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Cinco anos do reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo pelo STF

O artigo detalha a decisão, refuta críticas e destaca os efeitos positivos no combate à homotransfobia, alinhando-se ao Dia do Orgulho LGBTI+ e reafirmando a proteção constitucional à comunidade LGBTI+.

6/8/2024

1. Introdução

No dia 13/6/24, completaram-se cinco anos do julgamento do STF que reconheceu a homotransfobia como crime de racismo sem legislar nem fazer analogia, ao contrário do que levianas críticas de espantalho insistem em imputar, sem enfrentar os fundamentos concretos da decisão, que não só negaram, mas explicaram detalhadamente porque não o fizeram. Por isso, o intuito deste artigo é o de explicar os fundamentos da decisão, responder a tais críticas de espantalho e falar de efeitos positivos, ainda tímidos, que gerou no enfrentamento e punição da homotransfobia, em complemento a artigo anteriormente publicado, em 2019.1

A novidade está na explicação de trechos da decisão que demonstram a ausência de realização de “analogia in malam partem” e, assim, o respeito ao princípio da legalidade penal estrita, na basilar lógica da dogmática e da hermenêutica penais de concretização de elementos normativos do tipo por interpretação literal concretizadora deles. Vale como uma forma de celebração acadêmica tardia do Dia do Orgulho LGBTI+, comemorado no dia 28 de junho, em data que visa recusar a vergonha que a sociedade cisheterossexista e homotransfóbica quer nos impor e, pelo contrário, termos orgulho de sermos como somos, porque não há nada de errado com isso.2 Isso porque referida decisão do STF foi muito enfática na afirmação do dever de proteção eficiente da população LGBTI+ pelo Estado Brasileiro, reafirmando que nossa ordem constitucional proíbe que as pessoas sejam discriminadas por sua orientação sexual ou identidade de gênero, já que as pessoas LGBTI+ merecem igual respeito e consideração relativamente a pessoas cishétero, tanto em termos de proteção do Estado contra violências físicas e simbólicas quanto em termos de acesso a direitos em geral.

2. Fundamentos da decisão do STF de 13/6/19 (ADO 26/MI 4.733)

O reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo se deu porque nossa Suprema Corte reafirmou que o sentido constitucional de raça e racismo é o de raça social e racismo social, por ela afirmado em 2003 ao reconhecer o antissemitismo como crime por raça no julgamento do célebre caso Ellwanger (HC 82.424/RS), leading case sobre inconstitucionalidade de discursos de ódio no Brasil. Assim decidiu à luz do conceito antropológico de raça social, pelo qual a raça é construção social que visa dividir as pessoas em distintos grupos sociais, a partir de critérios físicos ou culturais, enquanto poderosa construção social que visa criar uma percepção cognitiva classificatória para hierarquizar grupos sociais, para subjugação ou destruição de um por outro.3 Bem como pelo conceito de racismo social, enquanto processo político-social de divisão dos seres humanos em distintas raças pelo critério da intolerância, donde “o racismo traduz a valoração negativa de certo grupo humano, tendo como substrato características socialmente semelhantes, de modo a configurar uma raça distinta, à qual se deve dispensar tratamento desigual da dominante”.4

O STF reafirmou tais conceitos em 2019 para reconhecer a homotransfobia como forma de racismo, explicando não poder legislar criminalmente nem fazer analogia “in malam partem” e demonstrando não ter feito isso, em decisão interpretativa e não “aditiva”.5 Pontuou que a divisão dos seres humanos em raças não se limita a critérios fenotípicos, pois “representa uma arbitrária construção social, desenvolvida em determinado momento histórico, objetivando criar mecanismos a justificar a desigualdade, com a instituição de hierarquias artificialmente apoiadas na hegemonia de determinado grupo de pessoas sobre os demais estratos” sociais. Por isso, afirmou que nesse conceito geral e abstrato de racismo a homofobia e a transfobia se enquadram por precisa identidade conceitual, logo, por silogismo fruto de interpretação literal nos crimes “por raça”. Honrando-me com citação de minha doutrina sobre o conceito de racismo, pontuou que “o racismo consiste em processos de diferenciação, classificação e hierarquização, para fins de exclusão, expulsão e erradicação, através de processos de estigmatização, desqualificação moral e, eventualmente, internação ou expulsão”,6 no qual a homotransfobia se enquadra por precisa identidade conceitual e não por “analogia”, “interpretação analógica” ou “interpretação extensiva”.

