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A reincidência na aplicação da minorante do tráfico - Análise do HC 243.463 do STF

STF decide aplicar minorante do tráfico em caso de reincidência, contrariando entendimento predominante.

24/7/2024

Recentemente, o STF proferiu uma decisão monocrática significativa que aplicou a minorante do tráfico em um caso com reincidência. Essa decisão, proferida pelo ministro Alexandre de Moraes, destacou-se pois o entendimento que predomina atualmente é que a reincidência, específica ou não, afasta a aplicação da minorante do tráfico.

O caso concreto

No caso em questão (HC 243.463, ministro Alexandre de Moraes, DJe de 16/7/24), o paciente foi condenado a 5 anos e 10 meses de reclusão, em regime fechado, por tráfico de drogas. Foram apreendidas 6,1 gramas de cocaína, sem indícios de ligação com organização criminosa. O TJ/SP manteve a condenação, e o STJ negou a aplicação da minorante prevista no §4º do art. 33 da lei 11.343/06, justificando a decisão com base em reincidência devido a condenações anteriores por delitos de menor potencial ofensivo.

O ministro Alexandre de Moraes, acompanhando o parecer do subprocurador-geral da República atuante no STJ, discordou do entendimento da Corte Cidadã. Ele aplicou a minorante do tráfico, argumentando que a quantidade de droga não era excessiva e que não havia provas de que o paciente integrasse uma organização criminosa. Utilizando o parecer do Subprocurador-Geral como fundamento, destacou que as condenações anteriores, por crimes de menor potencial ofensivo com penas pecuniárias, não deveriam ser consideradas como reincidência. O parecer enfatizou que, se uma contravenção penal não gera reincidência, não há razão lógica para que crimes de menor potencial ofensivo sejam considerados para esse fim. A pena foi reduzida para 1 ano, 11 meses e 10 dias de reclusão em regime aberto, substituída por penas restritivas de direitos.

Discussão sobre a reincidência

A reincidência prevista no art. 33, §4º da lei 11343/06 visa distinguir entre aqueles que exercem a atividade ilícita de forma habitual e aqueles que cometem crimes de forma eventual. A lei não faz uma distinção explícita entre reincidência específica e genérica, o que gera controvérsias sobre a aplicação da minorante em casos de reincidência em crime que não tem relação com o tráfico.

Defensores da reincidência específica argumentam que somente delitos relacionados ao tráfico de drogas deveriam impedir a aplicação da minorante, pois um crime anterior não relacionado ao tráfico não demonstra habitualidade criminosa. No entanto, a jurisprudência do STJ tem adotado uma abordagem mais rígida, conforme ilustrado no AgRg no HC 743.024/SP, onde se estabeleceu que "a reincidência, seja ela específica ou não, constitui óbice à aplicação da minorante prevista no § 4º do art. 33 da lei 11.343/06, tendo em vista que um dos requisitos para a incidência do benefício é que o paciente seja primário."

Casos similares e posicionamentos relevantes

Esse entendimento, adotado pelo subprocurador-geral da República e acompanhado pelo ministro Alexandre de Moraes, já tinha sido aplicado no HC 718.091, de relatoria do ministro Olindo de Menezes, em decisão monocrática, onde se concluiu que a aplicação de penas pecuniárias por crimes de menor potencial ofensivo não deveria configurar reincidência para fins de afastar a minorante do tráfico:

"No tocante ao outro delito pelo qual já condenado, crime de desobediência, constata-se que a condenação transitou em julgado em 15/6/16 (fls. 13), tendo sido praticado novo delito, objeto do presente habeas corpus, em 14/11/16 (fls. 14). Contudo, verifica-se que aplicada apenas a pena de multa, sendo razoável e proporcional, na hipótese, a desconsideração da reincidência e seus efeitos quanto ao presente caso - em que apreendidas 9,09 gramas de maconha com o paciente (fls. 14) - ensejando a incidência da causa de diminuição de pena prevista no art. 33, § 4º, da lei 11.343/06, bem como a modificação do regime fixado para cumprimento da pena" (HC 718.091, ministro Olindo Menezes (desembargador Convocado do TRF-1), DJe de 24/5/22).

