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Pessoa jurídica e Direito Penal: As grandes empresas têm medo de admitir sua culpa?

A recente confissão de culpa da Boeing demonstra como as condenações corporativas não têm apresentado consequências comerciais no contexto norte-americano. Como será com as empresas de apostas no Brasil?

8/8/2024

A mancha de uma condenação criminal em uma empresa não é mais tão importante como era no passado. Se, em hipótese, o Direito Penal não tem surtido efeito, é possível que outros ramos do Direito sejam capazes de satisfazer a reprovação à pessoa jurídica?

Em exemplo, a empresa de contabilidade Arthur Andersen entrou em colapso em 2002 depois que os promotores a acusaram de destruir provas relacionadas às suas auditorias do conglomerado de energia Enron. Durante anos após a morte da Andersen, os promotores se abstiveram de acusar grandes empresas por medo de derrubar a própria empresa no processo.

O acordo feito pela Boeing em no mês de julho de 2024, em que se declarou culpada pela má conduta de dois funcionários no período que antecedeu dois acidentes fatais com aeronaves 737 MAX, mostra como os tempos mudaram. A Boeing anunciou que alcançou um acordo com o DoJ - Departamento de Justiça dos Estados Unidos no processo criminal pelos acidentes de dois aviões 737 MAX em 2018 e 2019, nos quais morreram 346 pessoas.

A condenação criminal tem sido subestimada por as grandes empresas, que se mostraram capazes de mitigar as consequências negativas e sobreviver à má publicidade. O acordo de “confissão de culpa” foi firmado no tribunal federal de Fort Worth, Texas. A Boeing será multada pelo acordo e deverá investir no mínimo de 455 milhões de dólares (2,4 bilhões de reais) em programas de compliance e segurança.

Entendo que o simples fato de ser rotulada como criminosa por meio de confissão de culpa, sem o devido julgamento, prejudica muito pouco a empresa. A Boeing já fez um trabalho de “destruição” de sua própria reputação nos últimos três anos, mediante acidentes aéreos. Talvez seja por isso que a empresa se dispôs a aceitar a condenação: Haveria algo mais que poderia prejudicar a imagem da empresa?

1. Os Acordo Criminais com Pessoas Jurídicas no contexto norte-americano

Por quase duas décadas, o DoJ frequentemente permitiu que as empresas que enfrentavam acusações criminais entrassem em acordos de “confissão de culpa” que adiavam possíveis processos - ou dispensavam totalmente as acusações - desde que a empresa infratora cooperasse, limpasse sua atuação e pagasse penalidades financeiras. Após a sociedade e vítimas criticarem esses acordos como sendo muito brandos, os promotores procuraram endurecê-los, inclusive acusando diretamente os funcionários envolvidos.

O conglomerado Morgan Stanley obteve um acordo de não acusação penal em janeiro, mas pagou US$ 249 milhões em multas e admitiu que ex-funcionários haviam compartilhado indevidamente informações sobre vendas de ações de clientes.

Em 2021, os promotores inicialmente adiaram uma acusação criminal alegando que a Boeing havia enganado os órgãos reguladores de segurança aérea e, em vez disso, colocaram a empresa em uma espécie de “liberdade condicional corporativa”. Se a Boeing não tivesse enfrentado novos problemas, o caso teria sido arquivado. No entanto, o Departamento de Justiça declarou em maio que a Boeing havia violado esse acordo por não ter cumprido seus compromissos e deveria se declarar culpada.

Como parte de seu acordo anterior, a Boeing teve que admitir que seus funcionários haviam violado a lei e concordou em pagar US$ 2,5 bilhões, incluindo uma multa criminal de US$ 243 milhões, US$ 1,8 bilhão para os clientes da companhia aérea e US$ 500 milhões para as famílias dos que morreram nos acidentes com o MAX.