Importante pontuar que a decisão é coerente com a doutrina do Direito Penal Mínimo, que traz um critério qualitativo (o que pode ser crime) e não quantitativo (de número de leis penais). Afinal, temos a proteção de bem jurídico-penal, enquanto indispensável à vida em sociedade, que é a tolerância a quem é diferente, no sentido de impor que não se ofenda, discrimine, ofenda ou mate alguém em razão de sua orientação sexual e sua identidade de gênero, ao passo que os poucos Estados e Municípios que têm leis locais antidiscriminatórias não têm se mostrado suficientes para prevenir (prevenção geral negativa) e reprimir a homotransfobia de forma eficiente, de sorte que atendido também o requisito da ultima ratio. Então, ou se muda a lógica do Estado Penal inteiro, criminalizando-se todas as condutas tidas como intoleráveis de outra forma, como pela lógica da Justiça Restaurativa e ampliação das penas alternativas à privação da liberdade para os crimes em geral (contra o patrimônio, contra as liberdades individuais como um todo) e para os crimes contra minorias em especial, ou tem que se criminalizar a homotransfobia como se criminaliza tudo nesse país, sob pena de nefasta e inconstitucional hierarquização de opressões, pois se a arma mais dura do Estado (o Direito Penal) é usada só para algumas opressões e não outras, aquelas são tidas como “mais graves” do que estas.7 Isso legitimaria a nefasta ideologia homotransfóbica pela qual pessoas LGBTI+ não seriam dignas de proteção da mesma forma que pessoas cishétero em geral e integrantes de outras minorias sociais em especial (pense-se nos crimes contra pessoas negras, de religiões minoritárias, com deficiência, contra as mulheres, as crianças, as pessoas idosas, as pessoas vivendo com HIV/AIDS – PVAH etc, todas minorias sociais com a proteção especial da punição penal das opressões que lhes assolam).

3. Efeitos da decisão da ADO 26 e do MI 4.733

A decisão teve relevantes efeitos práticos e simbólicos no enfrentamento da homotransfobia. Não foi decisão “puramente simbólica” no sentido crítico da doutrina penal contra “leis penais simbólicas”, pois teve o relevantíssimo efeito prático de considerar como crime condutas que não eram assim consideradas. Embora críticas ineptas teimem em dizer que “toda” forma de homotransfobia já era criminalizada pelo Código Penal, isso não é verdade. As condutas de discriminar alguém e de proferir discursos de ódio (contra coletividades) não são criminalizadas pelo Código Penal, pois o crime de constrangimento ilegal supõe violência ou grave ameaça para se consumar (CP, 146), donde não é qualquer “discriminação” que nele se enquadra, ao passo que, embora a lei não o diga, os crimes de difamação e injúria (CP, 139 e 140) são entendidos como abarcando vítimas individualizadas (ainda que múltiplas), donde não se aplicam a ofensas a coletividades. Tais condutas só são criminalizadas pelo art. 20 da lei antirracismo (lei 7.716/89), pelo tipo penal de praticar, induzir ou incitar o preconceito e a discriminação por raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional, donde foi neste crime por raça que a discriminação homotransfóbica e os discursos de ódio homotransfóbicos se enquadram após a decisão do STF.

