentes na Universidade”.

De acordo com os professores que assinaram referida Carta, os dois professores suspensos não infringiram nenhum desses dois limites acima citados, portanto, não justifica serem objeto de tais represálias. “Expressaram-se fora do âmbito das suas funções docentes e não cometeram faltas graves (por exemplo, peculato ou falsificação dos resultados da sua própria investigação). Seus cargos (liberdade de expressão) não devem ser confundidos com atividades de transmissão de conhecimento”. Se não puderem expressar sua opinião, continuam, “no ambiente onde mais deveriam estar. Se isso não for permitido, a universidade se torna um reduto de dogmas” (FORTE; JUTRAS, 2022).

Respeitável e conveniente as discussões acima travadas, as quais enriquecem o debate acadêmico sobre esta importante temática.

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FORTE, Maximilian C.; JUTRAS, Anne-Hélène. Liberté académique: l’Université Laval doit s’excuser et réparer ses torts. Publicado em 15 ago. 2022.

QUEBEC. Adoption du projet de loi no 32 - Le Québec, précurseur en matière de protection de la liberté académique universitaire et de lutte contre l'autocensure. Cabinet de la ministre de l'Enseignement supérieur.  Publicado em 03 jun. 2022.

THE CONVERSATION. Jusqu'où peut-on invoca la liberté académique ? Publicação: 11 jan 2022. Acesso em 17 nov. 2022.

Tereza Rodrigues Vieira
Pós-Doutora em Direito Université de Montreal. Mestre/Doutora em Direito PUC-SP. Especialista em Bioética Fac. Medicina da USP. Docente Mestrado Direito Processual e nagraduação em Medicina e Direito

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