2. A pessoa jurídica é grande demais para ser extinta

A confissão de culpa da Boeing tem uma consequência potencial que o acordo de 2021 não teve: Suspensão ou exclusão como contratante federal (inabilitação para participação em licitações, no contexto brasileiro). O Congresso norte-americano elaborou leis para excluir empresas e indivíduos condenados dos principais programas federais, como o Medicare, e de negócios que exigem um nível de confiança, como a gestão de fundos de investimento.

Mas quando a suspensão faz parte das perspectivas de uma grande empresa, os órgãos reguladores geralmente ignoram as possíveis repercussões. A Boeing é uma importante fornecedora de armas e aeronaves para o Departamento de Defesa norte-americano, sendo que obteve contratos no valor de US$ 22,8 bilhões em 2023, de acordo com dados federais. Um porta-voz do Departamento de Defesa disse na semana passada que as autoridades ainda não decidiram se isentarão a Boeing de possíveis consequências jurídicas.

"Presumimos que a empresa chegará a algum tipo de acordo com seu cliente do setor de defesa com relação à isenção", disse Ben Tsocanos, chefe do setor aeroespacial da S&P Global Ratings. “Não creio que o Departamento de Defesa tenha qualquer alternativa para os programas em que a Boeing é a principal fornecedora.” O mesmo aconteceu com os grandes bancos. O JPMorgan Chase, o Citicorp, o Royal Bank of Scotland e o UBS foram condenados e se declararam culpados em 2015 por fraudar os mercados de câmbio, mas logo receberam isenções da Comissão de Valores Mobiliários para continuar administrando fundos de investimento.

3. E no fim das contas, o que resta para a pessoa jurídica e a sociedade?

Quanto aos investidores, clientes e outras partes interessadas, a maioria ignorou o estigma da condenação de uma grande empresa. As ações da Boeing subiram durante o primeiro dia de negociação depois que os investidores souberam que ela se declararia culpada. Uma condenação geralmente ocorre após outros problemas que afetam mais as finanças da empresa e forçam uma mudança na equipe de gestão. Quanto aos investidores, clientes e outras partes interessadas, a maioria ignorou o estigma da condenação de uma grande empresa.

Em março de 2020, a PG&E se declarou culpada de homicídio involuntário (homicídio culposo) após pedir falência por causa de responsabilidades decorrentes de seu papel nos incêndios florestais que mataram mais de 100 pessoas e destruíram cerca de 15.700 casas. Antes de se declarar culpada, ela havia concordado em pagar US$ 13,5 bilhões às vítimas dos incêndios.

Os consumidores raramente ficam sabendo das condenações corporativas porque as empresas não são obrigadas a torná-las públicas. Os tribunais federais norte-americanos ocasionalmente forçaram as empresas a publicar anúncios para divulgar uma condenação, mas raramente essa punição foi aplicada. A “confissão de culpa” da Boeing não será mais cara do que seu primeiro acordo com o departamento de justiça. Se o tribunal aprovar sua confissão, a empresa pagará um adicional de US$ 244 milhões e concordará em gastar US$ 455 milhões em segurança e conformidade.

A Boeing admitiu, em janeiro de 2021, que dois ex-funcionários enganaram a FAA - Administração Federal de Aviação sobre uma função de controle de voo do 737 MAX que mais tarde foi responsabilizada pelos acidentes. Nos acidentes fatais que mataram 346 pessoas, os pilotos não conseguiram recuperar o controle depois que o nariz da aeronave foi forçado para baixo por ativações repetidas e equivocadas do sistema de controle de voo.

As famílias das vítimas do 737 MAX opõem-se à confissão de culpa porque “faz concessões injustas à Boeing que outros réus criminais nunca receberiam”, disseram durante o processo judicial. As famílias escreveram em uma petição apresentada ao tribunal na semana passada que a Boeing deveria ser obrigada a admitir que seu crime matou 346 pessoas. Eles também apontam que os promotores deveriam ter acusado os principais executivos da empresa por má conduta.

Para a Boeing, uma diferença entre a sua confissão de culpa e o seu acordo anterior de adiamento da acusação é a exigência de contratar uma empresa externa, uma espécie de monitora, para avaliar os seus sistemas de conformidade com as leis e regulamentos federais. Ao que nos parece, essa medida é um sinal muito claro de que não é possível confiar que a empresa cumpra a lei por conta própria e necessita de auditorias e controles externos.