4. As nefastas críticas de espantalho8

Nem tudo são flores. Há juristas que insistem em invocar o falso argumento de espantalho de que a decisão teria feito o que ela explicou que não fez, ao acusá-la de ter supostamente feito “analogia”. Como muitas pessoas do Sistema de Justiça só cumprem decisões, mesmo vinculantes, quando não acham violaram o Direito, ou as aplicam da forma mais restritiva possível quando obrigadas, tais espantalhos têm esse efeito pernóstico nas pessoas que (compreensivelmente) não conseguem ler todas as decisões do STF e precisam confiar no que a doutrina diz sobre elas. Por isso, em Representações ao MP para propositura de ações penais por crime de racismo homotransfóbico, crio tópico que explica que o STF não “legislou” nem fez “analogia” ao reconhecer a homotransfobia como racismo, à luz dos conceitos de raça social e de racismo social que o STF não inventou, como provam as diversas citações doutrinárias do HC 82.424/RS (de Celso Lafer, Miguel Reale Jr., Uadi Bulos etc).

Cunhei o conceito de racismo citado pela decisão a partir de lições da literatura negra antirracismo, principalmente a obra de Achille Mbembe, pela qual raça e racismo consistem no alterocídio, a designação “do(a) Outro(a)” como “ser perigoso/degenerado” que precisa ser “controlado” e até “eliminado”, aduzindo que a religião e a cultura substituíram a biologia na definição dos conceitos de raça e racismo, que não têm uma “essência”, pois evoluem para abarcar novas situações em novos momentos históricos.9 Segundo Silvio Almeida, o racismo é conceito eminentemente socioantropológico e não biológico10 pela naturalização de grupo como dominante e desumanização de integrantes do grupo estigmatizado.

O conceito de STF é coerente com esses conceitos gerais de raça social e racismo social da literatura antirracismo, em interpretação evolutiva coerente com o “limite do teor literal” dos tipos penais “por raça”, único limite do Direito Posto à interpretação penal criminalizadora, que exige interpretação literal e não “restritiva”. O Judiciário em geral interpreta as leis, mesmo penais, só com base no limite do teor literal, inclusive à luz de literaturas especializadas e não só segundo o “sentido coloquial (comum)” das palavras. Discordar disso não legitima a teratológica acusação de que a decisão teria “incentivado” a violação dos limites do Direito Posto. E no sentido coloquial das palavras, muitas pessoas ainda afirmam que pessoas LGBTI+ como integrantes de uma “raça desgraçada”, “raça do demônio” e afins mostram que até pelo “sentido coloquial (comum) das palavras” as pessoas LGBTI+ são consideradas como uma “raça social”.11 Ou seja, historicamente e até hoje lamentável parte considerável do senso comum considera pessoas LGBTI+ como integrantes de “raça desgraçada/maldita/do demônio” por nossa mera orientação sexual não-heteroafetiva ou identidade de gênero não-cisgênera (transgênera), donde o argumento em questão, embora defensável, mostra ignorância no tema que discute e, assim, é simplório e equivocado.

5. Doutrinadores(as) criminalistas que defendem a decisão

Cabe citar que foi Guilherme Nucci quem teve o insight de entender que, à luz dos conceitos de racismo social e de raça social do HC 82.424/RS, discriminar homossexuais configura crime de racismo por interpretação literal e não por “analogia”.12 Tive o mérito de desenvolver profundamente a tese nas ações e na doutrina citada pela decisão, mas é relevante citar que um dos criminalistas mais prestigiados e lidos do país, desembargador Criminal do TJ/SP, foi quem criou a tese e continua respaldando-a.

Trata-se de algo importante de ser citado ante a arrogância epistemológica de diversas críticas, que falam como se apenas “não-criminalistas” (sic) defendessem a decisão. Algo corroborado por Prefácios de obra coletiva que organizei e coescrevi em defesa do acerto técnico-jurídico-penal da decisão. Alexandre Morais da Rosa concordou com minha crítica de flagrante violação da boa-fé objetiva das críticas que imputam “analogia” à decisão, por não enfrentarem sua fundamentação concreta; Alice Bianchini aplicou aqui a crítica de Franz Street pela qual doutrina e jurisprudência adotam a cômoda postura de criticar uma decisão judicial ou proposta doutrinária por singela acusação de “analogia criminalizadora” sem enfrentar a fundamentação concreta da proposta criticada, que explica não estar fazendo isso, para conclamar a doutrina a fazer um “debate sério sobre os fundamentos reais (e não imaginários) da decisão. Por isso, Soraia da Rosa Mendes afirmou que os artigos do livro, desenvolvendo e defendendo a fundamentação do STF, supra sintetizada, configurar prova cabal de que a decisão não fez juízo de “analogia” ao reconhecer a homotransfobia como forma de racismo, enquanto crime “por raça”. Daí Alexandre ter qualificado como “atitude científica reprovável” a crítica da decisão por sua conclusão, sem enfrentar seus fundamentos concretos, de “juízo de adequação da homotransfobia nos crimes por raça”, no sentido de raça social e de racismo social (supra), como destacou a grande Maria Berenice Dias em outro Prefácio.13

