1. Nos últimos anos ocorreu a consolidação de uma importante instituição nacional: o Sistema Único de Saúde (SUS). Nascido na década de 1980 e erigido ao patamar constitucional em 1988, o SUS recebeu, finalmente, o devido reconhecimento social durante a pandemia. Lembremos que até o início de 2020, o debate girava em torno da tese de extinção e substituição do SUS por vouchers, criando-se supostos planos de saúde "populares". Hoje, ninguém ousa sustentar essa tese, justamente porque o SUS, no enfrentamento à Covid-19, mostrou, por sobre os seus vários defeitos, que suas virtudes são incontáveis. Com efeito, o Sistema é acessível, capilarizado e eficiente, como mostrou na pandemia, embora ainda demande muitos aperfeiçoamentos, inclusive no terreno do controle judicial, por exemplo na prevenção e repressão a graves atos de improbidade. Denúncias acerca da má alocação e desvios dolosos na execução de recursos públicos são lamentavelmente frequentes.
2. Tive uma experiência muito intensa com a pandemia, uma vez que governava o estado do Maranhão, que findou esse trágico período com o menor percentual de mortalidade por coronavírus no país. Durante o momento mais intenso da crise, chegamos a ter 4 aviões com UTIs e a abrir 2 mil leitos exclusivos para tratamento de Covid-19, algo inimaginável sem a existência do SUS.
Com essas indispensáveis memórias, comprovamos que é graças ao SUS que milhares de vidas são salvas todos os dias, em todos os quadrantes do Brasil. É um engenho institucional vitorioso, contudo, não é imune a defeitos. Neste passo, destaco cinco desafios jurídicos que julgo essenciais para a melhor concretização do regime constitucional relativo ao Direito à Saúde no Brasil.
3. O primeiro dos desafios diz respeito ao Controle da Qualidade dos Serviços de Saúde, abrangendo os setores público e privado. A Educação, que também compartilha de semelhante desenho constitucional, institucionalizou ao longo do tempo um robusto sistema de avaliação. O mesmo não se verifica na Saúde. No período em que exerci mandato como Senador da República, apresentei - lastreado no artigo 197 da Constituição Federal - o Projeto de Lei 287/2024, que propõe um sistema de fixação de padrões de qualidade e atributos de qualificação das unidades de saúde, a exemplo do que acontece em relação às faculdades privadas e públicas, com a aplicação de testes, inspeções e a devida publicização das avaliações. O projeto assim está redigido:
"Art. 1º Fica instituída a Estratégia Nacional de Controle e Avaliação da Qualidade da Assistência à Saúde prestada pela Iniciativa Privada, que corresponde ao plano de ações destinado ao aprimoramento e fiscalização da qualidade dos serviços de saúde executados pela iniciativa privada.
Art. 2º A Estratégia Nacional de Controle e Avaliação da Qualidade da Assistência à Saúde prestada pela Iniciativa Privada compreende:
I - a fixação de padrões de qualidade e atributos de qualificação relevantes para o aprimoramento da qualidade dos serviços de assistência a` saúde executados pela iniciativa privada;
II - a avaliação da qualificação dos serviços de saúde executados pela iniciativa privada; e
III - a divulgação periódica da avaliação a que se refere o inciso II.
Art. 3º Compete ao órgão nacional de vigilância sanitária o estabelecimento dos padrões de qualidade e atributos de qualificação de que trata esta Lei, conforme o tipo de prestador do serviço.
Parágrafo único. O estabelecimento dos padrões de qualidade e atributos de qualificação deve se processar, no mínimo, em observância das seguintes diretrizes:
I - garantia da segurança do paciente, por meio da adoção de tratamentos efetivos, conforme comprovação científica, e dos mecanismos necessários para prevenção e recuperação de sua saúde;
II - disponibilização de recursos institucionais, assim considerados corpo técnico, estruturas e processos de cuidado, em quantitativo suficiente para atendimento célere dos pacientes, evitando-se longas esperas e atrasos potencialmente danosos à saúde.
III - cuidado responsivo e centrado no paciente;
IV - equidade, sendo vedadas distinções de tratamento, especialmente em virtude de gênero, religião, etnia, localização geográfica e condição socioeconômica;
V - cumprimento efetivo das normas expedidas pela Agencia Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) e da Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS).
Art. 4º A Estratégia Nacional de Avaliação da Qualidade da Assistência à Saúde prestada pela Iniciativa Privada será' conduzida pelo órgão nacional de vigilância sanitária, nos termos de regulamento, podendo contar com a colaboração dos órgãos estaduais e municipais.
