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Diálogo entre Dworkin e Hart: O juiz como legislador na questão do porte de drogas para uso pessoal no Brasil

Neste ensaio são analisadas as opiniões dos teóricos do direito Ronald Dworkin e Herbert L. A. Hart sobre o papel de intervenção ou não do Poder Judiciário em questões em que o Poder Legislativo se omitiu ou não apresentou a adequada solução, como ocorre na criminalização do porte de drogas para uso pessoal, no Brasil.

2/7/2024

A decisão do STF a respeito da descriminalização da posse de maconha para uso pessoal no Brasil acendeu o debate sobre até onde pode ir a criação do Direito pelos Tribunais, que devem ou não ficar restritos à mera interpretação das normas criadas pelos parlamentos, sem realizar inovações não previstas nos textos legislativos, como fez a Corte Constitucional brasileira, inclusive definindo a quantidade de maconha para diferenciar o uso pessoal do delito de tráfico de drogas.

O presidente do senado Federal, senador Rodrigo Pacheco (2024), manifestou que se trata de uma “invasão à competência” do legislativo. O ministro Luiz Fux (2024), do STF, também se posicionou e afirmou que: “nós não somos eleitos. O Brasil não tem governo de juízes.”

Sem dúvida, este debate é antigo no campo da Teoria do Direito, inclusive no anos de 1990 elaborei ensaio com o título “O direito como meio de controle social ou instrumento de mudança social”, publicado na Revista de Informação Legislativa do Senado Federal1, em que defendi que os juízes poderiam exercer o poder de jurisdição para transformação social, nos casos necessários para garantir a paz social.

Diante da polêmica apresentada, considero oportuno resgatar as opiniões de dois grandes teóricos do Direito sobre a questão, R. Dworkin e L.A.H. Hart. O primeiro, defensor de que o Poder Judiciário teria delegação para criar o direito em questões consideradas difíceis, sobre as quais o Parlamento se omite por questões patrimonialistas ou morais. O segundo, defensor intransigente do positivismo jurídico, manifesta que o direito nasce da vontade do parlamento: “só os representantes eleitos pelo povo deveriam ter o poder de criar o direito.”

Vamos analisar a seguir as duas opiniões e, ao final, manifestar a nossa a respeito do tema das drogas para uso pessoal.

Com efeito, Dworkin sustenta que o Poder Judiciário deve atuar politicamente como legislador delegado, criando até mesmo, se preciso for, um novo direito: “os juízes devem às vezes criar um novo direito, seja essa criação dissimulada ou explícita. Ao fazê-lo, porém, devem agir como se fossem delegados do Poder Legislativo, promulgando as leis que, em sua opinião, os legisladores promulgariam caso se vissem diante do problema.2

Ademais, Dworkin (2005) ressalta que é importante que os juízes não se submetam ao processo eleitoral e democrático, pois assim podem tomar decisões independentes e até mesmo impopulares, o que não ocorre com os parlamentares, que estão sujeitos a pressões e a lobbys que favorecem as omissões legislativas:

“os juízes não são eleitos nem reeleitos, e isso é sensato porque as decisões que tomam ao aplicar a legislação tal como se encontra devem ser imunes ao controle popular.” (Dworkin, 2005, p. 17)

“... a técnica de examinar uma reinvindicação de direito no que diz respeito à coerência especulativa é muito mais desenvolvida em juízes que em legisladores ou na massa dos cidadãos que elegem os legisladores. (...) não obstante, é verdade que em tais casos os legisladores estão sujeitos a pressões a que não estão sujeitos os juízes, e isso deve contar como razão para chegar a conclusões fundamentadas sobre direitos. Estou afirmando agora apenas que os legisladores não estão, institucionalmente, em melhor posição que os juízes para decidir questões sobre direitos.” (Dworkin, 2005, p. 27)

“... os juízes não têm nenhum temor direto da insatisfação popular com o seu desempenho. Pelo contrário, alguns juízes podem sentir prazer em desconsiderar entendimentos populares. Assim, se os juízes tomarem uma decisão política ultrajante, o público não poderá vingar-se substituindo-os.” (Dworkin, 2005, p. 28)

Assim, Dworkin (2005, 31-32) sustenta que a transferência da tomada de decisão sobre direitos, do Legislativo para o judiciário, por meio da revisão judicial, não é prejudicial à democracia, pois: “como, normalmente, os ricos têm mais poder sobre o legislativo que os pobres, pelo menos a longo prazo, transferir algumas decisões do legislativo pode, por essa razão, ser mais valioso para os pobres. Membros de minorias organizadas teoricamente, têm mais a ganhar com a transferência, pois o viés majoritário do legislativo funciona mais severamente contra eles, e é por isso que há mais probabilidade de que seus direitos sejam ignorados nesse fórum. Se os tribunais tornam a proteção de direitos individuais como sua responsabilidade especial, então as minorias ganharão em poder político, na medida em que as decisões dos tribunais sobre seus direitos são efetivamente fundamentadas. O ganho para as minorias, sob essas condições, seria maior num sistema de revisão judicial de decisões legislativas (...) (portanto) não há nenhuma razão para pensar, abstratamente, que a transferência de decisões sobre direitos, das legislaturas para os tribunais, retardará o ideal democrático da igualdade de poder político. Pode muito bem promover esse ideal.”

