Com raízes históricas nas Ordenações Filipinas, o “plea bargaining” é fomentado desde a década de 1990 e ganhou destaque e maior clareza durante a Operação Lava Jato, que teve como alvo inicial investigar corrupção na Petrobras. A lei 12.850/13, sancionada nesse contexto, estabeleceu um procedimento específico e detalhado para a colaboração premiada.
O juiz federal Fábio Moreira Ramiro, professor de Direito Processual Penal, esclarece a aplicação prática da lei no artigo “Colaboração premiada e a possibilidade de aplicação de sanções atípicas1, do qual fazemos breves notas neste texto.
Diante da sofisticação e complexidade dos delitos econômicos e das organizações criminosas, o sistema de justiça criminal brasileiro enfrenta desafios significativos no combate à criminalidade moderna. A nova realidade criminal desafia os métodos tradicionais de investigação, evidenciando a obsolescência dos meios convencionais de obtenção de prova.
Tudo foi atingido pela globalização, inclusive o direito penal. A internacionalização da criminalidade passou a exigir respostas jurídicas mais adequadas e caracterizadas pela articulação de interesses e de instrumentos de cooperação voltados a uma maior eficácia da intervenção penal, com se propõe o “plea bargaining”. Como já afirmamos em outra sede, trata-se de “uma forma de solução de conflitos própria do modelo anglo-saxão que, quando importada, gera inúmeras preocupações quanto à sua compatibilidade ou não com a tradição continental romano-germânica”2, principalmente por ser um “contrato em matéria penal”.
A colaboração premiada é apresentada como uma expressão da justiça penal negocial, representando uma ruptura com o modelo tradicional de processo penal, que se distancia do enfrentamento da criminalidade clássica para focar em crimes econômicos e empresariais, geralmente praticados dentro de estruturas societárias e por organizações criminosas. Foi a lei 12.850/13 que estabeleceu um regime legal mais detalhado para a delação premiada, abordando aspectos como os efeitos materiais dos benefícios, procedimentos para celebração e homologação do acordo, produção de prova resultante da delação e o valor probatório do conteúdo da colaboração premiada.
O “plea bargaining” é caracterizado como um negócio jurídico processual e meio de obtenção de prova, onde as partes regulamentam voluntariamente seus interesses para alcançar efeitos jurídicos autorizados pelo ordenamento jurídico. Este negócio possui características contratuais, evidenciadas na confrontação dos interesses de ambas as partes: o colaborador se compromete a cooperar com a persecução penal em troca da promessa de receber uma decisão favorável.
Para a acusação, a delação premiada é um meio de obtenção de prova, especialmente em casos onde há dificuldade de coletar evidências por métodos tradicionais, sobretudo em delitos envolvendo organizações criminosas. Para a defesa, a colaboração é uma estratégia defensiva, buscando benefícios legais como a melhor opção no caso concreto, baseada em uma análise racional de custo-benefício. É um direito do acusado utilizar todos os meios e recursos concedidos pelo ordenamento jurídico para alcançar o melhor resultado possível no processo, incluindo a colaboração premiada como uma dessas estratégias.
Os benefícios concedidos ao colaborador devem ser proporcionais à eficácia da colaboração e considerar aspectos como a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso. Assim, a colaboração é um importante instrumento no combate à criminalidade organizada e crimes complexos, justificada pela globalização e a evolução do crime organizado.
A fase de negociação da colaboração, como primeira etapa do procedimento, inicia-se com a proposta formal para a colaboração, marcando o início da confidencialidade do acordo. O termo de recebimento desta proposta e o termo de confidencialidade, ambos preparados pelo órgão de persecução penal, devem ser assinados pelo celebrante, pelo colaborador e pelo advogado ou defensor público. É importante ressaltar que não existe um direito subjetivo à realização do acordo de colaboração, já que é um negócio jurídico processual que requer a autonomia das partes.