Art. 5º Para os fins esta Lei, poderão ser consideradas, como um dos elementos de análise da qualidade dos estabelecimentos de saúde, avaliações externas (acreditação), conforme requisitos técnicos e legais estabelecidos pelo órgão nacional de vigilância sanitária.
Parágrafo único. O disposto no caput não substitui nem exclui outros componentes de avaliação, inclusive os derivados de visitas, inspeções e fiscalizações dos órgãos de regulação das profissões, conforme regulamento.
Art. 6º Os padrões de qualidade e atributos de qualificação decorrentes desta Lei aplicam-se também aos estabelecimentos públicos de saúde, os quais também devem ser alvo de avaliação, com divulgação dos resultados, na forma de regulamento.
Art. 7º A Lei no 9.782, de 26 de janeiro de 1999, passa a vigorar com a seguinte alteração:
“Art. 8o-A O descumprimento, pelos prestadores privados de serviços de saúde, dos padrões de qualidade e atributos de qualificação integrantes da Estratégia Nacional de Controle e Avaliação da Qualidade da Assistência a` Saúde prestada pela Iniciativa Privada constitui infração punível com multa diária de R$ 5.000,00 (cinco mil reais), podendo ser aumentada em até' cem vezes, se necessário, para garantir a sua eficácia em razão da situação econômica do prestador de serviço.
Parágrafo único. A penalidade a que se refere o caput aplica-se sem prejuízo:
I - da responsabilidade civil em caso de danos à saúde dos pacientes;
II - da responsabilização em caso de descumprimento concomitante das normas de proteção ao consumidor e das normas expedidas pela Agencia Nacional de Saúde Suplementar (ANS).” (NR)
Art. 8º Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação."
4. O segundo desafio que apresento refere-se ao enquadramento jurídico das fake news em matéria de saúde, que produzem um gravíssimo prejuízo à população. O exemplo mais forte disso é o constante e satânico ataque às vacinas. O Programa Nacional de Imunização no Brasil é um patrimônio que ultrapassou governos das mais diversas vertentes ideológicas, posto que foi urdido em 1973 e consagrado pela Lei nº 6259, de 1975. Doenças como varíola e poliomielite (paralisia infantil) foram erradicadas no país graças à vacinação. Entretanto, nos últimos anos temos visto hordas inconsequentes propagando notícias falsas sobre vacinas, as quais supostamente seriam causadoras de câncer, HIV ou transtornos do espectro autista. Como resultado de tamanha irresponsabilidade, a cobertura de diversas vacinas caiu no Brasil, colocando em risco, principalmente, crianças e idosos. Portanto, esse fato não pode ser banalizado e deve ser visto como de altíssima relevância no âmbito do direito sancionatório. As plataformas tecnológicas que são usadas para disseminação desses conteúdos podem ser responsabilizadas, à vista da inobservância do dever de cuidado, inclusive com base nos artigos 6º a 10 do Código de Defesa do Consumidor (Lei 8.078/90). Não é "censura", como muitos tentam absurdamente imputar. É uma questão de estatura constitucional, pois o artigo 5º, inciso V, da Constituição prevê a responsabilização por danos morais, o que abrange os gerados à coletividade (v.g., a queda da vacinação em virtude da propagação de fake news). Friso que o artigo 197 da Constituição Federal estatui que "são de relevância pública as ações e serviços de saúde", por conseguinte, montar uma indústria de sabotagem ao Programa Nacional de Imunizações não é um assunto relativo à privacidade das pessoas, nem mesmo algo protegido por uma supostamente ilimitada liberdade de expressão.
5. Como terceiro desafio, menciono a questão do financiamento e dos arranjos federativos, que implica a discussão sobre quem paga a conta no acesso à Saúde. Nos últimos cinco anos, houve o fortalecimento das emendas parlamentares ao Orçamento da União, que ingressam diretamente nas contas dos municípios para o custeio da Saúde Pública. A propósito, no dia 1º de agosto, visando ao pleno cumprimento do que o STF julgou na ADPF 854, conduzirei uma audiência de conciliação entre os Poderes Executivo e Legislativo, a fim de assegurar regras adequadas ao artigo 163-A da Constituição, especialmente quanto a rastreabilidade, comparabilidade e publicidade na execução orçamentária, o que evidentemente é de alto interesse para o adequado financiamento do SUS.
