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Legitimação de decisão judicial do STF pelo Congresso Nacional

Essa breve análise sugere que a harmonia entre os poderes e o respeito às respectivas autonomias, previstas na Constituição (CF, artigo 2º), não possuem significado estático no texto constitucional. Exigem aprimoramento a partir da experiência histórica e institucional.

2/7/2024

OSTF extrapolou ou não os limites da sua competência de julgar e interpretar a Constituição Federal avançando sobre as atribuições legislativas do Congresso Nacional? Essa pergunta está na pauta diária das conversas, dos grupos sociais e dos meios de comunicação. Existe muita queixa e desconfiança dirigida contra o STF. Esse fenômeno é conflito interno na República e pode ser analisado como efeito de disfunção sistêmica na harmonia da separação entre os três poderes.

 O regime constitucional de separação de poderes manifesta-se atualmente disfuncional no ponto específico do controle da criação, modificação ou extinção de normas gerais e abstratas. Essa afirmação tem por base os conflitos que emergem cotidianamente na pauta nacional. A Figura 1 representa a estrutura dos três poderes e as relações de controle mútuo. O que é possível observar? 

(Imagem: Divulgação)

O Presidente da República pode vetar1 projetos de lei por inconstitucionalidade ou quando contrários ao interesse público (CF, Artigo 66, §1º). O Congresso Nacional pode sustar2 atos normativos do Poder Executivo quando exorbitem os limites do poder regulamentar (decreto) ou limites de delegação legislativa (CF, Artigo 49, V). Nesses dois pontos, a harmonia entre os poderes Legislativo e Executivo consiste na outorga mútua de poder (direito) para a finalidade de suspender ou impedir a eficácia de ato normativo em razão de vícios apontados nas respectivas normas.

A situação do Judiciário é diferente. O Supremo Tribunal Federal tem o monopólio da interpretação da norma. Por meio das ações judiciais próprias detém o poder de definir a amplitude da eficácia ou ineficácia de determinado dispositivo normativo. Nesse ponto específico, o sistema hoje seria mais hierárquico do que propriamente equilibrado.

Esse poder de interpretar a norma em si, parte integrante da competência para julgar, associado à competência constitucional para interpretar a conformidade entre normas superior e inferior, tem por efeito real integrar, alterar ou limitar os atos normativos do Congresso Nacional e do Presidente da República.

Em primeiro momento, o raciocínio usual é: interpretar norma é parte da atividade de julgar. Se não houver interpretação, não haverá possibilidade de: a) enquadrar o fato certo e provado à norma incidente concreta ou abstrata; b) decidir sobre a inconstitucionalidade ou legalidade de ato normativo abstrato; c) decidir sobre a validade de ato jurídico concreto. Sim. Esse raciocínio jurídico é perfeito!

Efeito importante pode decorrer dessa interpretação constitucional e que pode ser definido como causa do conflito institucional. Esse efeito pode ser apresentado como questão lógica regida pela não contradição: decisão judicial constitucional específica decorre de interpretação criativa em torno de aparente conflito entre normas?

A resposta é sim ou não. Essa resposta é simples para os mortais e dificílima para o consenso dos advogados e juízes. Fato é que “sim” é uma resposta possível, ainda que acórdão não possa acolher essa declaração de reconhecimento.

O noticiário em torno da “invasão da competência” ilustra esse fato e a difícil relação entre os poderes Legislativo e Judiciário. A manchete do momento é a descriminalização do uso pessoal de drogas. A Figura 2 organiza as informações sobre essa decisão judicial.

O destaque do G1, edição de 25/6/24, foi o seguinte: Pacheco diz discordar de posição do STF sobre porte de maconha para uso pessoal e fala em invasão à competência do Congresso. Essa matéria reflete a posição de um dos Ministro dos STF: “A fala de Pacheco vai ao encontro da posição do ministro André Mendonça, do STF, que é contrário à descriminalização. Para o magistrado, o Supremo está "passando por cima do legislador" no julgamento sobre o porte de maconha para uso pessoa”. No dia seguinte, o G1 publicou em manchete a opinião de outro Ministro: “Gilmar rebate Pacheco e nega que STF tenha invadido competência do Congresso ao decidir sobre maconha”.