Muitas pessoas se incomodam com as adjetivações que faço a tais críticas. Ocorre que é preciso ver se a adjetivação é pertinente ou não. Ora, se uma decisão explica, pormenorizadamente, que pelos conceitos que adota, realizou silogismo (fruto de interpretação literal) e não “analogia”, como qualificar uma crítica que ignora tudo que a decisão diz para acusa-la de ter feito algo (“analogia”) que ela fundamentou não fazer?! Como não chamar essa postura de leviana, por manifestamente imprudente e, assim, violadora do padrão de conduta diligente imposto à pessoa prudente decorrente do princípio da boa-fé objetiva? Como não chamar essa postura de atitude de quem quer induzir leitores(as) em erro, se leu a decisão? Ou postura de quem critica a decisão por sua conclusão e não por sua fundamentação? Quando faço esse contraponto, recebo puro silêncio eloquente em resposta, de pessoas indignadas por eu qualificar como leviana a crítica de autor(a) “de peso”. Ora, então defendem que se tem que “acreditar” ou “respeitar” qualquer terraplanismo argumentativo só porque foi dito por jurista de peso?! Quem desrespeita a história de tal jurista de peso é ele(a), ao fazer uma crítica leviana tal, que desrespeita tanto a Suprema Corte, ao acusa-la de ter feito algo que noções basilares de Direito Penal dizem ser proibido, quanto este autor enquanto advogado das ações, por ter sido eu que pedi ao STF fazê-lo, explicando que a tese não configura analogia in malam partem. Mas a esse desrespeito tais críticos(as) e quem se incomoda com o tom da crítica a tais críticas não se importam...

Discordar da decisão com seriedade demanda enfrentar seus fundamentos concretos/reais, sem focar em imaginário “fundamento” de “analogia” (cf. Alice Bianchini, supra). Quem discorda dos conceitos de “raça” e “racismo” do STF deve entender que ele teria feito qualificação jurídica do fato “equivocada”, que não se confunde com decisão “legislativa” ou que teria feito “analogia”, pois “qualificação jurídica incorreta de fato” é distinta de juízo de “analogia”. Pensar (equivocadamente) que a decisão teria adotado conceitos “intoleravelmente vagos” de raça e racismo implica crítica relativa ao princípio da “taxatividade” e não da “proibição de analogia”. Como subprincípios distintos do princípio da legalidade penal estrita, não se pode misturar a crítica de taxatividade com a de proibição de analogia.

6. O princípio da taxatividade e a constitucionalidade da criminalização por elementos normativos do tipo (como “raça”) à luz da dogmática penal hegemônica

O conceito de racismo ratificado pela decisão finaliza com trecho fundamental relativo ao princípio da taxatividade, pelo qual “o critério raça [serve] como cláusula valorativa apta a permitir a evolução do conceito de racismo para outras situações que também se enquadrem neste estrito conceito ontológico-constitucional de racismo”.14 A expressão cláusula valorativa foi usada no sentido de elemento normativo do tipo, que notoriamente é aquele que tem seu exato significado delimitado por valoração do Judiciário, em oposição aos chamados elementos descritivos do tipo, que têm sua compreensão delimitada de forma precisa pela lei penal, consoante notoriamente aceito pela doutrina penal e pela jurisprudência penal hegemônicas.

