Migalhas de Peso

Discovery e recuperação de crédito em solo norte-americano

Explorando o Discovery nos EUA: Estratégias de recuperação internacional de ativos para credores brasileiros.

5/7/2024

1. Não é incomum, ao se tratar de recuperação de créditos de perfil mais alto, a localização efetiva ou a ciência de rumores de que um devedor em uma execução judicial de valor substancial possui ativos além-mar e além-fronteiras, sendo bastante comum que empresários brasileiros adquiram propriedades nos Estados Unidos da América.

2. As razões são várias e podemos destacar como mais preponderante para tal comportamento o fato de os EUA serem a primeira economia do mundo e um dos expoentes culturais do mundo ocidental; bem como o fator cultural especificamente nacional: O Brasil é um país américo-cêntrico, sendo a influência europeia secundária em nosso dia a dia, destacando-se a influência estadunidense. A propriedade de um ativo lastreado diretamente em moeda forte também é um dos atrativos.

3. A problemática surge quando um credor brasileiro pretende executar esses ativos localizados nos Estados Unidos e nesse artigo trataremos brevemente das possibilidades jurídicas envolvidas e suas principais características.

4. Assim, a Seção 1.782 do título 28 do Código dos Estados Unidos - United States Code representa uma ferramenta jurídica poderosa para tais objetivos, oferecendo a litigantes brasileiros uma via de recuperação de créditos – e também para outros fins – em solo americano, denominada localmente como “Discovery”.

Seção 1.782 do título 28 do Código dos Estados Unidos

“§ 1782 - (a) A corte distrital do distrito em que uma pessoa residir ou se encontrar pode determinar que ela dê o seu testemunho ou declaração, ou produza um documento ou outra coisa para ser utilizada em um procedimento em um tribunal estrangeiro ou internacional, incluindo investigações criminais conduzidas antes da acusação formal. A ordem pode ser feita mediante carta rogatória emitida, ou pedido feito por um tribunal estrangeiro ou internacional ou a pedido de qualquer pessoa interessada e pode ordenar que o depoimento ou declaração seja dado, ou  documento ou outra coisa seja produzido, perante uma pessoa designada pelo tribunal. Em virtude de sua nomeação, a pessoa nomeada tem poderes para administrar qualquer juramento necessário e tomar o depoimento ou declaração. A ordem pode prescrever a prática e o procedimento, que podem ser, no todo ou em parte, a prática e o procedimento do país estrangeiro ou do tribunal internacional, para tomar o depoimento ou declaração ou produzir o documento ou outra coisa. Na medida em que a determinação não prescreva o contrário, o depoimento ou declaração será tomado, e o documento ou outra coisa produzida, de acordo com as Federal Rules of Civil Procedure.

Uma pessoa não pode ser obrigada a dar seu testemunho ou declaração ou a produzir um documento ou outra coisa que viole qualquer privilégio legalmente aplicável.

(b) Este capítulo não impede que uma pessoa nos Estados Unidos dê voluntariamente seu depoimento ou declaração, ou produza um documento ou outra coisa, para uso em um processo em um tribunal estrangeiro ou internacional perante qualquer pessoa e de qualquer maneira aceitável para ele”.1

Discovery 

5. O Discovery não possui paralelos significativos em outros direitos locais, sendo uma via processual muito específica do direito norte americano muito mais poderosa do que a ação de produção antecipada de provas que temos no direito brasileiro.

6. Pelo Discovery é dado ao postulante, desde que presentes os requisitos próprios e deferido o pleito por juiz distrital norte americano, agir para efetivamente “descobrir” provas, podendo analisar computadores, nuvem e discos rígidos; registros telefônicos e bancários; dentre uma série de registros privados e sigilosos que no Brasil somente são acessíveis por entes e lides de natureza estatal, exemplos: Demandas criminais e tributárias.

7. O Discovery confere ao particular que litiga em solo americano um poder de produção de provas ímpar.

8. Por tal via, litigantes envolvidos em processos pré-existentes e que se desenvolvem fora dos Estados Unidos podem requerer formalmente a assistência de tribunais americanos na obtenção de provas para uso em procedimentos legais estrangeiros.

9. Esta via processual do direito norte americano, com raízes históricas e um impacto significativo no direito internacional privado, é um mecanismo que permite a cooperação judicial transnacional, promovendo a justiça e a eficiência nos litígios em âmbito internacional.

10. A Seção 1.782 foi promulgada originalmente em 1855 como parte do ato que organizava os tribunais federais nos Estados Unidos, tendo sido consolidado e alterado pela reforma legislativa de 1948. No entanto, sua aplicação e interpretação foram substancialmente moldadas pela jurisprudência posterior. A disposição tem sido objeto de considerável escrutínio judicial ao longo dos anos, resultando em um corpo substancial de decisões que delineiam os critérios e as condições para sua aplicação.2

11. Em termos gerais, a Seção 1.782 autoriza um tribunal federal dos Estados Unidos a conceder assistência para obter provas a pedido de um litigante estrangeiro que está envolvido em um processo judicial fora dos Estados Unidos. A disposição é amplamente interpretada de forma a abranger uma variedade de procedimentos judiciais estrangeiros, incluindo arbitragens, processos administrativos e litígios civis e criminais. No entanto, o pedido deve satisfazer certos requisitos estabelecidos pela jurisprudência.

