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Propriedade intelectual e crianças inventoras: Lições do personagem Franjinha, da Turma da Mônica

A propriedade intelectual abrange direitos industriais, autorais e sui generis, fundamentais para inovação e desenvolvimento, mas ainda é pouco compreendida e ensinada no Brasil.

9/7/2024

Os direitos de propriedade intelectual são formados pelos direitos da propriedade industrial (notadamente as marcas, as patentes e os desenhos industriais), juntamente com os direitos advindos da propriedade literária, científica e artística (os direitos de autor e conexos) e os chamados direitos “sui generis” como os que incidem sobre o patrimônio genético e conhecimentos tradicionais associados.

Apesar da presença constante da propriedade intelectual em nossas vidas, a compreensão sobre o que ela é e a sua importância para o estímulo à pesquisa e à inovação e a proteção da tecnologia, com vistas ao desenvolvimento socioeconômico e científico do país, segue muito longe do ideal. A propriedade intelectual soa para a maioria dos brasileiros como algo hermético e misterioso. Mesmo entre os profissionais do Direito, ainda são poucos os que têm oportunidade de acesso a um estudo mais aprofundado da propriedade intelectual, em seus cursos de graduação.

Esse ambiente de desconhecimento que se observa entre jovens e adultos nas graduações de Direito e outras não encontra melhor guarida quando passamos à realidade dos ensinos fundamental e médio. Poucas são as iniciativas educacionais no Brasil que estimulam a criatividade das crianças e, mais raras ainda, as que possibilitam que crianças e jovens gerem conhecimento com valor econômico e criem inventos passíveis de proteção por propriedade intelectual.

No ambiente internacional, a figura das “crianças inventoras” tem se tornado cada vez mais comum. Um exemplo interessante vem de Dominic Wilcox, artista do Reino Unido e criador do projeto INVENTORS (INVENTORS, 2023). Após a realização de dezenove workshops para mais de quatrocentos e cinquenta crianças, de quatro a doze anos, de sua cidade natal, Sunderland, e imediações, o artista pediu a todas que pensassem na criação de invenções que pudessem resolver problemas práticos do cotidiano. Dominic reuniu cerca de seiscentos desenhos produzidos e, destes, selecionou alguns e os levou em seguida aos fabricantes locais. Após conversar com as crianças inventoras, os fabricantes tiveram cerca de um mês para produzir as invenções que, depois, foram apresentadas em uma exposição. Entre elas, pode-se mencionar a de um menino chamado Henry, de doze anos, que inventou uma escova de dentes com pasta acoplada, que permite que, com o acionar de um botão na base do cabo, a pasta seja levada à escova. Outra invenção interessante foi a de Layla, uma menina de 11 anos, que criou um abajur com persianas que controlam a luminosidade.

Nos últimos anos, o INPI - Instituto Nacional da Propriedade Industrial1 lançou uma iniciativa importante e pioneira com vistas a fomentar o conhecimento sobre a propriedade intelectual entre docentes e discentes dos ensinos fundamental e médio no Brasil. Trata-se do “Programa PI nas Escolas”, organizado pelo instituto com o apoio de uma rede de voluntários na condição de mentores, apoiadores e parceiros institucionais, direcionados a levar a propriedade intelectual ao público infanto-juvenil (INPI, 2024). No portal do programa, merecem destaque as “Pílulas de PI” com material destinado a auxiliar os profissionais da educação na aplicação da propriedade intelectual em sala de aula (INPI, 2024b).

Os quadrinhos são um desses tantos recursos didáticos que podem ser utilizados em sala de aula para estimular crianças e adolescentes a descobrirem o mundo da propriedade intelectual. De fato, hoje é praticamente pacífico entre estudiosos das teorias de comunicação que os quadrinhos podem trazer benefícios pedagógicos ao serem utilizados como instrumentos de apoio ao tratamento de temas escolares, de forma lúdica. Há vários motivos para a utilização dos quadrinhos como meios auxiliares do ensino: contribuem para o desenvolvimento do hábito de leitura; se valem da interligação de imagem e texto para auxiliar na compreensão de mensagens; e, promovem o caráter universal da humanidade, já que muitas de suas histórias são veiculadas em todo mundo. Finalmente, há ainda o fato de poderem ser utilizados em diferentes níveis escolares (VERGUEIRO, 2016, pp. 18-25).

Entre os quadrinhos brasileiros que podem propiciar uma primeira (e fundamental) aproximação lúdica com o tema da propriedade intelectual, merecem destaque as histórias com Franjinha, criado por Maurício de Souza, em 1959. Junto com seu cachorro, Bidu, é o primeiro personagem criado entre aqueles que integram a famosa “Turma da Mônica”, que cativa brasileiros há muitas gerações. Franjinha é um “menino-prodígio”, cientista e inventor. Suas invenções por vezes não dão certo ou a turma se atrapalha ao utilizá-las, mas isso não importa já que são justamente esses equívocos e trapalhadas que garantem a diversão para as crianças leitoras.