Claus Roxin defende a constitucionalidade da criminalização por intermédio de cláusulas valorativas à luz do princípio da taxatividade penal, quando a lei penal seja “suficientemente clara” à luz da teoria constitucional do bem jurídico-penal.15 César Bittencourt aduz que embora não se deva abusar de conceitos valorativos nas leis penais, é inevitável sua utilização em algum grau, pela impossibilidade de definição exata de toda conduta violadora de bens jurídicos penais, donde necessário “uso equilibrado das ditas cláusulas gerais valorativas”, para possibilitar a “abertura do Direito Penal à compreensão e regulação da realidade dinâmica da vida em sociedade, sem fissuras, com a exigência de segurança jurídica do sistema penal”, donde só “a total indeterminação será inconstitucional”16 Guilherme Nucci ensina que os “tipos abertos” só são inconstitucionais quanto a excessos ofensivos à taxatividade, mas não por qualquer abertura, pois o tipo de “terminologia aberta constitui parte integrante da necessidade de exposição de ideias mais complexas, impossíveis de descrição pormenorizada”.17

Em suma, para tradicional doutrina penal hegemônica, só violam o princípio da taxatividade os tipos “abusivamente abertos”, “incompatíveis com a segurança jurídica” por não possuírem “parâmetro mínimo indispensável para conferir um padrão aceitável de aplicação prática”, sendo inconstitucional só aquilo que gere “excessos incompatíveis com a intervenção mínima do direito penal”.18 E isso é ratificado pela tradicional jurisprudência penal hegemônica, como prova o julgamento da Corte Especial do STJ, ao julgar o EDiv no REsp 1.193.248/MG (j. 26.6.2021), que afirma que não só o Direito Administrativo Sancionador, mas também o Direito Penal, mesmo lidando com a liberdade, admite a existência de cláusulas valorativas, enquanto elementos normativos do tipo, para criminalização de condutas, citando muitos exemplos da legislação penal criminalizadora brasileira nesse sentido. Curioso como na hora que a homotransfobia é considerada crime por concretização de elemento normativo do tipo por juízo valorativo do Judiciário toda essa dogmática penal basilar e hegemônica é solemente desconsiderada pelas críticas... E isso não significa que não se possa criticar a dogmática hegemônica para se propor algo em seu lugar, é evidente que se pode, mas as críticas não podem fingir desconhecer que a homotransfobia foi reconhecida como crime de racismo por interpretação concretizadora de elemento normativo do tipo "raça", pela lógica da dogmática doutrinária e jurisprudencial penal hegemônica(s), o que afasta ou, ao menos, diminui muito o peso das críticas de suposta (e inexistente) “violação” da legalidade penal estrita por quem defende um critério distinto desse da dogmática penal hegemônica.

Raça” configura elemento normativo do tipo dos crimes de racismo, donde os crimes “por raça (social)” abarcam a homotransfobia como crime de racismo social. Não se podem considerar como “intoleravelmente vagos”, por “insuficientemente claros” ou “abusivamente abertos” conceitos de raça e racismo (social) consagrados em precedente do STF (HC 82.424) e compatíveis com a literatura antirracismo, ainda que por interpretação evolutiva. Discordar de uma interpretação não significa poder considera-la “indefensável”, sob pena de arrogância epistemológica incompatível com um debate sério. Em posterior artigo desenvolverei esses temas dogmáticos.

A decisão foi corretamente usada para afirmar que “racismo reverso é um equívoco interpretativo”,19 pois o conceito de racismo do item 3 da Tese do STF consagra a literatura antirracismo hegemônica pela qual racismo é sistema de opressão que supõe relações de poder entre integrante de grupo dominante contra integrante de grupo dominado, pelo qual se desumaniza pessoa por seu pertencimento a grupo estigmatizado. Há tantas condicionantes para ele incidir que é indefensável afirmar que “qualquer coisa” poderá “agora” ser considerada como “discriminação ou ofensa racista”. A Tese do STF reforçou a diferença constitucional entre discriminações atentatórias a direitos e liberdades fundamentais (CF, 5º, XLI) para o racismo (CF, 5º, XLII), este como forma de discriminação mais grave que as discriminações em geral, pela desumanização que perpetra.