Deste modo, Dworkin deixa certo que o Poder Judiciário detém um papel relevante no processo democrático, por meio da revisão judicial dos atos dos demais poderes que estejam em desacordo com a Constituição.

Em contraposição ao pensamento de Dworkin, Hart (2012, p. 175) sustenta que o Poder Judiciário, valendo-se da “textura aberta do direito”, não pode imprimir interpretações livres e de “discricionariedade irrestrita” (Hart, 2012, p. 190), que podem levar ao desequilíbrio das forças sociais e a conflitos entre os poderes constituídos, em consequência do caráter definitivo e infalível que possa se atribuir a uma decisão final de uma Suprema Corte de Justiça.

Em seu pós-escrito, Hart (2012, p. 355-356) salienta que:

“Os juízes geralmente não são eleitos, e se sustenta que, numa democracia, só os representantes eleitos pelo povo deveriam ter o poder de criar o direito. (...). Normalmente, o poder legislativo eleito terá um controle residual sobre ambas as formas de delegação, podendo revogar ou emendar quaisquer leis subsidiariamente que julgar inaceitáveis. É verdade que quando, como ocorre nos Estados Unidos, os poderes legislativos são limitados por uma constituição escrita e os tribunais têm amplo poder de controle de constitucionalidade repressivo, um poder legislativo democraticamente eleito pode descobrir-se incapaz de reverter um caso particular de legislação judicial. O controle democrático definitivo só poderá então ser assegurado pelo pesado mecanismo de emenda constitucional. Esse é o preço a ser pago pela imposição de restrições jurídicas ao governo.”

Este debate doutrinário entre os limites de atuação do Poder Judiciário, em função dele não ser investido da soberania popular, não é, a nosso ver, o mais importante, pois o que está ocorrendo, de fato, é uma omissão legislativa, consequente de uma clara opção do Parlamento de não querer enfrentar as grandes questões que possam expor seus membros junto aos eleitores e aos financiadores de suas campanhas.

Porém, a omissão legislativa conduz à intervenção do Poder Judiciário na política, que leva ao desequilíbrio das forças políticas e sociais e pode ser prejudicial à democracia e à separação de poderes.

Como diz Weber (2014, p, 186), “o nível alto ou baixo de um Parlamento depende não somente do fato de ele falar de grandes problemas, mas também de resolvê-los adequadamente”. Assim sendo, quando o Parlamento deixa de legislar, por decisão de seus membros, faz surgir um impasse político; sendo natural, então, que a sociedade tente encontrar a solução da questão política junto ao Poder Judiciário, por meio da denominada judicialização da política.

No caso em específico, o debate em torno da não criminalização do porte de drogas para uso pessoal deveria se ater à definição da quantidade que caracteriza esse consumo, mas do modo como foi colocado na Corte Constitucional atingirá apenas uma parcela da população (usuária de maconha). É importante esclarecer que a lei de drogas fala em posse para consumo pessoal de droga sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, ou seja, não fala exclusivamente sobre a posse de maconha; porém, do modo como está interpretando, limitando-se à maconha, o Tribunal caminha em sentido contrário ao previsto na lei, que fala expressamente em drogas (sentido amplo).

Independentemente de haver ou não aplicação de sanção administrativa (não criminalização) ou penal, como foi debatido no STF, a lei de drogas em vigor (art. 28, § segundo, da lei 11.343/06) entrega ao poder discricionário do juiz definir se a quantidade encontrada se caracteriza como de uso pessoal ou não, e para isso “atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.”

Neste ponto, como destacou Max Weber (2014, p. 186), o parlamento não resolveu adequadamente a questão sobre o uso pessoal de drogas, e acredito que não se trata de mero equívoco, mas de uma decisão intencional para permitir que uma parcela da população (branca e de classe média e alta) não seja criminalizada, enquanto os pobres ficam entregues à discricionariedade de uma justiça preconceituosa e racista.

Infelizmente, este debate expõe um grave equívoco político da sociedade, pois entregar a solução ao Supremo Tribunal Federal reforça a judicialização da política. Mas entendo que o problema não está no Judiciário, que foi chamado a se posicionar sobre o tema e está apresentando seu entendimento a respeito.

