Múltiplos são os fatores que tornam rarefeita a representação política democrática das mulheres, dentre eles, a babá e o salão de beleza.
No Brasil, a lei de cotas foi implementada em 1995 instituindo a obrigação, travestida de incentivo, dos partidos políticos de reservarem percentual de vagas para mulheres, iniciado no patamar de 20% e elevado para 30% em 1997, quando se tornou imperativo o preenchimento das listas com o gênero de menor representatividade.
Os resultados sistematizados das cotas, infelizmente, foram e ainda são desanimadores, exatamente porque foram implantadas para não terem a efetividade almejada.
Apenas para exemplificar, quando, em 1997, o percentual foi majorado para 30% e a obrigação partidária ainda restringia-se à reserva de vagas nas listas partidárias para cada sexo, houve um decréscimo no número de candidatas eleitas, passando de 6,2% de escolhidas para a Câmara em 1994 para 5,7% nas eleições já com cotas, em 1998: a bancada feminina na Câmara dos Deputados foi reduzida em três assentos.
Um dos principais desafios enfrentados pelas cotas de candidatura é, ainda nos dias atuais, a falta de seu cumprimento efetivo pelos partidos. A legislação, até então, exigia apenas a “reserva” de uma porcentagem de candidaturas femininas nas listas proporcionais, que não poderiam ser ocupadas por homens, mas poderiam ser convenientemente deixadas em branco.
Com a lei 12.034/09, as agremiações passaram a ser obrigadas a preencher as vagas nas listas partidárias e não mais a meramente reservá-las, mantendo-se o mesmo índice percentual de 30. O resultado das urnas nas eleições de 2010, todavia, não refletiu a alteração legislativa. O número de candidatas eleitas para a Câmara dos Deputados manteve-se inalterado, 8,8%, exatamente o mesmo percentual das eleições de 2006.
Mesmo com a obrigação legal, as mulheres ainda são minoria entre as candidaturas de cada partido, enfrentam inúmeras dificuldades para se eleger e, ainda que eleitas, bem avaliadas, desistem da política após alguns mandatos eletivos.
Quais gargalos da representatividade feminina na política?
As diferenças de gênero na participação política resultam de uma série de fatores culturais e sociais que facilitam a participação dos homens e dificultam a das mulheres. Tempo livre, número de crianças no casamento, o trabalho doméstico não remunerado e os demais efeitos de uma família tipicamente patriarcal, com suas categorizações e papéis estereotipados e conservadores em relação aos gêneros, são os principais motivos para estabelecer as diferenças na participação política entre eles.
Embora sejam inúmeros os obstáculos e em níveis distintos que tornam rarefeita a representação feminina politica democrática, vou me ater, neste articulado, a dois: a babá e o salão de beleza como simbolismos do financiamento de campanha, um dos principais fatores contributivos para o hiato de gênero quanto à elegibilidade das mulheres.
O financiamento de campanhas está diretamente relacionado ao sucesso eleitoral das candidaturas, já que os recursos financeiros permitem a implementação de estratégias eficazes e estruturas sólidas de campanha e ampliam a visibilidade das candidaturas.
As distorções salariais e patrimoniais são fontes da disparidade de recursos financeiros próprios, tornando mais custosa, tanto simbólica quanto materialmente, a decisão de uma mulher de se candidatar.
No Brasil, a renda é materialmente masculina e a pobreza tem um rosto feminino. Segundo dados do IBGE, as mulheres ganham cerca de 20% menos do que os homens no Brasil ainda quando comparados trabalhadores do mesmo perfil de escolaridade, idade e na mesma categoria de ocupação. É como se a cada ano a mulher trabalhasse 74 dias de graça.
A falta ou a insuficiência no financiamento das campanhas femininas é manifestação das múltiplas camadas de assimetria de gênero, que afeta diretamente a capacidade das candidatas de competirem em igualdade de condições com os homens, que, em razão de fatores históricos e culturais, além de recursos próprios, várias redes de alianças, possuem fontes adicionais de financiamento.
Não sem razão que o STF, em 2018, no julgamento da ADin 5617, garantiu que 30% do fundo partidário fosse destinado às mulheres.