7. Conclusão

O reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo respeitou o princípio da legalidade penal estrita, por ter sido feito através de silogismo fruto de interpretação literal dos crimes “por raça”, no sentido antropológico de raça social e de racismo social já afirmados por precedente histórico do STF (HC 82.424/RS), que se pautou em forte literatura antirracismo, penal e constitucional nele citada. Acusar a decisão de ter feito “analogia in malam partem” configura crítica de espantalho, imputando “fundamentos” imaginários (cf. Alice Bianchini) e configura violação do princípio da boa-fé objetiva (cf. Alexandre Morais da Rosa, ratificando essa minha crítica). É incrível a postura irresponsável das pessoas de criticarem uma decisão sem enfrentar seus fundamentos concretos, por isso induzir o público em erro, como se o STF tivesse “se fundamentado” em “crime por analogia”, que não foi o que ele fez, sendo assim leviano acusar a decisão de ter feito “juízo de analogia” (sic), já que ela não só negou isso, mas fundamentou a negativa, demonstrando pormenorizadamente que pelos conceitos antropológicos de raça social e de racismo social, a homotransfobia configura crime de racismo por interpretação literal dos crimes “por raça” (cf. item 2). Discordar do conceito de racismo do STF implica defender que ele teria feito “qualificação jurídica do fato” de forma errada, o que é muito diferente de “decisão por analogia”. Achar que a decisão teria supostamente violado o princípio da taxatividade (que defendi ser um equívoco no item 6 à luz da concretização interpretativa de elementos normativos do tipo, como “raça”) não permite acusar a decisão de ter feito “analogia”, por serem dois subprincípios distintos do princípio da legalidade penal estrita. Incrível tamanhas obviedades basilares terem que ser ditas, ainda mais a juristas-penalistas. Portanto, configuram inépcia ou má-fé as acusações da decisão ter perpetrado suposta “analogia in malam partem”.

A decisão do STF respeita a lógica do minimalismo penal ao garantir a punição penal para ofensa à tolerância contra pessoas LGBTI+ (bem jurídico-penal) ante a ineficácia dos demais ramos do Direito para isso garantir, pelo fracasso de leis locais antidiscriminatórias que punem a homotransfobia em alguns Estados e municípios. Ademais, garantiu a igual proteção penal à população LGBTI+ relativamente a outras minorias sociais e isso é algo a se celebrar, socialmente e constitucionalmente, pelo princípio da igualdade configurar-se como uma imposição constitucional relativa que exige que, garantida alguma proteção legal a algum grupo social, deve ela ser garantida a outros que se encontrem na mesma situação. Obviamente, isso não justifica a “analogia penal in malam partem”, mas a fundamentação concreta da decisão do STF mostra que ele se limitou a fazer uma interpretação literal dos crimes por raça à luz do elemento normativo raça concretizado valorativamente enquanto raça social para punir a homotransfobia enquanto espécie de racismo social (cf. supra).

Por outro lado, a decisão empoderou a comunidade LGBTI+, pela superação do inconsciente coletivo de que “homotransfobia não é crime”, antes usado mesmo em situações em que a conduta era criminosa, tamanha a internalização da impunidade penal homotransfóbica até então. Mesmo a agravante e qualificadora de motivo torpe, que o STF afirmou incidir em casos de homotransfobia, era raramente lembrada em denúncias e condenações. Os gritos “LGBTIfobia é crime” e equivalentes ajudaram na disputa política contra os discursos de ódio homotransfóbicos, não só nos Legislativos Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, mas na sociedade em geral, e na sua punição jurídica não só penal, mas também cível, por danos morais, pois em sociedade punitivista como a brasileira, uma conduta não ser considerada crime acaba dificultando sua punição mesmo em outros ramos do Direito, por vista como “menos grave” que as criminalizadas. Daí a importância também simbólica, embora principalmente prática, da decisão. Embora precisemos de capacitações e sensibilizações do Sistema de Justiça para superar resistências diversas ao cumprimento da decisão, ela tem gerado investigações, denúncias e condenações penais e tem tido efeito positivo na luta técnico-jurídica contra a homotransfobia, o que merece ser celebrado.

