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Integridade na imprensa e no Judiciário: Hô-bá-lá-lá!

João Gilberto, ícone da bossa nova, defendeu o direito moral sobre suas obras em disputa judicial contra a EMI, evidenciando sua influência duradoura na música brasileira e global.

24/7/2024

O cantor, compositor e músico juazeirense João Gilberto (1931-2019), um dos criadores da bossa nova, deixou um imenso legado para a cultura brasileira.

Sua contribuição rítmica, sua inovadora e sincopada batida do violão, além de seu jeito suave, afinadíssimo e sucinto de cantar, influenciaram músicos e cantores brasileiros e estrangeiros.

O LP Chega de Saudade, gravado em 1958, quando João tinha 27 anos, é um marco divisor na história da música popular brasileira. Zuza Homem de Mello, biógrafo de João, narra que Tom Jobim ficou atônito ao ouvir o baiano tocar violão. João disse o seguinte a Tom sobre a origem de sua batida: “Tirei dos requebros das lavadeiras de Juazeiro”.1 Portanto, a bossa nova não é apenas carioca. Ela é, também, baiana. Sem João (sem a Bahia), não haveria bossa nova.

João Gilberto ajuizou, em 1996, uma ação indenizatória contra a gravadora EMI, alegando que o direito moral à integridade de suas interpretações foi violado, após a remasterização feita no CD “O Mito”, lançado também nos Estados Unidos sob o título de “The Legendary João Gilberto”. A coletânea continha os três primeiros LPs de João Gilberto, lançados entre 1959 e 1961.

O STJ, no REsp 879.680-RJ, sob a relatoria do ministro Castro Filho, decidiu, por unanimidade, em 06 de março de 2007, que o TJ/RJ deveria enfrentar precisamente a violação do direito moral à integridade da obra, previsto no art. 24, inciso IV, da lei 9.610/98.

O processo retornou, em 2007, para o TJ/RJ, que negou o pedido de dano moral. Então, em 2009, o processo voltou ao STJ, no REsp 1.098.626-RJ, sob a relatoria do ministro Sidnei Beneti.

O STJ, em 13/12/11, entendeu que “é direito moral do autor, inalienável, portanto, recusar modificações não autorizadas de sua obra, constatadas por perícia e firmadas como matéria fática pelo Acórdão recorrido, modificações essas realizadas por ocasião de processo de ‘remasterização’, independentemente de a obra indevidamente modificada vir a receber láureas nacionais e internacionais respeitáveis, quando resta patente e durável o constrangimento do artista pela ofensa à identidade da obra”.

O músico e compositor Paulo Jobim, filho do maestro Antonio Carlos Jobim, foi o perito judicial. No seu laudo, ficou consignado o seguinte: “O efeito prático desta equalização foi o total desequilíbrio da mixagem original, realçando a bateria e as cordas em detrimento da voz e do violão, que deveriam ser exatamente o centro das atenções. (...) Na prática, a gravação perdeu a transparência nas frequências médias e as reverberações agudas se tornam muito evidentes, atrapalhando a audição. Acrescenta-se o supérfluo, escondendo o fundamental”. O laudo consignou, ainda, que “essa equalização tão violenta chegou a alterar o timbre da voz do cantor, tornando-a muito metálica e dura”. E disse mais: “A mistura de todas as faixas também deturpa a obra, pois um disco é pensado como um conjunto de obras relacionadas. Historicamente também se perde a trajetória do artista a cada disco”.

Caetano Veloso, por sua vez, que foi o assistente técnico de João Gilberto, criticou a “péssima qualidade da masterização”, entendendo ter havido “falhas gritantes” na irregular condensação de 39 músicas – três LPs – num só CD.

O acórdão do STJ, sob a relatoria do ministro Sidnei Beneti, contém trechos do laudo pericial, do assistente técnico e de testemunhas, como Edinha Diniz (biógrafa de Chiquinha Gonzaga e profunda conhecedora do trabalho artístico de João Gilberto). Beneti entendeu que, a despeito de o CD “The Legendary João Gilberto” ter sido premiado nos Estados Unidos, a ofensa ao direito moral de integridade não deixou de existir. A premiação, por si só, não anula o senso crítico do autor relativamente à obra. Para Beneti, “o direito moral de autor relativamente à integridade da obra não se subordina ao sucesso da modificação, realizada indevidamente, porque sem o assentimento do autor”.

