A importância do agronegócio brasileiro para nossa sociedade já não é novidade nem mesmo aos incultos.
Classicamente, os estudiosos de Economia, enquanto ciência, dividem-na em três setores principais:
- Primário (agropecuária e extrativismo);
- Secundário (indústria e comércio atacadista); e
- Terciário (varejo e serviços).
No entanto, o agronegócio como hoje o conhecemos não se encaixa em nenhum desses três setores; ao contrário, permeia e atravessa os três.
Acompanhando esse movimento expansionista, aportam a cada dia, em nosso país, mais e mais empresas procurando por oportunidades, e o agronegócio está entre os destinos prediletos desses investidores.
Mas tudo isso tem um preço. Um preço não… um custo!
No processo produtivo brasileiro, podemos dizer que se incluem nesse custo os encargos de financiamentos, que se renovam a cada safra.
Agronegócio, financiamento e garantia são palavras que, juntas, formam uma frase com sentido único aos ouvidos daqueles que labutam no campo.
Velocidade e modernidade, por outro lado, rimam com a expansão desse importante setor de nossa economia. No agro, o Brasil traz consigo o respeito de seus concorrentes.
Até pouco tempo atrás, o financiamento do agronegócio se limitava ao crédito oficial. Com o passar do tempo e a crescente escassez de caixa do governo, este não viu outra forma que não cumprir seu papel e direcionar boa parte dos minguados recursos que lhe restavam aos micro, pequenos e médios agricultores, e criar novos mecanismos e ferramentas financeiras capazes de dar a celeridade, modernidade e segurança jurídica exigidas pelo mercado privado para que este ocupe o papel de grande financiador do agro brasileiro.
Essa engrenagem toda movimentou mercado e governo, ao longo dos anos, na criação e adaptação de mecanismos aptos à outorga de garantias e ferramentas que pudessem incutir no mercado a agilidade e a confiança necessárias ao aparelhamento das relações comerciais envolvendo a cadeia produtiva agropecuária.
Por essa linha de raciocínio, surgiram a CPR – Cédula de Produto Rural, o CDA/WA, o CRA, a LCA, o CDCA, o PRA, o FGS e novas modalidades de financiamento hábeis a aparelhar um novo e pujante agronegócio, que passou a atrair fatias cada vez maiores de investidores interessados nos incentivos fornecidos pelas novas ferramentas financeiras.
Dentre todos esses novos títulos de crédito e modalidades de garantias, destaca-se luminosamente a CPR; de longe, o título de crédito mais utilizado no financiamento do agronegócio brasileiro.
Por outro ângulo, a velocidade do crescimento do setor agrícola requer constantes ajustes legislativos a fim de garantir uma estrutura legal que acompanhe suas particularidades e necessidades.
Nesse contexto, a lei 14.112/20, que alterou as leis 11.101/05 (lei de recuperações judiciais e falências), 10.522/02 (lei sobre cadastros de créditos não quitados) e 8.929/94 (lei da CPR), surgiu como uma peça chave, trazendo alterações significativas no regime da recuperação judicial para produtores rurais.
Além de trazer expressamente a possibilidade de o produtor rural pessoa física recorrer à recuperação judicial, a lei 14.112/20, trouxe uma importante alteração no que diz respeito ao art. 11 da lei 8.929/94 (lei da CPR).
Com a vigência da referida alteração legislativa, os créditos decorrentes da CPR física, com adiantamento parcial ou integral do preço ou representativa de operação de barter, foram excluídos da recuperação judicial, sendo considerados extraconcursais.
A nova redação do artigo não deixou dúvidas: “Na~o se sujeitara~o aos efeitos da recuperação judicial os créditos e as garantias cedulares vinculados à CPR com liquidação física, em caso de antecipação parcial ou integral do preço, ou, ainda, representativa de operação de troca por insumos (barter), subsistindo ao credor o direito à restituição de tais bens que se encontrarem em poder do emitente da cédula ou de qualquer terceiro, salvo motivo de caso fortuito ou força maior que comprovadamente impeça o cumprimento parcial ou total da entrega do produto”.
