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A consensualidade multiportas na administração pública e os primeiros passos da ANTT

ANTT aprovou o primeiro acordo de solução consensual na Compor, visando resolver disputas em contratos de transporte terrestre de forma eficaz e segura.

17/7/2024

Em maio deste ano, a ANTT - Agência Nacional de Transporte Terrestres, aprovou o primeiro acordo de solução consensual firmado no âmbito de sua Compor - Câmara de Negociação e Solução de Controvérsias, recém-criada pelo órgão regulador1 para a gestão de controvérsias no bojo de contratos de concessão, permissão e arrendamento de transportes terrestres. A instituição da Câmara representa a resposta da ANTT ao desafio que vem sendo enfrentado pela Administração Pública ao lidar com disputas acumuladas ao longo do tempo.

A Compor tem como principal objetivo estabelecer diretrizes para a prevenção e resolução consensual de disputas envolvendo os entes regulados, proporcionando maior maturidade e eficácia na atuação da Agência. Para tanto, suas atividades abarcam uma variedade de questões que permeiam as concessões, como a interpretação de cláusulas e a eficácia na fiscalização e gestão da execução contratual.

Segundo o diretor da ANTT, Guilherme Theo Sampaio, a Compor estabelece um sistema interno de solução consensual que oferece maior segurança jurídica às partes, a exemplo de estruturação de reequilíbrios econômico-financeiros e a aplicação de penalidades previstas contratualmente. Essa atuação busca diminuir o risco de um conflito arbitral ou judicial, como ocorre nos casos em que a concessionária não concorda com a deliberação unilateral da Agência2.

Nesse contexto, o primeiro caso analisado pela Compor envolveu a ANTT e a Concessionária de Rodovias Minas Gerais Goiás S/A (Eco050), responsável pelo trecho da rodovia BR-050/MG/GO. Já no início da concessão, em 2013, surgiram conflitos decorrentes de investimentos não previstos originalmente, que, inclusive, foram objeto de uma frustrada tentativa de arbitragem. Com a abertura do procedimento na Compor, a questão foi solucionada em pouco mais de três meses, pondo fim a quase uma década de discussões a respeito do reequilíbrio econômico-financeiro do contrato.

A introdução deste procedimento pela ANTT não é um evento isolado, mas sim mais uma manifestação da recente tendência da Administração Pública em adotar uma postura mais consensual em seus processos internos. Um exemplo proeminente é a atuação da SecexConcenso - Secretaria de Controle Externo de Solução Consensual e Prevenção de Conflitos3, a qual introduziu os processos de SSC - Solicitações de Solução Consensual no âmbito do TCU. Inclusive, é curioso notar que as duas primeiras SSC da Corte de Contas foram iniciadas mediante solicitações da própria ANTT4, antes da criação da Compor, evidenciando o genuíno interesse da Agência na via consensual.

Com a criação de sua Câmara, a ANTT agora pode optar entre buscar a resolução do conflito internamente, ou se valer da SecexConsenso, na esfera do TCU, considerando as possíveis vantagens e desvantagens de cada opção. Um dos atrativos para a escolha pela Compor poderia se justificar, por exemplo, pelo prazo máximo de oitenta dias para a elaboração de propostas de Solução Consensual pela Comissão de Negociação5, enquanto na SecexConsenso esse prazo pode chegar a cento e vinte dias6.

Outra vantagem da instituição do processo na Compor pode ser ponderada em razão da abertura de um espaço de maior autonomia para as próprias concessionárias. Isso porque agora elas têm a oportunidade de formular a solicitação diretamente à ANTT, ao passo em que não podem endereçar seus pedidos à SecexConsenso7.

Desse modo, a criação de um sistema interno consensual permite que os regulados possam se colocar à mesa nas negociações em posição de maior equidade com a Agência, diminuindo, assim, a distância entre regulador e regulado, além de reduzir a assimetria informacional que normalmente permeia essa relação.

Outro ponto que merece destaque diz respeito à diminuição dos custos de transação que as concessionárias teriam caso os conflitos fossem submetidos a outros modelos de autocomposição que envolvessem terceiros, a exemplo de um processo arbitral ou até mesmo uma solicitação junto à SecexConsenso, o que é reconhecido pela própria ANTT8.

Mesmo após uma análise casuística acerca das vantagens e desvantagens pela escolha de uma ou outra alternativa, é possível vislumbrar uma complementariedade entre elas, de forma a criar um ambiente consensual integrado e não exclusivo. Isso se reflete, especialmente, na possibilidade de submeter eventuais controvérsias no bojo de contratos de concessão à Compor sem a necessidade prévia de recorrer à SecexConsenso, e vice-versa.

A Compor, então, se configura como um microssistema consensual especializado, facilitando o diálogo entre as partes que efetivamente acompanharam a elaboração e execução dos contratos, como demonstrado com o leading case da Eco050. Com isso, representa mais um importante passo na implementação de um verdadeiro sistema multiportas de consensualismo no âmbito da Administração Pública federal, de forma integrada com o papel de mediador técnico desempenhado pelo TCU no bojo da SecexConsenso.

