É fato que já há algum tempo os papéis de carta e os cheques deixaram de fazer parte do cotidiano da maioria das pessoas, abrindo espaço para que, em seu lugar, utilizemos os e-mails e os chats online, bem como as carteiras (aquelas que costumavam ser feitas de couro) digitais nos smartphones e relógios. Gradativamente, as tarefas do dia a dia foram virtualizadas, não só em decorrência dos avanços tecnológicos, mas também em razão da democratização do acesso a essas inovações.
Acontece que essa nova realidade enseja a constituição de um patrimônio digital, composto por bens incorpóreos que criamos e adquirimos no decorrer de nossas trajetórias virtuais – documentos de texto, vídeos, fotos e contas online, por exemplo.
É crucial pensarmos, também, que este patrimônio pode ser muito mais extenso para determinadas pessoas. Quem trabalha como criador de conteúdo nas redes sociais, por exemplo, pode ser detentor de contas monetizadas. Outro exemplo são as criptomoedas, patentes e direitos sobre produtos virtuais.
Essas premissas trazem à tona questões sobre a sucessão da chamada “herança digital”. O que acontece com esses bens no caso de falecimento do titular?
Atualmente, o ordenamento jurídico brasileiro não oferece uma resposta para essa questão, justamente porque ela não permeava as gerações passadas. Contudo, a nova conjuntura econômico-social impõe a necessidade de modernização e adequação dos institutos jurídicos, a fim de consolidá-los, de modo que possam ser aplicados indistintamente.
No contexto da reforma do Código Civil, a Subcomissão de Direito Digital apresentou anteprojeto que contou com um capítulo denominado “Patrimônio Digital”, definido como “o conjunto de ativos intangíveis e imateriais, com conteúdo de valor econômico, pessoal ou cultural, pertencentes a um indivíduo ou entidade, existentes em formato digital”.
Partindo da premissa do respeito à intimidade do falecido, a ideia é, ainda que não expressamente, classificar o patrimônio digital em bens (i) personalíssimos, (ii) patrimoniais e (iii) híbridos.
No primeiro grupo estão os bens de valor pessoal, intrinsecamente relacionados à privacidade e intimidade do indivíduo, como mensagens, conversas e e-mails. No segundo, por sua vez, encontram-se os bens digitais cujo valor econômico é inerente, como as criptomoedas e as milhas aéreas. No terceiro, por fim, ficam os ativos que, além de terem valor pessoal, também possuem valor econômico agregado – como a conta monetizada em rede social.
Com efeito, constatado o valor econômico dos bens virtuais, estes devem incorporar a herança e ser efetivamente transferidos aos herdeiros na ocasião da partilha. Ao contrário, as mensagens privadas não poderão ser acessadas, salvo expressa disposição de última vontade do falecido ou determinação judicial fundamentada em motivos justos.
No que se refere à transmissão hereditária dos dados e informações contidas em qualquer aplicação de internet, pode ser regulada em testamento, desde que discriminados os dados e informações ali contidas, bem como das senhas e códigos de acesso. Muito embora ainda não exista regulação específica sobre os bens digitais, a regra do art. 1.857, §2º do Código Civil autoriza a disposição testamentária de bens cujo caráter não é patrimonial.
A transmissão também poderá ocorrer por vias administrativas oferecidas por cada plataforma onde esses ativos estão armazenados. Aqui, elas também precisam adaptar-se às novas realidades jurídicas, implementando políticas e procedimentos que permitam a transferência segura dos ativos digitais aos herdeiros, respeitando as disposições legais aplicáveis.
O Instagram, por exemplo, possibilita somente a exclusão da conta do falecido ou a sua transformação em memorial, ante a solicitação, por formulário simples, comprovando o falecimento, de “um membro da família ou amigo”. No entanto, não há possibilidade de que o titular, em vida, por meio da própria plataforma, estabeleça qual destino gostaria de dar para a sua própria conta.
Vale destacar que o texto proposto para a reforma do Código Civil estabelece que o compartilhamento de senhas ou de outras formas para acesso a contas pessoais serão equiparados a disposições contratuais ou testamentárias expressas para fins de acesso dos sucessores, desde que devidamente comprovados documentalmente.
O que devemos ter em mente é que, em nenhum cenário, a herança digital será transferida para a plataforma, mas deverá ser objeto de sucessão aos herdeiros – sejam eles testamentários ou não.
Portanto, é notório que a reforma, no que se refere à herança digital, privilegia o respeito aos direitos personalíssimos do “de cujus”, sobretudo a privacidade e a intimidade. Ainda em processo de finalização, seu texto já deixa pistas de que a transmissão e proteção do patrimônio digital deverão ser satisfatoriamente dirimidas pela lei.
O tema tem grande repercussão e trará significativo impacto ao ordenamento jurídico. O anteprojeto, elaborado por uma comissão formada por trinta e oito juristas reconhecidamente qualificados, como Flávio Tartuce e Rosa Maria de Andrade Nery, foi recebido pelo Senado em 17/4/24, onde deverá ser analisado e deliberado.