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Quotas preferenciais e o direito de voto nas sociedades limitadas

Em razão da importância funcional das ações preferenciais sem direito ao voto, muitos defendem a utilização do instituto também nas sociedades limitadas, porém tal transplante não se mostra possível tendo em vista a incompatibilidade da estrutura legal atrelada às sociedades limitadas, nas quais o direito de voto é essencial.

12/8/2024

Disciplinadas entre os arts. 15 e 19 da lei 6.404/76, as ações preferenciais se diferenciam das ordinárias por oferecerem determinadas vantagens econômicas e/ou políticas; tais como a prioridade na distribuição de dividendos, a precedência no reembolso do capital e a eleição separada de membros dos órgãos de administração. Devido a essas vantagens, estas geralmente não possuem direito de voto ou o têm de maneira restrita.

A segmentação entre ordinárias e preferenciais visa atender diferentes interesses dos acionistas. Os que têm interesse direto na condução dos negócios da companhia privilegiam o direito de voto. Já os investidores, primado nos resultados econômicos da companhia, preferem abrir mão ao direito de voto por vantagens específicas1.     

Posicionamento do DREI

DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, por meio da IN 38/17, substituída pela IN 81/20, passou a permitir o registro de quotas preferenciais em sociedades limitadas, inclusive com supressão ou limitação do direito de voto, respeitados os limites da lei 6.404/76. O DREI, entretanto, tem por finalidade apenas disciplinar o processo de registro público de empresas mercantis (art. 4°, Lei 8.934/94), de modo que não possui competência interpretativa em relação a matérias que fogem do escopo registral, tal como a aplicação de um instituto típico das sociedades anônimas nas sociedades limitadas2. Entende-se, assim, que os atos normativos do DREI, por si só, não são um permissivo legal às quotas preferencias, quanto mais a restrição do direito de voto.

Segundo Forgioni3 e Diniz4, a regência supletiva da lei 6.404/76 às sociedades limitadas (art. 1.053 Código Civil) ocorre apenas quando os sócios optam expressamente e naquilo que for compatível com a disciplina legal do tipo societário, incluindo as normas complementares das sociedades simples. Nesse contexto, a adoção do instituto das ações preferenciais nas sociedades limitadas exige mais do que uma simples aplicação supletiva da lei 6.404/76, sendo necessária uma análise detalhada da compatibilidade do instituto com a estrutura legal desse tipo societário.

Argumentos Favoráveis

Na vigência do decreto 3.708/1919, Guerreiro5 e Prado6 se mostraram favoráveis a possibilidade de existirem quotas preferenciais sem direito à voto nas sociedades por quotas de responsabilidade limitada. Entendiam que não existiria uma diferença estrutural entre os tipos que justificasse a inaplicabilidade, dado que ambos podem assumir caráter capitalístico, com interesses distintos entre seus sócios. Sob uma perspectiva funcional, não faria sentido restringir o uso do instituto, pois às sociedades por quotas, de responsabilidade limitada, também acomodariam sócios empresários e sócios investidores.

Nesse sentido, Cantarelli7 defende a aplicabilidade das quotas preferenciais nas atuais sociedades limitadas com base nos seguintes argumentos: (i) inexistência de impedimento legal, o que permite a livre iniciativa das partes e a aplicação supletiva da lei 6.404/76; (ii) não essencialidade do direito de voto nas sociedades limitadas; e (iii) possibilidade de existência de quotas desiguais, conforme disposto no art. 1.055 do Código Civil.

Essencialidade do Direito de Voto

Não obstante o posicionamento de Prado e Guerreiro, nota-se que o tipo societário disciplinado pelo decreto 3.708/1919 não se confunde com a sociedade limitada prevista no Código Civil. Enquanto aquela regia-se por apenas 18 artigos, atualmente existem 35 artigos específicos ao tipo societário, com uma regulação muito mais detalhada em relação ao direito de voto e o processo de deliberação dos sócios8.

