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Os contratos digitais, a desnecessidade da produção de prova pericial e a interpretação correta do Tema 1061 do STJ

A contratação evoluiu da assinatura física para métodos digitais, como Token, certificado digital, biometria e reconhecimento facial, tornando o processo mais ágil e menos burocrático.

4/8/2024

A forma de contratar mudou: se antes a necessidade de um contrato físico e assinado manualmente pelas partes era a regra, hoje ela caminha para se tornar obsoleta.

De maneira muito menos burocrática e bem menos trabalhosa, os contratos têm passado por uma massiva digitalização. Isso se deve aos avanços tecnológicos de digitalização das mais diversas operações e principalmente da capacidade de validação da vontade das partes em proceder seu consentimento de formas antes impossíveis ou improváveis.

A manifestação do aceite para se firmar um contrato evoluiu de uma assinatura física, presencial e feita à mão para uma série de mecanismos diferentes de validação da vontade manifestados em ambientes digitais. Como, por exemplo, a assinatura via token/certificado digital, o aceite sistêmico em plataforma própria mediante acesso criptografado, a biometria digital, a contratação por reconhecimento de voz ou até mesmo contratação através da captura fotográfica do rosto do contratante, também conhecida como biometria facial.

Esses avanços foram recepcionados e reafirmados por diversas vezes no âmbito jurídico nacional, o próprio CC, em seu art. 107, dispõe que a validade da declaração de vontade não dependerá de forma especial, senão quando a lei expressamente a exigir. Assim, para a validade do contrato a legislação nacional já cravou que não há necessidade de uma assinatura física, podendo se dar através de meio eletrônico.

Porém, quando nos referimos a contratos que envolvem relações de consumo, inclusive daqueles formalizados digitalmente, o judiciário pátrio recebe ainda demandas que tentam questionar eventuais contratações, muitas vezes através de questionamentos quanto à validade ou não de manifestações de vontade.

Esse tipo de questionamento, comum em relações de consumo envolvendo instituições financeiras, já foi, inclusive, objeto de análise pelo STJ quando da análise do Tema 1.061, (faria ponto final e começaria com “nessa oportunidade”) oportunidade em que consolidou entendimento no sentido de que, nas hipóteses em que o consumidor impugnar a autenticidade da assinatura constante do contrato juntado ao processo, cabe à instituição financeira o ônus de prová-la.

Entretanto, de forma bastante equivocada, ao menos no que concerne às operações contratuais formalizadas digitalmente, o entendimento do STJ vem sendo usado não como um justificável redistribuidor do ônus probatório, mas sim, na maioria das vezes, como o fator mandatório de realização de uma perícia judicial, prova está muitas vezes custosa e desnecessária.

Essa acomodação injustificada na produção da prova pericial, sem, contudo, haver obrigatoriedade ou necessidade para tanto, demonstra um descolamento da interpretação correta do Tema 1.061 do STJ, já que, embora tenha atribuído o ônus da prova no banco, não especifica que a prova deve ser exclusivamente pericial.

É certo que, mesmo que impugnada a manifestação de vontade pelo consumidor em uma determinada ação, mas presentes nos autos outros elementos probatórios suficientes a confirmar ou afastar a legitimidade da assinatura constante no instrumento contratual, eventual perícia técnica resultaria dispensável e, por conseguinte, o julgamento antecipado do feito sem a realização dessa prova seria conveniente, não havendo que se falar em cerceamento de defesa sob esse fundamento.

Soma-se o fato de que, na existência de comprovação do repasse de valores ao consumidor litigante, certo é que a desnecessidade de perícia técnica se reafirma, haja vista que o contrato de mútuo, pela sua própria natureza, aperfeiçoa-se justamente com a tradição do bem.

A desnecessidade da prova pericial se destaca quando falamos de contratos formalizados digitalmente, oportunidade em que o ato de assinatura não se perfaz isoladamente, mas sim em um conjunto de elementos.

Assim, o réu que eventualmente venha então a apresentar esses elementos conjuntos, deve ter como suficientemente atendida a exigência de prova, justamente porque, diferente do contrato físico em que a análise isolada da assinatura é possível, quando se fala de uma operação pactuada através de alguma plataforma digital, o processo de assinatura engloba mais do que um simples rabisco no papel.

Nas modelagens digitais de contratos já adotadas pela grande maioria das instituições financeiras, a título de assinatura/aceite dos termos contratuais, são feitos os registros de logs de acesso informando data e hora de cada movimento da operação, registro de geolocalização com latitude e longitude do aparelho utilizado para a contratação e aceite das etapas que envolvem o ato de contratar, identificação de IP do aparelho utilizado ou algum outro elemento capaz de identificar o instrumento de contratação, além, é claro, da própria captura de imagem a título de biometria facial.

Aliado a isso, é comum que essas instituições forneçam documentos conclusivos sobre a formalização, além do contrato propriamente dito com suas cláusulas e valores, documentos estes que destacam e listam a totalidade desses elementos de assinatura, funcionando justamente como dossiês probatórios das contratações e que são passíveis de análise pelo próprio juiz.