Não obstante a opção pela resolução interna ou externa de conflitos, a implementação de abordagens consensuais inevitavelmente levanta discussões acerca do papel das instituições e a concordância das partes envolvidas. A definição clara de parâmetros norteadores para esses procedimentos é um desafio que exige uma abordagem cautelosa, especialmente à medida que as soluções consensuais se tornam mais comuns e abrangentes.

Um dos principais questionamentos diz respeito à margem de discricionariedade da Administração na realização desses acordos9, levando em consideração que o Poder Público detém determinadas prerrogativas que podem vir a influenciar a escolha da melhor solução. Em outras palavras, embora haja a abertura de um espaço mais horizontalizado, os entes regulados estão negociando diretamente com a autoridade responsável pela aplicação de eventuais sanções.

Para ilustrar, uma solução consensual adotada no bojo da Compor pode ser objeto de uma futura fiscalização pelo TCU. O desafio que nasce, então, é justamente garantir maior segurança jurídica para entes sentados à mesa com os reguladores.

Sobre esse ponto, o art. 26 da LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro10 é uma importante fonte de orientação para a atuação consensual da Administração Pública, ao estabelecer que a solução adotada deverá ser proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses envolvidos.

De todo modo, é inegável que o pioneiro caso da Eco050 permite vislumbrar a promissora atuação da Compor na resolução ágil e eficiente de impasses relacionados à interpretação e execução contratual na seara dos transportes terrestres. Ao demonstrar o seu compromisso com a adoção de soluções consensuais, a ANTT estabelece um importante precedente para a modernização e aprimoramento do sistema regulatório brasileiro.

Em um cenário de crescente adoção de métodos consensuais, a Compor reflete o esforço da ANTT em obter maior celeridade nas resoluções de disputas, fortalecendo a confiança dos regulados e garantindo a continuidade dos serviços essenciais aos usuários, alinhado ao seu objetivo de promoção de um sistema de mobilidade eficiente, seguro e acessível.

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1 Instrução Normativa Conjunta nº 1, de 21 de dezembro de 2023.

2 Os conflitos já submetidos a litígio oficializado, bem como pleitos em fase administrativa, poderão ser encaminhados diretamente à Compor, onde será constituída uma comissão específica para cada caso, conforme previsto no art. 9°, §§ 1° e 2°, da Instrução Normativa Conjunta nº 1, de 2023.

3 Instrução Normativa nº 91/2022-TCU.

4 Solução Consensual nº 000.855/2023-5 e Solução Consensual nº 000.853/2023-2.

5 Art. 18, Instrução Normativa Conjunta 1/2023: “A Comissão de Negociação terá 40 (quarenta) quarenta dias úteis, contados da data da reunião inicial, para elaborar proposta de Solução Consensual, sendo possível a prorrogação desse prazo uma única vez, por igual período, mediante solicitação fundamentada do coordenador da Comissão de Negociação ao Procurador-Geral da ANTT”.

6 Art. 7º, § 4, IN 91/2022: “A CSC terá noventa dias contados da sua constituição para elaborar proposta de solução, podendo o referido prazo, a critério do Presidente do TCU, ser prorrogado por até trinta dias”.

7 Conforme se extrai do art. 2º da IN 91/2022, o concessionário não tem legitimidade para ingressar com pedido de SSC no âmbito da SecexConsenso, veja-se: “A solicitação de solução consensual de que trata esta IN poderá ser formulada: I - pelas autoridades elencadas no art. 264 do Regimento Interno do TCU; II - pelos dirigentes máximos das agências reguladoras definidas no art. 2º da Lei nº 13.848, de 25 de junho de 2019; e III - por relator de processo em tramitação no TCU.”

8 Art. 5º, Instrução Normativa Conjunta 1/2023: “Art. 5º O Procedimento de Negociação e Solução de Controvérsias objetiva auxiliar a ANTT na construção da melhor decisão administrativa, ampliar a segurança jurídica e a eficiência no cumprimento dos contratos e reduzir custos de transação na celebração de acordos judiciais ou arbitrais.”.

9 Por exemplo, no âmbito da SecexConsenso a admissibilidade de um processo de SSC depende de um exame prévio discricionário pelo presidente do TCU.

10 Art. 26, LINDB: “Para eliminar irregularidade, incerteza jurídica ou situação contenciosa na aplicação do direito público, inclusive no caso de expedição de licença, a autoridade administrativa poderá, após oitiva do órgão jurídico e, quando for o caso, após realização de consulta pública, e presentes razões de relevante interesse geral, celebrar compromisso com os interessados, observada a legislação aplicável, o qual só produzirá efeitos a partir de sua publicação oficial. § 1º O compromisso referido no caput deste artigo: I - buscará solução jurídica proporcional, equânime, eficiente e compatível com os interesses gerais; [...]”.

Thiago Cardoso Araújo
Professor da EPGE/FGV, procurador do Estado do Rio de Janeiro e sócio do escritório Bocater Advogados. Mestre e doutor em Direito pela UERJ.

Ana Luiza Moerbeck
Mestra em Direito da Regulação na Fundação Getúlio Vargas. Professora. Advogada no Bocater Advogados.

Catarina Bernardez Martins
Advogada associada de Bocater Advogados.

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