4. As casas de apostas on-line no Brasil: Regime sancionador será suficiente?

No contexto brasileiro, a pessoa jurídica apenas é imputada por delitos cometidos contra o meio ambiente (lei 9.605/98). Em um paralelo aos acordos criminais efetuados por corporações no âmbito norte americano, dificilmente algo parecido aconteceria no Brasil nos tempos atuais. A pessoa jurídica não goza de certas garantias e possibilidades. O STJ não reconhece à pessoa jurídica o direito ao Habeas Corpus, vide AgRg no RHC 161.149/SP, data de julgamento: 22/3/22, e não permite que a pessoa jurídica celebre colaboração premiada, vide RHC 154.979/SP, data de julgamento: 9/8/22. O STF, em relação ao Habeas Corpus, adota postura semelhante, vide HC 92921/BA, rel. min. Ricardo Lewandowski, 19/8/08.

O Ministério da Fazenda publicou 4 portarias de julho/agosto de 2024 para regulamentar as apostas on-line. As regras valem para apostas esportivas e jogos on-line, como caça-nível, roleta, e crash, como o popular “jogo do tigrinho”. Começam a valer em janeiro de 2025.  A licença a nível nacional – emitida pela Fazenda –, custa R$ 30 milhões e tem duração máxima de 5 anos, segundo portaria publicada em 21/5 deste ano.

As normas determinam a responsabilização administrativa dos operadores de apostas por publicidades com influenciadores ou celebridades que sugiram que o jogo contribuiu para o êxito pessoal, social ou financeiro. Também estabelecem que a plataforma precisa, antes da aposta ser realizada, disponibilizar tabelas de pagamentos que mostrem todas as possibilidades de ganhos e que o operador deve suspender o uso do sistema por apostadores caso constate o risco alto de dependência.

A portaria SPA/MF 1.233, de 31/7/24, regulamentou o regime sancionador no âmbito da exploração comercial da modalidade lotérica de apostas de quota fixa, de que tratam o art. 29 da lei 13.756, de 12/12/18, e a lei 14.790, de 29/12/23. Chama a atenção o art. 2º, que dispõe sobre a infração administrativa punível, tais como explorar a modalidade lotérica de apostas de quota fixa sem prévia autorização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, realizar operações ou atividades vedadas, não autorizadas ou em desacordo com a autorização concedida, opor embaraço à fiscalização da Secretaria de Prêmios e Apostas do Ministério da Fazenda, deixar de fornecer à Secretaria de Prêmios de Apostas do Ministério da Fazenda documentos, dados ou informações cuja remessa seja imposta por normas legais ou regulamentares, entre outros.

As sanções administrativas para as apostas on-line (ou empresas bet) podem variar entre a advertência, suspensão das atividades, proibição de participar de licitações e multas, que podem chegar a 50 bilhões de reais em certos casos.

Em uma análise primária, e em leitura das portarias, a pessoa jurídica de apostas on-line não necessita de sede física no Brasil, apenas disponibilizar canal direito com os clientes em língua portuguesa e que seja efetivo. Terá o regime sancionador a eficácia desejada? Alcançará as empresas em território estrangeiro? O desejo é de que as pessoas jurídicas que explorarão o ramo de apostas cumpram as normativas e sejam imputadas em caso de ilicitude.

Portanto, percebe-se que a pessoa jurídica, mais uma vez, está apartada do sistema penal. Espera-se que em breve o legislador entenda a pessoa jurídica como sujeito de direitos, não apenas limitado aos delitos ambientais, mas sim podendo ser imputada aos resultados puníveis os quais der causa.

Samuel Ebel Braga Ramos
Advogado em Curitiba/PR - Samuel Ebel Braga Ramos Advogados. Doutorando em Direito do Estado pela UFPR. Mestre em Direito (2019). Professor de Direito Penal.

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