Em decisões recentes do STJ, há argumentos que reforça a visão de que a depender da pena aplicada a crimes de menor potencial ofensivo, a reincidência poderia ser afastada para fins de aplicar a minorante do tráfico. No julgamento do AgRg no HC 862.170/SP1, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca destacou que contravenções penais, puníveis com prisão simples, não geram reincidência, e que o crime de posse de drogas para consumo próprio, punível com medidas muito mais brandas, também não deveria gerar tal efeito, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade.  

Seguindo essa lógica, defendo que a reincidência em crimes de menor potencial ofensivo que resultem em penas em regime aberto ou em pena privativa substituída por restritivas de direitos não deveria afastar a minorante, por serem desproporcionais. Se na prisão simples o regime a ser fixado é o aberto, então, deve-se aplicar a mesma interpretação em crimes de menor potencial ofensivo com regime aberto. Isso também se aplica àqueles que tiverem a pena privativa substituída por restritiva de direitos, uma vez que as penas do art. 28 da lei 11.343/06 têm similaridade. 

Dessa forma, mesmo diante de reincidência por crime de menor potencial ofensivo com pena substituída por restritiva de direitos ou em regime aberto, a minorante do tráfico deve ser aplicada, por questões de proporcionalidade.

Análise crítica

A questão central é se qualquer reincidência pode afastar a minorante do tráfico. Seria mais justo verificar se a reincidência por crime anterior, que não resultou em pena privativa de liberdade e não se relaciona diretamente ao tráfico, é proporcional para afastar a aplicação da causa de diminuição.

Os professores João Paulo Martinelli e Leonardo Schmitt de Bem2 quando discutem a reincidência e sua exclusão, no tópico sobre pena de multa traz uma reflexão bem interessante:

"Margendo-se dessa análise, portanto, a questão deve ser analisada sob o enfoque da missão constitucional de redução de danos ao apenado. Partimos, para tanto, da ideia de que o ordenamento jurídico é um conjunto de normas harmônicas: se a condenação anterior a pena de multa não impede a concessão do sursis, ela afasta obrigatoriamente a reincidência, uma vez que, subsistindo essa circunstância, o benefício não se aplica.”

Esse raciocínio reforça os argumentos aqui apresentados, reforçando a conclusão proposta: a reincidência em crimes de menor potencial ofensivo, com regime aberto ou pena privativa substituída por restritiva de direitos, não pode afastar a minorante do tráfico.

Conclusão

Diante do exposto, a decisão do STF ao aplicar a minorante do tráfico, mesmo diante da reincidência por crimes de menor potencial ofensivo, representa um avanço significativo na interpretação da lei. Promove-se, assim, justiça e proporcionalidade nas decisões judiciais. A reincidência por crimes que não resultaram em pena privativa de liberdade não deve, por si só, afastar a minorante do tráfico, considerando os princípios da proporcionalidade.  

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1 O entendimento firmado pela Corte estadual não está em harmonia com a jurisprudência pacificada desta Corte Superior, pois no julgamento do RE n. 430.105/RJ, o Supremo Tribunal Federal consignou a natureza criminal da conduta tipificada no art. 28 da Lei n. 11.343/2006. No entanto, se contravenções penais, puníveis com prisão simples, não têm o condão de gerar reincidência (art. 63 do Código Penal), também o crime de posse de drogas para consumo próprio, sob pena de ofensa ao princípio da proporcionalidade, não deve gerar tal efeito, haja vista ser punível com medidas muito mais brandas, como "advertência sobre os efeitos das drogas", "prestação de serviços à comunidade" e "medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (AgRg no HC n. 862.170/SP, relator Ministro Reynaldo Soares da Fonseca, Quinta Turma, julgado em 21/11/2023, DJe de 27/11/2023).

2 (MARTINELLI, João Paulo; BEM, Leonardo Schmitt de. Direito Penal - Lições Fundamentais - Parte Geral. 1. ed. Belo Horizonte; São Paulo: Plácido, 2023. 1031 p.)

David Metzker
Sócio do escritório Metzker Advocacia, advogado criminalista, professor e palestrante, pós-graduado em Direito Penal e Criminologia pela PUC/RS e MBA em Gestão, Empreendedorismo e Marketing. Diretor Cultural e acadêmico da ABRACRIM/ES.

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