Migalhas de Peso

Notas sobre o processo kafkiano

Um sistema impenetrável e ilógico de um julgamento existencial e a morte pelo cansaço do próprio processo.

18/7/2024

“Em Kafka a História vira um inferno porque o momento da salvação foi perdido”1. Talvez esse momento nunca tenha existido na obra “O processo”. Restando tão somente o inferno na história, foi ele causador da expressão “processo kafkiano2 como adjetivo para um processo ou decisão que se considerem absurdos3. Como se, de tão absurdos, somente pudessem ser escritos por Franz Kafka em sua distopia.

Contraditório, ampla defesa, presunção de inocência e publicidade são algumas das noções jurídicas que não se encontram no processo que atingiu o jovem banqueiro protagonista chamado “Josef K.”. Ele ocupava um cargo importante em seu trabalho e levava uma vida normal, quando, no trigésimo aniversário, foi acordado por oficiais de justiça em sua casa a lhe informar da detenção e da novidade de que ele estava sendo processado.

“Alguém certamente havia caluniado Josef K. pois uma manhã ele foi detido sem ter feito mal algum”. Assim começa um dos romances mais perturbadores do século passado. Os oficiais alegavam não terem permissão para falar o motivo da detenção. Sem entender o que se passava, K., totalmente confuso, exigia contato com os superiores dos oficiais em busca de um esclarecimento. Tinha ele certeza que não havia cometido qualquer desvio de conduta.

Como sua residência era uma pensão, K. foi levado até o quarto da vizinha, ausente, para se encontrar com o superior e tentar sanar a situação, certo de que tudo seria resolvido com uma simples conversa. Entretanto, aquele superior também não foi capaz de esclarecer o que acontecera. Apenas dizia para K. ficar atento e aguardar o telefonema do tribunal para que ele se apresentasse à primeira audiência, num domingo, sem informação de horário e local.

A obra é famosa por tratar diversos absurdos, e o principal deles é o fato de Josef K. ser acusado sem ter ideia alguma do que se tratava. Situação impensável que hoje dizemos contrariar diretamente o art. 396 do Código de Processo Penal sobre a citação do acusado por fato arguido na denúncia e seu direito de apresentar resposta.

Nesse sentido, nas palavras de Gimeno Sendra, “el proceso penal es, junto con el Derecho Penal, el sector del ordenamiento en que mayores poderes se conceden al Estado para la restricción de los derechos fundamentales que la Constitución reconoce a los ciudadanos4. O que, claramente, ocorre na obra. A pessoa do juiz, que concentra em si todos os poderes, reserva à sua arbitrariedade a violação de direitos fundamentais do acusado e norteadores de todo o processo.

Apesar da sensação de injustiça e de tentar defender o tempo inteiro sua inocência, com o decorrer do tempo K. passa a ficar absorvido com a ideia de estar sendo processado, internalizando aquilo como inevitável, sabendo que com a sentença judicial viria também uma condenação por parte da sociedade, que lhe seguiria a vida inteira, independente daquela arbitrada em juízo.

Tendo chegado o dia de comparecer ao tribunal ele descobre que a confusão estava longe de acabar e só piorava com o cenário encontrado ali: um local desorganizado, cheio de portas, andares, corredores escuros, pessoas correndo para todo lado. Aquilo o fazia perceber que o caos não encontrava-se apenas na condução do procedimento, mas perfectibilizava-se materialmente em sua frente.

Mesmo sem conhecimento, K. começava a se defender com um longo discurso que o fazia pensar estar indo bem. No entanto, depois de ter aceitado aquele processo como inevitável e do qual não poderia se livrar, K. passou a se comportar normalmente, como se comportava antes da sua detenção, aos tempos comuns na vida pessoal e profissional. E isso não era nem um pouco bom.

