Migalhas de Peso

Da atuação cautelosa do judiciário frente ao aumento de demandas predatórias

Litigância predatória crescente no Brasil afeta celeridade processual e ética advocatícia, desafiando princípios legais e sob análise judicial intensa.

6/7/2024

É de conhecimento notório que o sistema judiciário brasileiro tem um número crescente de demandas. Dentre essas ações, as atuações predatórias em face das instituições financeiras vêm se tornando cada vez mais recorrentes, dificultando substancialmente a celeridade processual que rege o processo civil brasileiro.

Destaca-se que a litigância predatória, em matéria consumerista, causa preocupação, tanto no Poder Judiciário quanto na advocacia, e vem sendo objeto de estudo, debate e atuação dos Centros de Inteligência dos Tribunais pátrios e do CNJ.1

As investigações realizadas revelam o modus operandi dos patronos, na medida em que têm como características predominantes, geralmente, não só a repetitividade e a apresentação de petições genéricas, mas também a adulteração dos fatos e até de documentos pessoais, comprovantes de residência e falsificação de assinaturas, por exemplo.2

Em outros termos, esse tipo de atuação vai de encontro não só com o princípio da boa-fé processual, presente no Direito Processual Civil pátrio, mas também ofende a garantia constitucional da razoável duração do processo, pois afeta as demandas legitimamente ajuizadas.3 Ademais, é nítida a afronta ao Estatuto da Advocacia e ao Código de Ética e Disciplina da OAB, tendo em vista que, na maioria das vezes, os patronos se valem de meios indevidos para captação de clientes.4

A litigância predatória, pois, afeta não só o Poder Judiciário, mas a advocacia como um todo, porque pode prejudicar o exercício fidedigno da profissão, tanto que é pauta do Tema 1.198 dos Recursos Repetitivos pelo STJ, originário de Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas na justiça de Mato Grosso do Sul, em razão da grande quantidade de processos abusivos relativos a empréstimos consignados.5

Por esse motivo, os tribunais nacionais, com o objetivo de salvaguardar a regularidade processual e combater este tipo de demanda, vêm adotando medidas diversas, como a exigência de mandato atualizado pelos causídicos. A título exemplificativo, realça-se o ilustre julgado no TJ/SP:

No processo 1017365-51.2023.8.26.0032, conduzido pelo escritório Mascarenhas Barbosa Advogados, a parte autora ajuizou a demanda requerendo a revisão do contrato de empréstimo pessoal firmado junto ao ente bancário, sob o fundamento de que a taxa aplicada de 9,99% ao mês é abusiva e ultrapassa a média do mercado indicada pelo Banco Central. Sendo assim, requereu a readequação da taxa de juros, bem como a restituição dos valores pagos a maior.

Ao receber a demanda e analisar os documentos carreados, devido ao alto índice de demandas que versam sobre a matéria, o magistrado intimou a parte requerente para que emendasse a inicial, apresentando procuração específica para o feito, a fim de “se verificar a ciência inequívoca da parte sobre a lide” (f. 63 – dos autos supramencionados).

Destaca-se que a atuação do magistrado está em conformidade com o entendimento do ministro relator Moura Ribeiro, em julgamento recente do Tema Repetitivo 1.198 do STJ, onde destacou que, antevendo-se a natureza temerária do processo, pode o juízo exigir que a parte autora apresente documentos hábeis a confirmar a seriedade da demanda.6

Ocorre que, mesmo intimada, a parte requerente quedou-se inerte e, portanto, sobreveio sentença de indeferimento da petição inicial com o seguinte esclarecimento (f. 67 – dos autos supramencionados):

A determinação judicial não foi cumprida, conforme certificado. A exigência de procuração específica para o feito advém da cautela após notícias de uso abusivo do Poder Judiciário por partes e advogados, dado o reiterado ajuizamento de diversas ações de comuns características, quais sejam; mesma questão de direito, sem apresentação de particularidades do caso concreto, distribuição por mesmos advogado ou grupo de advogados em nome de diversas pessoas físicas distintas, em um curto período de tempo, ajuizadas contra instituições financeiras, características estas definidas no Comunicado CG 2/17, expedido pelo Numoped - Núcleo de Monitoramento de Perfis de Demanda  da Corregedoria Geral da Justiça do TJ/SP. Assim sendo, após constatação de que o presente feito compartilha das especificidades descritas no comunicado suprarreferido, por observância às recomendações nele constantes, foi oportunizada a comprovação da ciência inequívoca da parte autora acerca do ajuizamento do feito, entretanto, o procurador da parte autora manteve-se inerte. Ao se determinar a emenda da petição inicial foi indicado especificamente a providência a ser tomada, mas a determinação não foi cumprida e o parágrafo único do art. 321 do CPC estabelece que, não cumprida a determinação no prazo de 15 dias, a petição inicial será ser indeferida. Ante o exposto, indefiro a petição inicial e julgo extinto o processo, sem resolução do mérito, com fulcro no art. 485, inciso I, do Código de Processo Civil.

Irresignado com o decisum, houve interposição de recurso de apelação, pretendendo a cassação e anulação da sentença, utilizando-se do argumento de que a procuração ad judicia anexada aos autos é válida, sendo incabível a exigência estabelecida pelo magistrado a quo e, que houve a violação do art. 489, §1º, III, do CPC, por suposta ausência de fundamentação da decisão.

Quando do julgamento do Recurso de Apelação interposto pela parte consumidora nos autos 1017365-51.2023.8.26.0032, a Ilustre desembargadora relatora Daniela Menegatti Milano, integrante da 19ª Câmara Cível do TJSP, realçou que o Magistrado a quo, atento ao Comunicado 2/17 do Numoped da Corregedoria Geral da Justiça do TJ/SP do Numoped e das peculiaridades do caso em questão, determinou a juntada de procuração específica, agindo assertivamente, principalmente, em razão da grande quantidade de demandas que versam sobre a mesma matéria, faz-se necessária a confirmação da ciência da parte. Portanto, não proveu o apelo e manteve a sentença proferida pelo juízo a quo.

Em consideração ao exposto, a atuação do Poder Judiciário em conjunto com os operadores do direito é imprescindível, a fim de interceptar e frear a propagação das demandas predatórias que, além de sobrecarregar as comarcas e os tribunais nacionais, desrespeitando as garantias constitucionais e as previstas no CPC, descredibilizam a atividade de procuradores legítimos.

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1 Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/litigancia-predatoria/ (Rede de Informações sobre a Litigância Predatória)

2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/407351/necessaria-distincao-entre-demandas-predatorias-e-acoes-coletivas (A necessária distinção entre demandas predatórias e ações coletivas de massa);

3 Disponível em: https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/litigancia-

predatoria-compromete-garantia-constitucional (Litigância predatória compromete garantia constitucional)

4 Disponível em: https://www.aasp.org.br/espaco-aberto/advocacia-predatoria-ofensa-a-etica-e-preciso-combater-essa- ratica/ (Advocacia predatória – ofensa à ética – é preciso combater essa prática)

5 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/04102023-Entidades-temem-que-combate-a-litigancia-predatoria-prejudique-advocacia-e-defesa-de-interesses-coletivos.aspx (Entidades temem que combate à litigância predatória prejudique advocacia e defesa de interesses coletivos)

6 Disponível em: https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2024/21022024-Relator-admite-que-Justica-exija-documentos-para-evitar-litigancia-predatoria--vista-suspende-julgamento.aspx (Relator admite que Justiça exija documentos para evitar litigância predatória; vista suspende julgamento)

Francielly Gonçalves de Oliveira
Advogada no escritório Mascarenhas Barbosa Advogados.

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