Na realidade, a farsa que se convencionou denominar de “guerra às drogas” consiste em uma disputa pelo controle econômico e financeiro sobre a indústria das drogas, pois cocaína, crack e outras substâncias entorpecentes não são fabricadas nas favelas brasileiras, onde também não se encontram as vastas plantações de maconha que caracterizam a atividade. 

Em decorrência dessa falsa guerra, o crime que mais prisões acarreta por todo o país, sem dúvida, é o tráfico de drogas e, de modo geral, a maioria das pessoas encarceradas por este delito são jovens negros que não completaram o ensino fundamental, e que, a partir do ingresso no sistema prisional, deixam de ter qualquer perspectiva de futuro.

Do mesmo modo, nas incursões repressivas realizadas todos os dias nas periferias, são os filhos de negros e pobres que são mortos, sendo suficiente a colocação do adjetivo “traficante” sobre as vítimas para justificar seu assassinato perante a opinião pública, ainda que se trate de crianças uniformizadas a caminho da escola. 

A propósito, afirma-se que há interesse em reprimir o comércio de drogas, porém não são apresentadas iniciativas para identificar e controlar o imenso giro financeiro em torno deste importante mercado, que não paga tributos nem tem seus trabalhadores (“traficantes”) regulamentados. 

Entendo que a repressão não deveria recair sobre o usuário e nem mesmo sobre vendedores ambulantes, mas sobre a grande movimentação financeira envolvida nesta atividade, cujos reais controladores não são reprimidos nem assassinados diariamente. E qualquer apreciador de programas investigativos sabe que a primeira regra para desvendar esse tipo de delito é: siga o dinheiro (o famoso follow the money).

Na verdade, o erro é do Parlamento, que não tem intenção de resolver adequadamente a questão da criminalização ou não das drogas no país; assim, são os seus integrantes quem de fato devem ser chamados à responsabilidade, diante da grande movimentação financeira e, consequentemente, do não pagamento dos tributos que a sociedade deixa de arrecadar. 

Essa não tributação acarreta sérias consequências, principalmente num país em que se impõe a manutenção de um limite sobre as despesas públicas e que necessita cada vez mais do ingresso de receita orçamentária para encaminhar as políticas públicas que ajudam a materializar os direitos dos mais pobres.

Por fim, acredito que o uso pessoal da maconha com finalidade recreativa ou terapêutica é uma decisão de cada um; até porque existem diversos estudos científicos que demonstram que a substância não causa graves problemas de saúde aos usuários, já estando liberado o seu uso comercial (controlado ou não) em diversos países. 

Portanto, este é apenas mais um daqueles debates que expõe de forma clara a persistência do colonialismo e o posicionamento da classe dominante em um país que optou por declarar uma “guerra” de extermínio à sua juventude pobre, negra e periférica, ao invés de dar o adequado tratamento legislativo para o tema.

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1 Folena de Oliveira, 1997.

2 Vianna et. al (1999, p. 21) dizem que “a indeterminação do direito, por sua vez, repercutiria sobre as relações entre os Poderes, dado que a lei, por natureza originária do Poder Legislativo, exigiria o acabamento do Poder Judiciário, quando provocado pelas instituições e pela sociedade civil,  a estabelecer o sentido ou a completar o significado de uma legislação que nasceu com motivações distintas da ‘certeza jurídica’. Assim, o Poder Judiciário seria investido (...) do papel de legislador implícito”.

 

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DWORKIN, R. Uma questão de princípio. São Paulo: Martins Fontes, 2005.

FOLENA DE OLIVEIRA, J. R. O direito como meio de controle social ou instrumento de mudança social?,  Revista de Informação Legislativa do Senado Federal, v. 34, n. 136, p. 377-381, Brasília, 1997.

FUX. L. Metrópoles, em 25 de jun. 2025. Disponível em https://x.com/metropoles/status/1805685107442991381?s=48

HART, H.L.A. O conceito de direito. São Paulo: Martins Fontes, 2012.

PACHECO. R. Rodrigo Pacheco discorda de STF sobre porte de maconha, GloboNews, 25 jun. 2024. Disponível em https://x.com/globonews/status/1805695741782016475?s=48 Acesso em 28 jun. 2024.

VIANNA, L.W. et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999.

WEBER, M. Escritos políticos, parlamento e governo na Alemanha reorganizada. São Paulo: Editora WMP Martins Fontes, 2014.

Jorge Rubem Folena de Oliveira
Advogado, graduado pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Mestre em direito pela UFRJ. Doutor em ciência política pelo IUPERJ, com Pós-doutorado pelo CPDA/UFRRJ. Diretor do IAB Nacional.

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