Migalhas de Peso

Mais uma carta branca à perpetuação dos lixões?

Não estaria passando da hora de o Ministério Público, as agências ambientais, ONGs e outros segmentos da sociedade assumirem com mais determinação suas responsabilidades na proteção do meio ambiente e na promoção de práticas sustentáveis de gestão em ordem a esconjurar a chaga dos lixões?

2/8/2024

O legislador, ao agasalhar o entendimento de que os serviços públicos de limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos – considerados em todos os seus ciclos – se inserem no conceito amplo de saneamento básico, trouxe importante avanço normativo para melhor integração de elementos da Política Nacional de Resíduos Sólidos- PNRS (Lei 12.305/10) com o sistema e as exigências impostas pelas diretrizes gerais da atualizada Política Nacional de Saneamento Ambiental- PNSA. Com efeito, é importante considerar que, tradicionalmente, resíduos sólidos e águas pluviais são assuntos esquecidos – ou relegados ao segundo plano – na gestão das cidades. Fez bem o legislador em inseri-los no art. 3º, I, Lei 11.445/2007, até porque, ao considerá-los como componentes do saneamento básico, traz um mérito implícito: a possibilidade da gestão conjunta das respectivas estruturas. Por sinal, o caráter holístico do saneamento ambiental pressupõe não só a integração dos temas, mas a própria operação compartilhada do sistema.

Daí a nossa insistência no sentido de que sob o ponto de vista da boa técnica legislativa e da adequada gestão, afigurar-se-ia como ideal que a regulação fosse única, em prestígio ao tratamento integrado dos temas. Realmente, mais adequado se o novel diploma regulatório (Lei 14.026/2020) tivesse revogado as leis 11.445/07 e 12.305/10, fundindo-as em marco único, na medida em que integrando-se o tema resíduos sólidos no conceito abrangente de saneamento inexiste razão para a presença de diplomas distintos.

Essa concepção moderna foi discutida por ocasião do julgamento das ADIns 4.901, 4.902, 4.903 e 4.937, atinentes à higidez da Lei Florestal brasileira, em que o STF declarou a inconstitucionalidade da expressão “gestão de resíduos”, mas manteve válida a expressão “saneamento”, ambas previstas no art. 3º, VIII, ‘b’, da referida lei. O julgado acabou gerando dúvidas sobre a possibilidade de intervenção e supressão de vegetação em áreas de preservação permanente nos termos do art. 8º, caput, da lei 12.651/12, por confundir situações inconfundíveis. Com efeito, ao declarar a inconstitucionalidade do termo “gestão de resíduos” como um serviço de utilidade pública, o Tribunal acabou identificando aterro sanitário com lixão, obstaculizando, por consequência, a operação regular do primeiro, que nada tem a ver com o segundo, que a Lei 9.605/1998 enxerga como atividade criminosa (art. 54, § 2º, V).

Não por outra, em Embargos de Declaração opostos pela AGU, ainda pendentes de julgamento, restou consignada a necessidade de que a contradição seja resolvida, ante as implicações altamente nocivas para o desenvolvimento regular da política de saneamento nacional, uma vez que a gestão de resíduos – por meio de aterros sanitários – é importante instrumento da política ambiental e de implementação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei 12.305/10). Sem o aclaramento do conteúdo do acórdão – com o reconhecimento de que o manejo de resíduos sólidos está abarcado no amplo conceito de saneamento – corre-se o risco de serem paralisados todos os empreendimentos em operação ou aqueles cuja viabilidade ambiental já tenha sido declarada por meio de licença prévia ou de instalação.

É claro que a situação ideal estaria na solução integrada e consensual entre Poderes Públicos e sociedade. A judicialização é sintoma de uma “certa falta de maturidade” da comunidade nacional. De fato, as soluções obtidas junto ao Poder Judiciário, na maioria das vezes, acabam truncando equacionamentos simples de questões ambientais. Todavia, hodiernamente, esta é a circunstância que identificamos no Brasil. No presente, deve o Judiciário ser cauteloso em seus provimentos para que as decisões sejam adequadas e congruentes com a realidade.