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1 IOTTI, Paulo. STF não legislou nem fez analogia ao reconhecer homofobia como racismo. Conjur, 19.8.19. Cf.: https://www.conjur.com.br/2019-ago-19/paulo-iotti-stf-nao-legislou-equipararhomofobia-racismo/.

2 BERLINCK, Fernanda. TITO, Fabio. Orgulho de ser quem se é: a luta pelo reconhecimento das identidades LGBTQIA+. G1, 27.6.22. Cf.: https://g1.globo.com/pop-arte/diversidade/noticia/2022/06/27/orgulho-de-ser-quem-se-e-a-luta-pelo-reconhecimento-das-identidades-lgbtqia.ghtml.

3 STF, HC 82.424/RS, Pleno, DJ 19.3.04, item 38 do Voto do Rel. p/Ac., Min. Maurício Correa.

4 Item 36 do Voto do Rel. p/Ac., Min. Maurício Correa.

5 STF, ADO 26/MI 4733, Pleno, j. 13.6.19. Min. Celso de Mello, p. 99. Parecer favorável da PGR: p. 10-13, em que finaliza com a citação da doutrina de Guilherme Nucci e explicando que não houve “analogía”, mas interpretação conforme à Constituição do termo legal “raça”, à luz dos conceitos de raça social de racismo social afirmados pelo STF no HC 82.424/RS. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/arquivos/2015/6/art20150624-02.pdf.

6 STF, ADO 26/MI 4733, Pleno, j. 13.6.19. Min. Celso de Mello, p. 97. Obra citada (1ª Ed): IOTTI, Paulo. Constituição Dirigente e a Concretização das Imposições Constitucionais ao Legislativo, 4ª Ed, Bauru: Spessoto, 2022, Posfácio.

7 Desenvolvo o tema com mais detalhes em: IOTTI, Paulo. Pela lógica do Direito Penal Mínimo, Homotransfobia tem que ser criminalizada. Justificando, 10 jul. 2017. Disponível em: https://www.jusbrasil.com.br/noticias/pela-logica-do-direito-penal-minimo-homotransfobia-tem-que-ser-criminalizada/476613325. Com ainda maior profundidade: IOTTI, Paulo. Constituição Dirigente e a Concretização das Imposições Constitucionais ao Legislativo, 4ª Ed, Bauru: Spessoto, 2022, cap. 3, item 3.1.1: “Respostas às críticas abolicionistas (Abolicionismo Penal) e minimalistas (Direito Penal Mínimo)”. Para discussão mais ampla: VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. Fundamentos em prol da Criminalização da Homofobia e da Transfobia. Resposta às críticas. JOTA, 07 jul. 2016. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/fundamentos-em-prol-da-criminalizacao-da-homofobia-e-da-transfobia-07072016?non-beta=1.

8 Respondi a todas as críticas de que tive ciência (tanto as de espantalho como as sérias) em: IOTTI, Paulo. STF não legislou nem fez analogia ao reconhecer homotransfobia como crime de racismo social e a população LGBTI+ como grupo racializado, enquanto raça social. Resposta às críticas. In: IOTTI, Paulo (org.). O STF e a Hermenêutica Penal que gerou o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo (sem legislar nem fazer analogia), Bauru: Spessoto, 2022 – segundo artigo. Trata-se de obra coletiva com vinte e três coautores(as), nove prefácios e anexo com outras doutrinas que defendem o acerto técnico-penal-constitucional da decisão. Em 2025 teremos a 2ª edição, com novos(as) autores(as), com textos revistos e atualizados. No presente texto, falo dos argumentos apresentados sem pontuar autores(as), para não aumentar ainda mais seu tamanho. Futuramente, farei isso para publicação em Revista Acadêmica, citando as principais críticas de autores(as) tidos(as) como “argumentos de autoridade” que, contudo, desrespeitam esse justo título por acusações sem nenhuma “autoridade do argumento”, já que criticam a decisão por espantalhos que não levam em consideração sua fundamentação concreta e a jurisprudência penal hegemônica sobre concretização legal de elementos normativos do tipo por juízo valorativo do Judiciário sem que isso configure “analogia in malam partem” e mesmo violação da “taxatividade penal”, como se explica no corpo do texto. Sendo que quem discorda dessa hermenêutica jurisprudencial penal hegemônica, o que é absolutamente legítimo, tem a obrigação de dizer que a decisão do STF relativamente à homotransfobia como forma de racismo a respeita, pelas razões explicadas no corpo do texto, mas nem isso fazem, em grosseira violação do princípio da boa-fé objetiva, enquanto padrão de conduta que se espera da pessoa prudente (no caso, da crítica prudente, com honestidade intelectual).