Ademais, o Supremo possui uma série de outras controvérsias sobre este terceiro desafio jurídico. Há, por exemplo, o Tema de Repercussão Geral 1234, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes, que discute a legitimidade passiva da União e a competência da Justiça Federal nas demandas que versem sobre fornecimento de medicamentos registrados na Anvisa, mas que não são oferecidos pelo SUS. No Tema de Repercussão Geral 793, relator o Ministro Luiz Fux, foi fixada a tese de que "os entes da federação, em decorrência da competência comum, são solidariamente responsáveis nas demandas prestacionais na área da saúde, e diante dos critérios constitucionais de descentralização e hierarquização, compete à autoridade judicial direcionar o cumprimento conforme as regras de repartição de competências e determinar o ressarcimento a quem suportou o ônus financeiro". Já o Tema 1033, conduzido pelo Ministro Luís Roberto Barroso, determinou que "o ressarcimento de serviços de saúde prestados por unidade privada em favor de paciente do Sistema Único de Saúde, em cumprimento de ordem judicial, deve utilizar como critério o mesmo que é adotado para o ressarcimento do Sistema Único de Saúde por serviços prestados a beneficiários de planos de saúde". No âmbito do Tema 1161, cujo redator do acórdão foi o Ministro Alexandre de Moraes, ficou determinado que "cabe ao Estado fornecer, em termos excepcionais, medicamento que, embora não possua registro na ANVISA, tem a sua importação autorizada pela agência de vigilância sanitária, desde que comprovada a incapacidade econômica do paciente, a imprescindibilidade clínica do tratamento, e a impossibilidade de substituição por outro similar constante das listas oficiais de dispensação de medicamentos e os protocolos de intervenção terapêutica do SUS".
6. No que tange ao quarto desafio, menciono as lides jurídicas sobre formação médica e distribuição desses profissionais no território nacional, por exemplo sobre programas como Mais Médicos e similares. O Conselho Federal de Medicina divulgou, em abril deste ano, um estudo chamado "Demografia Médica" que apontou a presença de 575 mil médicos atuando no país, uma média de 2,8 médicos por 1000 habitantes. O CFM diz, na divulgação do relatório, que essa é uma "uma das maiores quantidades do mundo" e que o "aumento recorde no total de médicos no País pode ser cenário de risco para a assistência". Não obstante, o que mais me inquieta, e aqui fala a minha alma nordestina e amazônida, é a má distribuição espacial dos profissionais, que deve ser objeto de sistemas de incentivos e de regulação jurídica. A região Sudeste concentra 51% dos médicos do país, com 3,76 médicos a cada 1000 habitantes. Já a região Norte, possui o índice de 1,73 médicos por 1000 habitantes. Os vazios assistenciais são uma relevante questão constitucional, posto que o artigo 196 da Constituição determina que "a saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Recordo que desde os anos 90, o Poder Executivo tenta propiciar a abertura de mais faculdades de medicina e descentralizá-las. Essa é uma questão fulcral, debatida pelo STF na ADC 81 (Relator: Gilmar Mendes)
7. Por fim, ilumino o quinto desafio versando sobre autonomia dos profissionais, direitos dos pacientes e competências de autarquias profissionais. Destaco um tema que está sob a égide do STF, na ADPF 1141, de relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, que questiona a competência do CFM para editar resolução vedando procedimento de assistolia fetal, um ato médico, em gravidez acima de 22 semanas derivada de estupro. O que está em discussão no STF não é o mérito da técnica da assistolia fetal (que está na esfera profissional), e sim se o CFM, uma autarquia corporativa, pode regular o tema a despeito do princípio da legalidade que consta no artigo 37 da Constituição Federal. Retornando à problemática das fake news, houve uma onda de postagens inverídicas na internet, com ataques especialmente direcionados contra o Ministro Alexandre de Moraes, no sentido de que ele havia "liberado" o aborto no Brasil, impulsionando mais um vetor de ódio contra o Supremo, e, por conseguinte, contra o Estado de Direito e o regime democrático.
8. Sabemos que não estamos vivendo os dias mais luminosos da humanidade. Na verdade, vivemos dias de muita dificuldade civilizacional (guerras; desigualdades absurdas; mudanças climáticas; discursos de ódio; enfraquecimento da política; descontrole sobre tecnologias). E o Brasil possui problemas estruturais secularmente conhecidos. Para enfrentarmos tantos desafios, é imperativo atualizar a tríade liberdade, igualdade e fraternidade, por sobre a lógica do medo e da mentira. O tema da saúde, inclusive na perspectiva jurídica como sublinhado neste texto, vincula-se à imprescindibilidade dessa resistência axiológica. Afinal, sem saúde, não há vida.