Das histórias com Franjinha, vale sublinhar “Dinossauros à Solta”2. Nela, somos apresentados ao senhor “Emílio Nário” (um trocadilho jocoso), um suposto mecenas que, em uma reunião na Escola do Limoeiro com Dona Elza (mãe de Franjinha) e a professora Bia, faz uma oferta de bolsa de pesquisa ao menino, pedindo em troca suas patentes de invenções. Aqui, descobrimos que Franjinha, além de uma criança-inventora, é titular de patentes.

A mãe de Franjinha revela-se reticente e desconfiada com a proposta e diz que precisa discuti-la com o marido que trabalha em um escritório de patentes. Temos aqui mais uma revelação: o emprego do pai que pode ter tido influência decisiva para o amor do menino pela ciência e pelas invenções.

Mais tarde, no jantar da família, a mãe de Franjinha expressa não ter confiado na honestidade da proposta. O pai endossa a opinião da esposa e afirma ao inconsolável filho (que estava animado com a possível bolsa de pesquisa) que, na certa, o que Emílio queria era se apossar de suas invenções. Simultaneamente, Emílio (já com os trajes do vilão “Homem do Tempo”) invade o quintal da casa da família e, com a ajuda de um comparsa, ingressa no laboratório de Franjinha para roubar uma de suas criações: sua máquina do tempo.

No dia seguinte, a cidade é surpreendida por uma invasão de dinossauros. Franjinha então vai ao laboratório e descobre, na companhia de Mônica e Jeremias, que sua máquina do tempo foi roubada. É quando surge o comparsa arrependido que revela o que o vilão pretendia fazer com a máquina: ganhar dinheiro ao viajar no tempo para conhecer as criações do futuro e, depois, “inventá-las” no tempo presente. O plano começa a dar errado quando o comparsa, ao tentar trazer seu chefe de volta, percebe que a máquina acabou trazendo para o presente os dinossauros, deixando desconhecido o paradeiro daquele. Franjinha e seus amigos conseguem resolver a situação e mandar os animais pré-históricos de volta. Por fim, descobrimos o destino do “Homem do Tempo”: ficou preso na Idade das Cavernas, lamentando que tudo disponível ali já fora inventado.

Nessa rica e original história protagonizada por Franjinha, a importância de proteger invenções por patentes e não deixar que outros se apossem indevidamente delas surge como uma mensagem passível de ser transmitida em sala de aula para crianças. É preciso incentivar práticas educacionais que, cada vez mais, utilizem histórias como essa para disseminar nas escolas, de forma lúdica e didática, o conhecimento sobre a propriedade intelectual.

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1 Criado em 1970, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) é uma autarquia federal vinculada ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), que "tem por finalidade principal executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial, tendo em vista a sua função social, econômica, jurídica e técnica, bem como pronunciar-se quanto à conveniência de assinatura, ratificação e denúncia de convenções, tratados, convênios e acordos sobre propriedade industrial", nos termos do art. 2º da Lei nº 5.648, de 11 de dezembro de 1970.Entre os serviços prestados pelo Instituto, estão os registros de marcas, desenhos industriais, indicações geográficas, programas de computador e topografias de circuitos integrados, as concessões de patentes e as averbações de contratos de franquia e das distintas modalidades de transferência de tecnologia (INPI, 2024c).

2 Turma da Mônica n°11 (356), Panini Brasil Ltda, janeiro de 2022.

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INPI, 2024. Portal do Programa PI nas Escolas. Disponível em Programa PI nas Escolas — Instituto Nacional da Propriedade Industrial (www.gov.br). Acesso em 01/07/2024.

INPI, 2024b. Painel Interativo do Sistema de Propriedade Intelectual. Disponível em Pílulas de PI — Instituto Nacional da Propriedade Industrial (www.gov.br). Acesso em 01/07/2024.

INPI, 2024c. Identidade Institucional. Disponível em Identidade Institucional — Instituto Nacional da Propriedade Industrial (www.gov.br). Acesso em 01/07/2024.

INVENTORS. Disponível em: Kids inventions made real by local makers. | INVENTORS! Project (inventorsproject.co.uk). Acesso em 01/07/2024.

TURMA DA MÔNICA, n° 11 (346). Dinossauros à Solta. Barueri: Panini Brasil Ltda, 2022.

VERGUEIRO, Waldomiro. “Uso das HQs no Ensino”, in: Como usar as Histórias em Quadrinhos nas Salas de Aula. 4ª ed. 3ª reimpressão. São Paulo; Contexto, 2016.

Carlos Mauricio Ardissone
Doutor e Mestre em Relações Internacionais. Especialista em Regulação de Serviços Públicos pela FGV-RJ. Advogado formado pela UFRJ. Coordenador-Técnico no Instituto Nacional da Propriedade Industrial.

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