Josef K. não era uma pessoa agradável. Fazia pouco de seus subordinados, era arrogante, gostava de mostrar superioridade às pessoas economicamente inferiores a ele. Situação que tornou-se ainda mais desagradável quando percebeu que as testemunhas naquele processo eram seus funcionários, os subordinados que ele maldizia e tratava com severidade.

A percepção que pode ser entendida, então, é de que K. estava sendo julgado pela sua existência com um todo. Acusavam-no por toda a sua vida. No momento em que discutia com o advogado as possibilidades de sua defesa falou sobre contar a história da sua vida inteira. Ali, ficou implícito que não estava sendo julgado por uma questão em específico, mas pelo modo como vive, pela sua existência.

Diante de todos os absurdos que vão sendo relatados naquele sistema processual inquisitivo, a atmosfera que é criada assemelha-se muito a de um pesadelo. O sentimento de estar perdido numa experiência desumana é uma constante no protagonista, que se vê entregue ao futuro um palmo à sua frente desconhecido. Sem contraditório, paridade de armas, nenhum dos princípios modernos conhecidos. Na verdade, a saída que tinha em vista era esperar a morte, que lhe chegara ainda no curso do processo distópico.

Traçando um paralelo, ao analisar as situações advindas daquilo que parece ser um tribunal de exceção, é impossível assemelhar todo aquele contexto com um Estado Democrático de Direito. O Estado existe “para assegurar a continuidade do próprio indivíduo. É por esta razão que o Estado exerce o uso legítimo da força”5. Considerando isso, a violação dos direitos fundamentais na situação de K. e provavelmente de todos os demais jurisdicionados é um claro desvio de funcionalidade da materialização da força estatal. Que, embora legitimada como elemento integrante, assim permanece apenas quando não utilizada arbitrariamente.

Num Estado de Direito, o julgador deve conduzir e zelar pelo respeito à incidência com carga intensificada de princípios constitucionais garantidores e norteadores do processo. O básico do direito processual: inafastabilidade da tutela jurisdicional, devido processo legal, juiz e promotor natural, tratamento paritário e equidistante das partes, ampla defesa, presunção da inocência, publicidade dos atos processuais e motivação dos atos decisórios

De qualquer forma, a obra talvez esteja ligada com a percepção do julgamento existencial, assim como abordado em algumas interpretações, sobretudo da causa da morte de K.: o cansaço do próprio processo. Motiva-nos, pois, a pensar sobre uma culpa inerente à humanidade, pois estar vivo seria sempre cair em erros. Também reflete sobre a distopia que seria viver hoje sem as garantias trazidas pela Constituição de um Estado de Direito. E, de longe, esse pensamento só reforça sua importância para um ordenamento jurídico e seus jurisdicionados.

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1 CARONE, Modesto. Lição de Kafka. São Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 21

2 A expressão foi utilizada pelo Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial n° 1.668.984-RS ao decidir que deixar de conhecer aquele recurso criaria um limbo de negativas de competências entre STJ e STF. Este, havia se manifestado “no sentido de que a questão deve ser resolvida segundo enfoque infraconstitucional”, enquanto aquele cogitou “deixar de conhecer do presente Recurso Especial sob fundamento de que a matéria foi decidida sob o prisma constitucional”.

3 RÊGO, Eduardo de Carvalho. A culpa de Josef K.: considerações sobre a inevitável e coerente condenação do personagem principal de “O Processo”. In: OLIVIO, Luis Carlos Cancellier (Org.). Novas contribuições a pesquisa em direito e literatura. Florianópolis: Editora da UFSC, 2012, p. 66.

4 GIMENO SENDRA, Vicente. Prólogo. In: SERRANO, Nicolas Gonzalez-Cuellar. Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal. Madrid: Colex, 1990, p. 7.

5 LACAMBRA, Luis Legaz. El Estado de Derecho en la actualidad. Madrid: Reus, 1934, p. 12.

Davi Ferreira Avelino Santana
Graduando em Direito na Universidade Católica do Salvador com intercâmbio na Universidade do Porto e extensão na Pontificia Università Lateranense di Roma

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