Esses dossiês dos contratos digitais, apresentados em juízo e muitas vezes não observados pelos magistrados, justamente visam, na eventualidade de um questionamento quanto à autenticidade da manifestação de vontade, garantir a capacidade da instituição de provar essa autenticidade e possibilitar ao próprio magistrado a verificação simplificada da operação, visto que os dossiês condensam todos os elementos necessários para validação da operação pelo conjunto de informações trazidas ali, demonstrando a desnecessidade da análise pericial técnica.

No mesmo norte, a interpretação correta e suficiente das provas já produzidas, descartando provas periciais desnecessárias em contratos digitais, demonstra ainda um atendimento aos princípios processuais da Duração Razoável do Processo, da Eficiência e da Cooperação, otimizando e facilitando o alcance do resultado justo aos envolvidos, tanto em conteúdo das decisões terminativas, quanto em relação ao tempo que se leva para alcançar essas decisões.

Essa linha de raciocínio já tem sido observada por alguns julgadores, principalmente nessas hipoteses de contratos digitais, como por exemplo:

Negativa de contratação afastada. Recorrente que apresenta "Dossiê probatório de contratação digital", com captura de imagem da autora, dados do celular utilizado, latitude e longitude, IP (fls. 160/183). Prova razoável de contratação. Desnecessidade de prova pericial e impossibilidade de sua realização dada a escolha do juizado da autora. Improcedência decretada. Manutenção do empréstimo. Recurso provido. Sem sucumbência. (TJ/SP - Recurso Inominado Cível: 1042764-36.2022.8.26.0576 São José do Rio Preto, relator: Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues, Data de Julgamento: 17/10/23, 5ª turma Cível, Data de Publicação: 27/10/23) – grifo nosso

AÇÃO DE ANULAÇÃO DE CONTRATO C.C. INDENIZAÇÃO POR DANO MATERIAL E MORAL. Sentença de improcedência. Insurgência do autor. Descabimento. CONTRATO BANCÁRIO. Cédula de Crédito Bancário. Contrato Eletrônico. Validade. No dossiê da contratação constou todas as informações necessárias, como aceite da política de biometria facial e política de privacidade, dicas de segurança, captura de selfie. O réu colacionou aos autos provas fartas, cujo conteúdo é claro ao indicar a autoria do requerente. Geolocalização que se refere ao endereço residencial apontado na inicial. Fornecedor de serviço que demonstrou a relação contratual entre as partes e licitude das cobranças. Sentença mantida. Recurso não provido. (TJ/SP - Apelação Cível: 1001626-52.2022.8.26.0459 Pitangueiras, relator: Helio Faria, Data de Julgamento: 9/6/24, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 9/6/24) – grifo nosso

Assim, evidente que a autenticidade ou não da manifestação de vontade do consumidor é suficientemente capaz de ser provada pelo somatório dos elementos já indicados  nos autos quando se fala de contratação por formalização digital, conclusão que se vislumbra pela própria natureza desse tipo de operação e pela existência  dos dossiês de contratação que resumem os pontos de validação e operacionalização existentes no curso do pacto digital, inclusive suprindo a equivocada e custosa necessidade de se produzir prova pericial.

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BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2015]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

BRASIL. Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil. Brasília, DF: Presidência da República, [2002]. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406compilada.htm. Acesso em: 13 jul. 2024.

Gonçalves, Carlos Roberto. Direito Civil Brasileiro: contratos e atos unilaterais, volume 3, 20ª ed., Saraiva, 2023 – São Paulo

LUCAS, Lucas. Avanços e desafios das assinaturas eletrônicas no Brasil, 2024. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-mai-28/avancos-e-desafios-das-assinaturas-eletronicas-no-brasil/. Acesso em: 13 jul. 2024.

O ônus da prova da autenticidade da assinatura em contratos bancários: análise do tema 1061 do STJ, 2023. Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/390215/o-onus-da-prova-da-autenticidade-da-assinatura-em-contratos-bancarios. Acesso em: 13 jul. 2024.

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Recurso inominado cível nº 1042764-36.2022.8.26.0576. Recorrente: Banco C6 Consignado S.a. Recorrida: Sandra Regina Requena Martins.  Relator: Paulo Sérgio Romero Vicente Rodrigues, Data de Julgamento: 17/10/2023, 5ª Turma Cível, Data de Publicação: 27/10/2023

BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Apelação cível nº 1001626-52.2022.8.26.0459. Apelante: BANCO PAN S.A.. Apelada: Celso de Felício. Relator: Helio Faria, Data de Julgamento: 09/06/2024, 18ª Câmara de Direito Privado, Data de Publicação: 09/06/2024

Lucas Rodrigues Lucas
Sócio do Escritório Ernesto Borges Advogados. Pós-graduado em Processo Civil, Direito Empresarial e em Direito Digital. Membro da Comissão de Direito Bancário da OAB/MS.

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