Segundo o ministro relator Sidnei Beneti, “o instituto do dano moral, que serviu de base à sentença e ao Acórdão para descaracterizar direito à indenização, é de outra espécie, que não a de que trata este processo, ou seja, é o dano moral comum, genérico, não o dano a direito moral do autor em manter a integridade da obra, sendo sabido que, neste último caso, o da proteção do direito moral do autor, trata-se de questão de maior rigor do que a existência da moléstia moral comum, apta a gerar indenização”.

Em seu voto-vista, que foi vencido, o ministro Massami Uyeda, discordando do relator, afirmara que “a questão que se coloca é se a alteração promovida pela EMI, em razão da compilação e remasterização das músicas interpretadas pelo recorrente João Gilberto, teriam ou não causado-lhe danos do autor de natureza moral, sendo que, repita-se, a lei exige que, além da alteração da obra, dessa alteração resulte abalo à reputação ou honra do autor.”

Acredito que não merece elogio essa visão restritiva de direito moral à integridade defendida pelo ministro Massami Uyeda, sendo acertada a opinião vencedora do ministro Sidnei Beneti, que foi seguida pelos ministros Paulo de Tarso Sanseverino, Ricardo Villas Bôas Cueva e Nancy Andrighi.

Pois bem.

Tive a honra de contar com o jurista Sidnei Beneti na banca examinadora de minha tese de doutorado, defendida, na Faculdade de Direito da USP, no dia 05 de abril de 2018. Minha tese, intitulada “Evolução da gestão coletiva de direitos autorais no Brasil: do rádio ao streaming”, sob a orientação do professor Antonio Carlos Morato, foi publicada, em 2021, pela editora Lumen Juris.

Na sessão pública de defesa, após a arguição de Sidnei Beneti, elogiei o ministro pelo acórdão do caso João Gilberto. Ele, que já havia se aposentado como ministro do STJ, pediu a palavra e contou um fato curioso. Ele já havia se aposentado como ministro do STJ. Afirmou que, ao ler uma coluna do jornalista e escritor Ruy Castro, na Folha de S. Paulo, tomou conhecimento da informação de que João Gilberto se angustiava de um caso que “dormia nas prateleiras” do STJ (os processos, em 2011, ainda eram físicos, e ficavam, literalmente, em prateleiras). Após ler o texto de Ruy Castro, Sidnei Beneti pensou: “Acaso serei eu?”. Então, descobriu que sim, que ele era o relator do processo de João.

No STJ, o processo de João Gilberto foi distribuído para o ministro Sidnei Beneti em 03 de março de 2009. Foi julgado em 13 de dezembro de 2011, dois anos, nove meses e dez dias após a distribuição.

Para quem acha que houve demora, é importante frisar que, apenas no ano de 2009, foram distribuídos 10.876 processos ao ministro Sidnei Beneti, e, em 2011, foram-lhe distribuídos 12.257, conforme relatórios estatísticos do próprio STJ.

É importante lembrar que João Gilberto completou 80 anos em 2011 e tinha direito à prioridade no trâmite processual. Ademais, como reconheceu publicamente o próprio ministro Sidnei Beneti, Ruy Castro deu uma força para a celeridade do julgamento no STJ.

Ruy Barbosa afirmou com precisão: “Nada mais útil às nações do que a imprensa na lisura da sua missão”.

Enfim, a imprensa, através de Ruy Castro – autor, dentre outras importantes obras, de “Chega de Saudade: a história e as histórias da bossa nova” –, cumpriu a sua missão. E o STJ, Tribunal da Cidadania, no julgamento do recurso especial de João Gilberto, também cumpriu, muitíssimo bem, o seu papel, enriquecendo a jurisprudência brasileira com um acórdão em prol do importante direito moral à integridade, previsto no art. 24, IV, da vigente Lei de Direitos Autorais.

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1 MELLO, Zuza Homem de. Amoroso: uma biografia de João Gilberto. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 62.

Rodrigo Moraes
Professor de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA

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