Embora durante a vigência do decreto 3.708/1919 pudesse se entender que o direito de voto não era essencial à condição de quotista, no vigente Código Civil, esse direito político parece ser uma condição inerente à sociedade limitada. Apesar de não haver um artigo específico que preveja os direitos essenciais dos quotistas, diversos dispositivos fazem referência direta à porcentagem do capital social necessária para a formação da vontade da sociedade (arts. 1.057, § ún., 1.074, 1.076, I, e 1.085), e não ao capital votante, como ocorre nas sociedades anônimas. Aceita a possibilidade existirem quotas preferenciais sem direito à voto, poder-se-ia ter um cenário, por exemplo, em que o capital votante nunca alcançaria a porcentagem do capital social exigida por lei para a exclusão um sócio, o que claramente não se compatibiliza com a estrutura pretendida pela legislação.

Além disso, o art. 1.010 do Código Civil prevê .que, no sistema de deliberações, os votos dos sócios correspondem exatamente ao valor das quotas de cada um, não fazendo distinção entre capital social e votante, o que “assegura a todos os cotistas o exercício do voto segundo o valor de suas cotas”9. Sendo um direito inerente ao status de sócio, as quotas preferenciais sem direito ao voto não se justificam pela livre iniciativa das partes, pois tal liberdade não pode ir contra legem10-11.

Por fim, entende-se que o art. 1.055 do Código Civil refere-se tão somente a valor nominal das quotas, de modo que “as quotas serão iguais ou desiguais, consequentemente, em função de seu valor”, isto é, em uma mesma sociedade pode existir uma quota com valor nominal de R$1,00 e outra de R$2,0012. Isso não significa que tais quotas podem ter diferentes direitos político, pois isso contraria justamente a previsão do art. 1.010.

Conclusão

Não se nega a possibilidade existirem tipos diferentes de quotistas em uma sociedade limitada (sócios empresários e sócios investidores), tampouco a importância funcional das ações preferenciais na conciliação de interesses distintos em uma estrutura societária. Porém, a funcionalidade de um instituto não pode se sobrepor aos próprios limites estabelecidos pela estrutura legal do tipo societário.

Assim, a conciliação de sócios empresários e sócios investidores deve ser endereçada no planejamento corporativo das sociedades limitadas por meio de mecanismos apropriados ao tipo societário, tal como o acordo de quotistas, que permite os sócios pactuarem diferentes formas de exercício dos direitos políticos e eventuais privilégios econômicos.

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1 PRADO, Viviane Muller. As quotas preferenciais no direito brasileiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 5, pp. 136-143, 1999.

2 SALLES, Denise Chachamovitz Leão de. Das quotas Preferenciais. In: AZEVEDO, Luís André N.

Moura; CASTRO, Rodrigo R. Monteiro (coord.). Sociedade Limitada Contemporânea. São Paulo: Quartier Latin, 2013.

3 FORGIONI, Paula Andrea. A unicidade do regramento jurídico das sociedades limitadas e o art. 1.053 do CC. Usos e costumes e regência supletiva. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 46, n. 147, pp. 7-12, 2007.

4 DINIZ, Gustavo S. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.

5 GUERREIRO, José Alexandre Tavares. Sociedade por quotas: quotas preferenciais. Revista de Direito Mercantil, Industrial, Econômico e Financeiro, vol. 33, n. 94, p. 28-34, 1994.

6 PRADO, Viviane Muller. As quotas preferenciais no direito brasileiro. Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais, vol. 5, pp. 136-143, 1999.

7 CANTARELLI, Luis Guilherme Pessoa. As quotas preferenciais nas sociedades limitadas. Revista de Direito Privado, vol. 96, pp. 139-168, 2018.

GONÇALVES NETO, Alfredo Assis. Lições de direito societário: regime vigente e inovações do Código Civil. 2ª ed. São Paulo: Juarez de Oliveira, 2004.

9 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022, p. 134. E-book.

10 BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.

11 DINIZ, Gustavo S. Curso de Direito Comercial. Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022. E-book.

12 MAMEDE, Gladston. Direito Societário (Direito Empresarial Brasileiro). Rio de Janeiro: Grupo GEN, 2022, p.235. E-book.

João Vitor Calabuig Chapina Ohara
Associado da área de Societário e Mercado de Capitais do TN Advogados. Advogado, pós-graduando em direito societário pela Fundação Getúlio Vargas - FGV Law e bacharel em direito pela FDRP - USP RP.

Lucas F. G. Bento
Sócio das áreas de Societário e Mercado de Capitais do TN Advogados. Advogado e estudante de Finanças e Negócios pela USP, com passagens pela University of Illinois e University of Chicago, ambas nos EUA.

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