12. Um aspecto crucial na aplicação da Seção 1.782 é a determinação da jurisdição e do escopo da assistência solicitada. Os tribunais americanos têm interpretado consistentemente a disposição de forma a conceder assistência apenas quando a evidência está razoavelmente relacionada ao procedimento estrangeiro e quando o tribunal estrangeiro tem jurisdição sobre o litígio subjacente. Além disso, a assistência concedida nos termos da Seção 1.782 está sujeita a limitações, incluindo considerações de privacidade, privilégio e interesse público.

13. Ainda, o envolvimento do Estado é limitado, sendo gerido em maior medida pelas partes e tendo o Tribunal um papel pontual e que se dá em específicos momentos do procedimento.

14. Um tema central na aplicação da Seção 1.782 é o equilíbrio entre a necessidade de cooperação judicial internacional e os interesses soberanos dos Estados envolvidos. Os tribunais americanos têm reconhecido a importância da assistência judiciária mútua na promoção da eficácia do sistema jurídico global, ao mesmo tempo em que exercem cautela para garantir que a cooperação não viole princípios de soberania.

15. Sob a ótica legalista, o Federal Rules of Civil Procedure dos EUA estabelece como requisitos de cabimento, apenas, a comprovação de que o objeto pretendido não se encontra sob sigilo profissional e que a descoberta pretendida é relevante para seus interesses processuais nos autos em que a demanda se desenvolve fora dos Estados Unidos.

16. A finalidade é semelhante a uma ação de produção antecipada de provas prevista no Código de Processo Civil, se prestando o Discovery para obter oitiva de testemunhas e para obter documentos.

17. Em vias práticas, os requisitos para iniciar um pedido de Discovery são a comprovação de que o objeto da pretensão probatória se encontra nos Estados Unidos e na jurisdição em que o pedido foi aforado; comprovando o interesse decorrente de processo que se desenvolve no exterior e sua existência e características que demonstrem a necessidade/conveniência do pedido de Discovery apresentado, demonstrando seu interesse legítimo no pedido.

18. Existe, ainda, um critério subjetivo-discricionário disponível à district court competente pela análise do pedido de Discovery, ou seja, que mesmo diante do atendimento de todos os requisitos processuais típicos, o juízo de primeira instância poderá negar dar prosseguimento no pedido.

19. Citando artigo sobre o tema, traduzido do inglês para o português: “Por exemplo, no caso In re Postalis, uma federal trial court em Nova York exerceu seu poder discricionário para negar o pedido feito por Postalis nos termos da Seção 1.782. A Postalis, explicou a decisão, apresentou pedido de Discovery em face do Bank of New York Mellon para utilização de tais provas contra subsidiárias desse banco em processos no Brasil. À luz do relacionamento entre controladora e subsidiária, o tribunal considerou desnecessário o Discovery sob a seção 1.782, porque o autor da ação poderia obter os documentos por meio de um pedido no processo brasileiro. O tribunal sugeriu, no entanto, que em outras circunstâncias - incluindo, por exemplo, a hipótese em que o tribunal estrangeiro não permitiria a produção de documentos pelas afiliadas da parte contrária -, o requerente poderia obter tais provas por meio de um pedido sob a seção 1.782.” 3 

20. Na prática o Discovery já foi utilizado por jurisdicionados brasileiros em litígios de ordem trabalhista coorporativa, família, sucessões e muitos outros, mostrando-se uma interessante e poderosa alternativa para processos de recuperação de crédito de perfil mais alto diante dos milhões de dólares que devem  ser investidos no pedido de Discovery e em eventuais processos que se desenvolvam nos próprios EUA, como, por exemplo, a homologação de sentença estrangeira.

Homologação de Sentença Estrangeira

21. Além da Seção 1.782, os Estados Unidos também oferecem meios para homologação de sentenças estrangeiras, um procedimento do judiciário norte americano que reconhece e executa decisões judiciais estrangeiras dentro do território americano visando a atingir ativos e pessoas residentes no país.

22. As medidas individualmente, e também somadas, são consideravelmente custosas, devendo ser reservadas a litígios de vultos financeiros relevantes e em que exista uma estratégia muito bem delineada em que se tenha razoável segurança de que o investimento poderá ser resgatado a partir da adoção de referidas e sofisticadas medidas.

23. Embora os requisitos e procedimentos para homologação possam variar de acordo com o estado em que o processo é iniciado, geralmente envolvem uma petição ao tribunal competente, acompanhada de documentação que comprove a existência e a validade da sentença estrangeira.