9 MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Trad. Sebastião Nascimento, N1-Ed, 2018, p. 20-22, 27-28, 42, 53-54, 62 e 72-74.

10 ALMEIDA, Silvio. Racismo estrutural, 2ª Ed, SP: Pólen, 2020, p. 19-22.

11 Muitas pessoas ainda chamam homossexuais de raça maldita, raça do demônio e de raça desgraçada: em petição à ADO 26, citei entrevista de neonazista ao SBT na qual chamou homossexuais de raça do inferno; o apresentador Sikera Jr. chamou a ativista Viviane Beleboni de pessoa integrando raça desgraçada (além de “uma coisa”, “merda” e “bosta”, como atestou acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo que, apesar disso, teratologicamente, disse que isso seria “mera opinião” lícita e não dano moral indenizável – atuo no caso desde então e ele pende de julgamento definitivo de recurso ao STF). Então, até mesmo pelo sentido coloquial das palavras é ainda nefastamente disseminado a visão de pessoas LGBTI+ como uma raça desgraçada ou termo equivalente (uma raça que se despreza), o que reforça a pertinência dos conceitos sociais e não biológicos de “raça” e “racismo”.

12 NUCCI, Guilherme. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 5ª ed. SP: RT, 2010, p. 305.

13 Cf. IOTTI, Paulo (org.). O STF e a Hermenêutica Penal que gerou o reconhecimento da homotransfobia como crime de racismo (sem legislar nem fazer analogia), Bauru: SPessoto, 2022 – Prefácios. Berenice é a única não-penalista entre as pessoas citadas.

14 STF, ADO 26/MI 4733, Pleno, j. 13.6.19. Min. Celso de Mello, p. 97.

15 ROXIN, Claus. Derecho Penal: parte general – fundamentos – la estructura de la teoria general del delito. Trad.: Diego-Manuel Luzón Peña, Miguel Dias y Garcia Conlledo e Javier de Vicente Remesal. Madrid: Civitas, 1997. T. I, p. 169. Explicando esta e outras doutrinas equivalentes: IOTTI, Paulo. Constituição Dirigente..., 4ª Ed, Bauru: Spessoto, 2022, cap. 3, item 2.1.

16 BITTENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 17ª Ed, SP: Saraiva, 2012, V. 1, p. 91-92.

17 NUCCI, Guilherme de S. Curso de Direito Penal. Parte Geral, V. 1, RJ: Forense, 2021, p. 85.

18 NUCCI, Op. Cit., p. 85 e 87.

19 SANTOS, Rafael. Racismo reverso é um equívoco interpretativo, decide juiz. Conjur, 29.1.20.

20 V.g. RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do Feminismo Negro? SP: Letramento, 2018, p. 41.

Paulo Iotti
Doutor e Mestre em Direito Constitucional pela Instituição Toledo de Ensino. Especialista em Direito da Diversidade Sexual e de Gênero e em Direito Homoafetivo. Advogado e Professor Universitário. Diretor-Presidente do GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero. Integrante da Comissão de Diversidade Sexual e de Gênero da OABSP. Sócio do IBDFAM - Instituto Brasileiro de Direito de Famílias.

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