Muito embora a promessa central do projeto de lei da reforma tributária seja a simplificação do sistema tributário, as elevadas expectativas dos contribuintes poderão ser frustradas em razão de múltiplas inconstitucionalidades que o novo texto poderá trazer.
Dentre as potenciais irregularidades observadas, uma se destaca de maneira particularmente evidente: a inconstitucionalidade do princípio da não cumulatividade aplicado ao IBS - Imposto sobre Bens e Serviços e da CBS - Contribuição Sobre Bens e Serviços, previstos para substituírem o ICMS, o ISS e o PIS/Cofins entre 2026 e 2029.
Isso porque, apesar da regulamentação da reforma tributária ter mantido a essência do regime não cumulativo, que permite a compensação entre créditos e débitos tributários na mesma cadeia produtiva, o texto do PL 68/24, sob análise do Senado, introduz uma mudança significativa: se aprovado, o contribuinte somente poderá usar créditos dos valores que foram efetivamente pagos na etapa anterior da cadeia tributária, e não dos valores devidos.
Esta sutil diferença entre os termos “pagos” e “devidos”, que aparece no art. 28 do respectivo projeto de lei, poderá gerar uma enorme discrepância em termos de creditamento.
Em outras palavras, o contribuinte não poderá usar como crédito o valor do tributo eventualmente destacado na nota fiscal, mas deverá ter o controle dos valores recolhidos pelo seu fornecedor. Só assim, poderá fazer o respectivo creditamento. Talvez o sistema de split payment facilite este controle, mas ainda assim haverá certa dificuldade no controle por parte do próximo da cadeia.
Esta alteração, além de dificultar ainda mais a tomada dos créditos pelos contribuintes, contraria o princípio da não cumulatividade previsto no inciso VIII do parágrafo I, do art. 156-A, incluído recentemente pela Emenda Constitucional 132/23, que instituiu a Reforma Tributária.
Conforme o texto constitucional, o novo IBS será não cumulativo, compensando se o imposto devido com o montante cobrado (e não recolhido) sobre todas as operações nas quais seja adquirente de bem material ou imaterial.
Da mesma forma, tal regramento também é aplicado às novas contribuições (CBS), uma vez que o art. 149-B, também incluído pela reforma tributária, prevê que as contribuições observarão as mesmas regras de não cumulatividade e creditamento.
Além disso, é possível dizer que tal alteração na legislação transfere a função fiscalizatória do Estado para o contribuinte, uma vez que caberá a ele o controle do que foi efetivamente recolhido na etapa anterior, sob pena de não poder se creditar.
Tal normativa, se aprovada, poderá ser considerada minimamente confiscatória, uma vez que estipula critérios e limitações ao direito constitucional de creditamento pelo contribuinte.
Esta transferência de obrigação fiscalizatória também nos remete à semelhança da problemática de notas fiscais inidôneas, situação já extensamente debatida em inúmeros processos administrativos e judiciais.
As discussões tratavam da responsabilidade dos contribuintes de boa-fé que adquiriam mercadorias de empresas posteriormente declaradas como inidôneas, seja por irregularidades cadastrais, ou documentais. Nestes casos, os adquirentes tinham o seu crédito glosado pelo Fisco, sob o argumento que a empresa fornecedora não cumpria os requisitos mínimos de regularidade.
Dentre diversos argumentos, os contribuintes alegavam também que a função fiscalizatória quanto a regularidade do fornecedor não poderia ser transferida para o adquirente, uma vez que, além de se tratar de uma prerrogativa do Fisco, somente os órgãos governamentais possuíam instrumentos e mão de obra adequada para esta verificação.
Após inúmeras autuações e discussões administrativas e judiciais sobre o tema, o STJ por fim publicou a súmula 509, que garantiu a licitude do comerciante de boa-fé em aproveitar os créditos de ICMS decorrentes de nota fiscal posteriormente declarada inidônea, quando demonstrada a veracidade da compra e venda.
A partir de uma breve análise comparativa de ambos os cenários, é possível constatar que o texto do projeto de lei de regulamentação da reforma tributária, se aprovado pelo Senado da maneira em que se encontra, poderá gerar uma grande leva de processos, semelhantemente ao que ocorreu nos casos das notas fiscais inidôneas.
Nesta perspectiva, espera-se que o Senado exerça sua função com a devida cautela, e não aprove o texto da regulamentação da reforma tributária sem que haja uma minuciosa análise dos impactos que as palavras inseridas no texto podem gerar aos contribuintes.
Caso contrário, uma eventual aprovação poderá nos desviar dos objetivos primordiais que motivaram o início deste processo: a busca por um sistema tributário mais simples e a diminuição da carga operacional imposta aos contribuintes.