24. A homologação de sentenças estrangeiras nos Estados Unidos reflete os princípios do comity internacional, reconhecendo a autoridade das jurisdições estrangeiras e facilitando o cumprimento de decisões judiciais em um contexto transnacional. No entanto, os tribunais americanos reservam o direito de recusar a homologação se a sentença estrangeira violar a ordem pública ou se o processo no qual a sentença foi proferida não atende aos padrões mínimos de devido processo legal sob a ótica eminentemente do direito local.

25. Nesse contexto, em tese qualquer sentença de processo judicial brasileiro que esteja em fase de cumprimento no país pode ser transportada para os Estados Unidos da América e, a partir do procedimento de homologação de sentença estrangeira, com ou sem pedido de Discovery relacionado, pode-se executar o patrimônio de um devedor brasileiro que desviou e/ou adquiriu ativos formando patrimônio o país.

26. Conforme já mencionado, entretanto, ainda que “qualquer” sentença, que obedeça aos requisitos legais e discricionários das cortes americanas, possa ser executada em solo americano, os custos envolvidos com taxas judicias e honorários advocatícios são extremamente altos, constituindo uma barreira financeira que na maioria das vezes somente vai ser transposta por grandes conglomerados empresariais e financeiros, capazes de investir em litígios nesse formato.

27. Alternativa que democratiza um pouco mais litígios em solo norte americano e também em outros países proeminentes é o financiamento de disputas que hoje já compõe, ainda timidamente e somente para players bastante especializados, carteiras de fundos de investimento.

28. A operação é sofisticada, mas seus fundamentos são claros: o gestor do fundo, verificando que a tese ou a estratégia tem capacidade de sair vitoriosa, arca com os custos (seja inteiros, seja em parte) e ajusta mecanismos de remuneração tanto do investimento como do proveito (profit share), de modo ao litígio “decolar”, o que não aconteceria sem o capital de risco por ele aportado.

Conclusão

29. Em conclusão, a Seção 1.782 do direito norte-americano e os meios de homologação de sentença estrangeira nos Estados Unidos representam instrumentos jurídicos essenciais para facilitar a cooperação judicial internacional e promover a eficácia do sistema jurídico global, podendo serem utilizados em recuperações de crédito de forma bastante proeminente.

30. O Discovery e a homologação de sentença estrangeira são alternativas que devem cada vez mais serem exploradas em um mundo globalizado em que já não mais raro um devedor brasileiro, de perfil empresarial, ser proprietário de uma casa, de algumas casas, de ações e cotas de sociedades, de automóveis de luxo, embarcações e simplesmente investimentos financeiros em países em que se julga protegido da atuação de seus credores.

31. Não são poucas as demandas de recuperação de créditos de perfil mais alto em que o credor e seus assessores legais se deparam com devedores que possuem ativos além-mar, muitos nos Estados Unidos da América, não sendo esse um obstáculo intransponível para que a execução cruze a américa e passe a se desenvolver onde estão os ativos daquele devedor.

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BORN, Gary. International Litigation in United States Courts.

MONTEIRO, Bruno Vicente Grando, A SEÇÃO 1782 DO TÍTULO 28 DO UNITED STATES CODE O discovery como mecanismo de obtenção de provas nos Estados Unidos para instruir demandas em tramite perante o Judiciário brasileiro. Tese de Mestrado orientada por Professor Titular Flávio Luiz Yarshell São Paulo.

PITTA, Rafael Gomiero. Discovery e outros instrumentos processuais do common law: a eficiência dos meios probatórios na resolução de conflitos nas fases iniciais do procedimento civil (pre-suit e pretrial). Londrina: Toth, 2021.

LOWENFELD, Andreas F. SILBERMAN, Linda J. Silberman. Enforcement of Foreign Judgments.

BEDERMAN, David J. The Expanding Scope of Discovery Under 28 U.S.C. § 1782.

PERRY, Amanda S. Discovery in Aid of Foreign Proceedings: A Critical Analysis of 28 U.S.C. § 1782.

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1 Tradução livre a partir do original.

2 MONTEIRO, Bruno Vicente Grando, A SEÇÃO 1782 DO TÍTULO 28 DO UNITED STATES CODE O discovery como mecanismo de obtenção de provas nos Estados Unidos para instruir demandas em tramite perante o Judiciário brasileiro. Tese de Mestrado orientada por Professor Titular Flávio Luiz Yarshell São Paulo, Universidade de Direito de São Paulo, pág. 34.

3 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/depeso/317199/um-guia-para-advogados-brasileiros--o-pedido-de-discovery-nos-termos-da-secao-1782

Igor Guilhen Cardoso
Sócio responsável pela área empresarial do escritório AGM - Almendro, Guilhen e Madrigano - Advogados; advogado graduado em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie; pós-graduado em Direito Processual Civil pela Escola Paulista de Direito (EPD); pós-graduando em Direito Empresarial e Societário pela Escola Paulista de Direito (EPD); com curso de extensão em Finanças pela University of Michigan (Ross School) EUA; membro colaborador do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados em Processo); coautor de obras e artigos em Direito. Curso de extensão em Negociação pela University of Michigan (Ross School) e Membro Permanente da Comissão Especial de Direito Bancário da OAB/SP.

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