O acordo de colaboração se baseia no exercício livre do poder dispositivo do acusado e na autonomia de vontade do acusador, ambos atuando proativamente dentro da disputa presente na colaboração. O acordo é proposto, não imposto; e é aceito, não determinado. Contraria a lógica apresentar um termo de acordo sem o consentimento do acusador. A presença do imputado é essencial em todos os atos da colaboração premiada, incluindo as negociações.
Se a proposta não for rejeitada sumariamente, um termo de confidencialidade é firmado para prosseguir com as negociações, que vincula as partes envolvidas, impedindo rejeição posterior sem justa causa. A violação de sigilo ou a divulgação de informações sobre as negociações iniciais, antes da decisão judicial de levantar o sigilo, configura quebra de confiança e de boa-fé.
Uma vez redigido, o termo de acordo é apresentado ao juiz para homologação, processo que deve ser realizado em até 48 horas. Durante a homologação, o juiz avalia o cumprimento dos requisitos da colaboração, especialmente a voluntariedade, sem que haja prática de nenhum ato instrutório ou interrogatório sobre os fatos do acordo.
A função do juízo homologatório é fundamentalmente, mas não exclusivamente, de controle sobre os aspectos formais do acordo. O juiz verifica se os termos seguem as normas legais, se os benefícios oferecidos são possíveis, e a ausência de impedimentos normativos para o ato. O juiz não está restrito apenas à verificação do preenchimento dos aspectos formais ou vícios na manifestação da vontade do colaborador, competindo-lhe também apreciar questões relativas ao cabimento do acordo e dos efeitos a que ele se propõe.
Após a homologação judicial, inicia-se a fase de colaboração efetiva e produção de prova, que caracteriza-se por um conjunto de atos, formando um incidente probatório, onde o imputado tem a obrigação de prestar a colaboração efetiva. As informações e provas fornecidas pelo colaborador antes da homologação judicial têm validade e podem ser avaliadas e confrontadas pelas partes e pelo juízo. A lei brasileira prevê medidas específicas para a suspensão da investigação, do processo e do prazo de prescrição, visando à efetivação da colaboração antes do trânsito em julgado.
Por último, a etapa de sentenciamento na colaboração premiada é o segundo momento de atuação direta do juiz em relação a ela. Nesta fase, após a conclusão da instrução probatória, avalia-se a eficácia da delação premiada para determinar os benefícios a serem concedidos ao colaborador. Conforme estabelecido pela lei 12.850/13, o juiz deve primeiro proceder a uma análise fundamentada do mérito da denúncia, do perdão judicial e das primeiras etapas de aplicação da pena, antes de conceder os benefícios acordados. A sentença também deve considerar os termos do acordo e sua eficácia.
De todo modo, o magistrado fica vinculado aos termos do acordo homologado. O colaborador não tem um direito subjetivo à realização do acordo, mas, uma vez cumprido o acordo, ele adquire o direito aos benefícios pactuados. O sentenciamento do colaborador requer que o juiz fundamente a decisão sobre os benefícios concedidos, como a escolha e o quantum da redução da sanção penal. Portanto, o juiz constrói uma decisão pautada nas cláusulas do acordo homologado.
Além disso, há possibilidade de aplicar sanções penais que não estão expressamente previstas em lei nos acordos de colaboração premiada, um conceito que ganhou atenção em decisões recentes do STJ. O STJ reconheceu a viabilidade de sanções atípicas, desde que respeitem a Constituição, o ordenamento jurídico, a moral e a ordem pública. O princípio da legalidade, segundo o STJ, não impede a analogia “in bonam partem”, ou seja, a aplicação de sanções benéficas ao colaborador que não estão explicitamente previstas na lei, dentro de um contexto negocial distinto do processo penal tradicional.
1 RAMIRO, Fábio Moreira. “Colaboração premiada e a possibilidade de aplicação de sanções atípicas”. In: MALTA, Carolina de Souza (Org.). Direito Brasileiro Anticorrupção. v. 2. Brasília: ENFAM, 2023, p. 161-196.
2 SANTANA, Davi Ferreira Avelino. A desastrosa importação do Plea Bargaining da Common Law para a Civil Law, no Brasil. Revista Indagare, Braga, p. 5-26, jul. 2023, p. 17.