Como já salientado, a CPR, é ferramenta fundamental do agronegócio, sendo comumente utilizada para a formalização de transações comerciais e financiamentos rurais.
Por estar lastreada em produtos agropecuários, garante maior segurança e confiança a tais operações contribuindo muito para o crescimento de toda a cadeia produtiva, onde os financiamentos são vitais e necessários, inclusive à própria segurança alimentar e ao desenvolvimento econômico de nosso país como um todo.
Resta claro, portanto, que a alteração legal trazida pela lei 14.112/20, em especial com relação à modificação dada pela redação do art. 11 da lei 8.929/94, tem como objetivo, sobretudo, a proteção da economia nacional, visto que o agronegócio é responsável por grande parte do PIB brasileiro.1
Contudo, apesar da relevância do tema e da clareza do novel texto legal, alguns juízes de primeira instância e tribunais estaduais têm negado aplicação ao artigo correspondente, no que se refere à extraconcursalidade desse tipo de crédito decorrente da CPR física.
Tais negativas estão fazendo emergir desconfiança e insegurança jurídica neste que é o maior e mais pujante setor de nossa economia.
Ora, se o Judiciário deixa de aplicar uma lei sem declará-la inconstitucional, isto é, realizando o controle difuso de constitucionalidade, a insegurança impera.
De acordo com a doutrinadora Nathalia Masson2, o controle difuso de constitucionalidade, também conhecido como controle incidental, é “exercido diante de ocorrências fáticas a serem solucionadas pelo Poder Judiciário no desempenho comum de sua típica função jurisdicional, na qual se controla a constitucionalidade de modo incidental – portanto prejudicialmente ao exame de mérito – gerando efeitos tradicionalmente retroativos e inter partes”.
Pela mesma forma, em se tratando de decisões proferidas por Tribunais, devem ser observadas ainda a “cláusula de reserva de plenário”, contida no art. 97 da Constituição Federal.
Ademais, a súmula vinculante 10 do STF, nos traz a seguinte redação: “Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, art. 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte”.
Desse modo, caso entenda pela não aplicabilidade da lei federal não reconhecendo a extraconcursalidade da CPR física, no caso estudado, o juiz ou Tribunal, este último observando a cláusula de reserva de plenário, deverá expor pormenorizadamente os fundamentos de seu entendimento, declarando de forma incidental a inconstitucionalidade do referido dispositivo.
Por conseguinte, decisões que não aplicam a legislação federal que dispõe sobre a extraconcursalidade da CPR física, seja afastando sua incidência no todo, ou mesmo em parte, ou ainda dando a esta interpretação diversa da sua literalidade, sem, contudo, declarar incidentalmente sua inconstitucionalidade, devem ser consideradas ilegais.
Quanto ao tema, cumpre ressaltar também que, reconhecendo a necessidade de garantir a aplicação da legislação vigente, o ministério da Agricultura e Pecuária solicitou através do Ofício 162/24/GAB-GM/MAPA, de 6/3/24, o apoio do CNJ para orientar os juízes de primeira instância na aplicação correta da legislação, especialmente no que diz respeito aos créditos excluídos da recuperação judicial.
Outrossim, além da atuação do CNJ, é fundamental a participação do STJ que, na condição de guardião da lei federal, deve garantir a aplicação das alterações introduzidas pela lei 14.112/20.
Cabe, portanto, ao STJ, consolidar a jurisprudência sobre o tema, de modo a garantir a segurança jurídica e a estabilidade do setor agrícola.
Conclui-se claramente que a vontade do legislador foi a de resguardar o direito do credor da CPR física no tocante à extraconcursalidade dos créditos representados por este título de crédito, com adiantamento de preço ou mesmo troca de insumos (barter).
E como dizia um antigo jurista, dura lex, sed lex!
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1 Disponível em: https://www.cepea.esalq.usp.br/br/pib-do-agronegocio-brasileiro.aspx
2 MASSON, Nathalia. Manual de Direito Constitucional. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2014, p. 918.