Polêmica à parte, registre-se as principais preocupações do atual arranjo normativo no que toca à gestão de resíduos sólidos:

(i) A modelagem da prestação dos serviços – nos casos de terceirização, dependerá da celebração de contrato de concessão, mediante prévia licitação, mantidos, é claro, os contratos de programa até o advento de seu termo1. Não era essa a ideia inicial do PL 4.162/2019 que, pela redação do seu art. 20, mandava aplicar essa modelagem apenas para a contratação dos serviços de água e esgotos, deixando a gestão de resíduos sólidos subordinada ao regime então vigente dos contratos de programa, incólume, portanto, à exigência de licitação prévia. A propositura, no entanto, foi objeto de veto presidencial, ao entendimento de que viria a quebrar a isonomia entre as atividades de saneamento básico e por impactar negativamente a competição saudável entre os interessados na prestação desses serviços. A manutenção, pelo Congresso Nacional, do cirúrgico veto importou maior abertura de espaço para a iniciativa privada e melhoria da qualidade dos serviços para a coletividade.

(ii) A cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos para a garantia da sustentabilidade econômico-financeira da atividade – deve ser assegurada por meio da adequada remuneração2, a ser arrecadada pelo prestador diretamente do usuário3, na forma de taxas, tarifas e outros preços públicos, conforme o regime de prestação do serviço ou das suas atividades4. O assunto foi objeto da Norma de Referência nº 1, aprovada pela Resolução ANA 79, de 14.06.2021, que dispõe sobre o regime, a estrutura e parâmetros da cobrança pela prestação do serviço público de manejo de resíduos sólidos urbanos.

Na hipótese de prestação de serviço sob regime de delegação, a cobrança de taxas ou tarifas poderá ser embutida na fatura de consumo de outros serviços públicos, com a anuência da prestadora5, observados critérios relacionados ao nível de renda da população da área atendida e a destinação adequada dos resíduos coletados6. Enseja-se, portanto, delegação desses serviços por meio de concessões comuns, sem a necessidade de repasses municipais, já que se admite o pagamento diretamente pelo usuário.

Pela lei, as prefeituras tinham até 15 de julho de 2021 para estruturar algum tipo de cobrança7, pena de configuração de renúncia de receita nos termos da Lei de Responsabilidade Fiscal8, e possível caracterização de ato de improbidade administrativa. A percepção geral é que a medida não foi implementada, como esperado, devido ao grave impacto social e econômico da pandemia da covid em todos os setores de atividade e nas famílias, e, sobretudo, pelos prazos irreais estabelecidos. De qualquer modo, imposições tais possuem o mérito de incentivar a atuação dos Poderes Públicos, retirando-os, muitas vezes, da inércia administrativa. Seja dito de passagem, que é comum a agilização de processos, estagnados por décadas, com prazos exíguos estabelecidos por novas leis – que são, comumente, desobedecidos.     

(iii) Os limites temporais para a disposição final ambientalmente adequada dos rejeitos – neste ponto, vale lembrar que um dos aspectos mais relevantes da Política Nacional de Resíduos Sólidos- PNRS (Lei 12.305/2010) está na seu comando para o fim dos lixões a céu aberto, substituindo-os por aterros sanitários e outras formas de tratamento e disposição final ambientalmente corretas, visando não apenas a preservação do meio ambiente – pelos indefectíveis reflexos na contaminação da água, solo e do ar (65% das emissões de GEEs do setor de resíduos9) – mas também a saúde pública, por serem locais propícios para a disseminação de doenças.