Naquele mesmo ano, o TSE respondeu a consulta 060025218.2018.6000000, formulada por senadoras e deputadas, e afirmou que os partidos políticos deveriam reservar pelo menos 30% dos recursos do Fundo Especial de Financiamento de Campanha para financiar candidaturas femininas, e o mesmo percentual deveria ser considerado em relação ao tempo destinado à propaganda eleitoral gratuita no rádio e na TV.
Em 2020, o TSE positiva três quesitos da consulta formulada pela deputada Benedita da Silva e estende às candidaturas de pessoas pretas o percentual dos recursos financeiros e do tempo de rádio e de TV.
Em 2022, o Congresso Nacional promulgou a EC 117 para promover uma larga anistia aos partidos que tivessem até então descumprido a obrigação de destinar recursos do fundo partidário na promoção e difusão da participação política das mulheres; em contrapartida, inseriram no texto constitucional a destinação obrigatória percentual mínima de 30% dos recursos dos fundos às candidaturas femininas, assim como do tempo de rádio e televisão.
A emenda reproduziu, no ponto, o que o Poder Judiciário já havia assegurado, não deixando de aproveitar a alteração para conferir aos partidos o beneplácito de não serem sancionados quando descumprirem a própria regra elevada à estatura constitucional.
Ou seja, coube primeiramente ao Judiciário assegurar o que a lei deveria fazê-lo e o que a Constituição só o fez em 2022: garantir aos grupos politicamente minoritários elementos essenciais à uma disputa justa e igualitária, dinheiro e visibilidade.
Prova dos efeitos imediatos gerados pelo financiamento obrigatório: o incremento da participação feminina nas eleições de 2018, com aumento das candidatas eleitas na Câmara dos Deputados: 77 parlamentares, um aumento de 51% em relação à 2014, quando foram escolhidas 51 mulheres. Em termos percentuais, um acréscimo de 10% para 15% das cadeiras. Nas eleições de 2022, o Brasil elegeu 91 deputadas federais e 135 parlamentares autodeclarados pretos e pardos, um aumento de 8,94% de eleitos com essas características.
Apesar da pequena melhora em termos percentuais, quando se trata de grupos politicamente minoritários, ainda estamos engatinhando no quadro da sub-representatividade, máxime em se considerando que as mulheres e as pessoas pretas e pardas compõem a maioria da população e do eleitorado.
O processo efetivo de inserção das mulheres e das pessoas pretas no âmbito da representação política ainda demanda muita luta, esforço e energia.
As mulheres brancas e de modo ainda mais sensível as negras têm que vencer os obstáculos dessa baixa representação, enfrentar uma cultura societária adversa e desigualdades materiais absurdas. Enquanto as mulheres não alcançarem padrões materiais condizentes, dificilmente irão desenvolver perspectivas de vida que ultrapassem a materialidade econômica.
O hiato material é o fator ensejador de constrangimento e limitador de um maior protagonismo político das mulheres, sobretudo das mulheres negras, cuja preocupação, em razão da estruturação social racista e de balizas escravocratas, é voltada à própria sobrevivência e de seus filhos.
A lei das eleições, em seu art. 26, assim como a resolução TSE 23.607/19 (art. 35, VII), elenca como gastos eleitorais, sujeitos a registro e a limites, a remuneração ou gratificação de qualquer espécie paga a quem preste serviço a candidatas ou candidatos e a partidos políticos, e a produção de programas de rádio, televisão ou vídeo, inclusive os destinados à propaganda gratuita.
Neste contexto, a utilização do dinheiro dos fundos para que as mulheres possam contratar cuidadora para os filhos enquanto se digladiam entre os jogos pesados da política institucional e da arena pública da política desponta como caminho legítimo para que a disputa entre os gêneros seja mais equânime.
E por que não permitir também sua destinação para custear gastos com salão de beleza para que as mulheres principalmente e os homens, talvez estes não em iguais proporções, possam se preparar esteticamente para a propaganda eleitoral e à produção dos mais artefatos publicitários permitidos pela legislação eleitoral?
Para uma maior Justiça social, a teoria política necessita ser revisitada conferindo maior visibilidade a um projeto democrático que inclua os eixos transversalizadores de gênero e raça.
Precisamos ampliar as fronteiras do que ainda não está conquistado, enfrentar e superar os obstáculos existentes e melhor instrumentalizar as mulheres para a árdua tarefa de reverter sua situação de exclusão e subalternização política.
E, para isso, nem que seja o batom a nossa arma!