A Associação Brasileira de Resíduos e Meio Ambiente- ABREMA estima que, mesmo com o fechamento de aproximadamente 800 lixões, em 2022, o Brasil ainda mantém cerca de 3 mil deles abertos, o que significa dizer que mais da metade dos municípios brasileiros ainda descarta seu lixo urbano de forma irregular, em lixões ou aterros “controlados” (que não seguem os padrões dos aterros “sanitários”). Sem contar, conforme registrado pelo Censo/2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística- IBGE, que 15,9 milhões de brasileiros queimam o lixo em suas propriedades e mais de 500 mil o enterra no entorno das moradias10.

À vista dessa nefasta prática de ainda se dispor de todo e qualquer resíduo, aproveitável ou não, em lixões, o art. 54 da Lei 12.305/10 já preconizava o seu banimento até 2014, impondo a disposição adequada de rejeitos em aterros licenciados e controlados por agência integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente- SISNAMA. No entanto, não custa lembrar, a maioria dos municípios brasileiros não cumpriu a obrigação legal, o que confirma a velha história da falta de prioridade para obras que não aparecem e não rendem votos. Só isso é capaz de explicar o desinteresse de administradores públicos – prefeitos, notadamente – em dar fim a uma indignidade que há longas décadas mantém uma porção do País aprisionada ao atraso. Com a nova redação conferida ao aludido art. 54 da LPNRS, por determinação do art. 11 da lei 14.026/20, novos prazos foram estabelecidos, em função do tamanho e das distintas realidades do município, cujo limite – 02.08.2024 – acaba de se exaurir. Por certo, novos prazos, verdadeira carta branca, virão em socorro dos renitentes descumpridores da lei, em nítida afronta ao mandamento insculpido no art. 54, § 2º, V, da Lei 9.605/98.

Destarte, a promessa de erradicação dos lixões e aterros controlados em 2024, prevista, tanto na LPNSA, quanto no decreto 11.043/22, que veiculou o Plano Nacional de Resíduos Sólidos- PLANARES, não passou de mais uma peça da aborrecida retórica ecológica.

Não estaria passando da hora de o Ministério Público, as agências ambientais, ONGs e outros segmentos da sociedade assumirem com mais determinação suas responsabilidades na proteção do meio ambiente e na promoção de práticas sustentáveis de gestão em ordem a esconjurar a chaga dos lixões?

Vejamos os próximos passos.

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1 Art. 10, § 3º, Lei 11.445/2007 (NR).

2 Art. 29, caput, e § 1º, VI, Lei 11.445/2007 (NR).

3 Art. 29, § 4º, Lei 11.445/2007 (NR).

4 Art. 29, caput, II, Lei 11.445/2007 (NR).

5 Art. 35, § 1º, Lei 11.445/2007 (NR).

6 Art. 35, caput, Lei 11.445/2007 (NR).

7 Art. 35, § 2º, Lei 11.445/2007 (NR).

8 Lei Complementar 101/2000, que visa a impor o controle dos gastos da União e entes subnacionais, condicionando-os à capacidade de arrecadação de tributos desses entes políticos. No teor do art. 14 desse Diploma, o administrador público, para praticar renúncia de receita, tem o dever de comprovar a previsão orçamentária prévia e as medidas de compensação destinadas a suprir a receita que vai deixar de ser arrecadada ou a demonstração de que a renúncia não afetará a estimativa de receitas e a meta de resultados fiscais previstas na lei de diretrizes orçamentárias.

9 MING, Celso. A chaga dos lixões, O Estado de S. Paulo, 26.07.2024, p. B2.

10 O Estado de S. Paulo, 24.02.2024, p. A20.

Édis Milaré
Advogado fundador de Milaré Advogados. Professor e consultor em Direito Ambiental; Doutor e Mestre em Direitos Difusos e Coletivos pela PUC/SP; Criador e 1° Coordenador das Promotorias de Justiça do Meio Ambiente do Estado de São Paulo; Secretário do Meio Ambiente do Estado de São Paulo (1992/1994).

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