(Imagem: Divulgação)

Em torno do tema, o Ministro Luiz Fux, integrante do STF, chamou a atenção pela lucidez e coerência em manifestação sobre o tema. Reconheceu a tensão interna do Órgão em responder às pautas relevantes que chegam através dos processos, e, de outro lado, a dificuldade de calibrar o limite da interpretação normativa. Em resumo, disse: “Brasil não tem governo de juízes”. Fez questão de relembrar discurso de posse, quando assumiu a Presidência do STF: “em um Estado democrático a instância maior é o parlamento”3.

A decisão do STF sobre a descriminalização do uso pessoal de drogas é típico exemplo de interpretação criativa. O esforço para criar regulamentação metódica sobre o tema é notório e pode ser demonstrado.

A interpretação do STF pode ser compreendida facilmente a partir da comparação entre três relações jurídicas: a) a constitucional (CF, Art. 5º, X); b) a legal (Lei 11.343, Artigo 28); c) a nova relação jurídica criada a partir da interpretação do STF. A Figura 3 indica o texto das três referidas relações jurídicas referidas.

(Imagem: Divulgação)
 

A leitura comparativa indica certa contradição lógica: como é possível o direito à vida privada e à intimidade, sendo direito material, desdobrar no plano infraconstitucional dever material atenuado ou não de não consumir drogas? Consumir drogas para uso pessoal, se integra o campo do direito pertinente à vida privada ou intimidade, tem que ser direito. Não pode ser dever de não fazê-lo (conduta omissa obrigatória)!

O STF criou pela via da interpretação constitucional nova relação jurídica de dever, substituta daquela prevista na lei, tomando como justificativa o direito constitucional à vida privada e intimidade.

Aparentemente, o direito à vida privada e à intimidade não é compatível no plano lógico com o dever de não fazer. Ninguém pode ter direito maior que se manifesta na norma inferior como dever menor.

O direito à vida privada e intimidade só é compatível no plano lógico com o direito de usar drogas para consumo pessoal. Se a interpretação fosse essa, haveria simetria entre direito constitucional e direito derivado na norma infraconstitucional.

Essa situação contraditória sugere que a finalidade real da interpretação não foi a solução da inconstitucionalidade da norma legal, mas arranjo normativo que acomode o impacto dessa matéria nas instâncias judiciárias com tese aceitável publicamente.

A descriminalização da conduta de uso pessoal de drogas altera o dever do Estado de sancionar (em grau mais atenuado). Não é direito material do usuário. Aparentemente, trata-se de eventual direito instrumental caso o agente público erre ou cometa ilícito no enquadramento do fato. Quem tipifica e enquadra é a polícia e o Ministério Público, se houver erro, existe direito de defesa para invocar o vício do enquadramento errado da sanção.

Fato relevante que decorre dessa inovação normativa jurisprudencial é a limitação da autonomia do Congresso Nacional para definir se o consumo de drogas é ou não crime. O Congresso Nacional não tem mais autonomia para dispor sobre a relação entre consumo de drogas e crime. Pode-se interpretar, inclusive, que a liberdade de consumo de maconha, por exemplo, estaria restrita, face à interpretação da compatibilidade entre a norma constitucional e a infraconstitucional como ilícito extrapenal.

Esse tipo de rigidez típica da interpretação constitucional impõe limites à autonomia legislativa, o que termina por restringir a régua da normatização. O poder do STF se projeta sobre o Congresso Nacional limitando o exercício da atividade de legislar. Esse fenômeno em certa medida caracteriza a atual fase da história da soberania no Brasil.

Em contextos desse tipo, com múltiplas complexidades e dependências mútuas entre poderes, parece recomendável a criação de mecanismos institucionais de cooperação e harmonização dos poderes.

Solução possível para o conflito seria assegurar ao Congresso Nacional em contrapeso e a título de harmonia e respeito à autonomia entre os poderes, o direito (poder) para legitimar ou não a interpretação normativa judicial, quando presente a juízo de um dos poderes ou de ambos dúvida fundada sobre o potencial efeito jurídico de decisão que cria normatização e regulamentação que afete a autonomia do Congresso Nacional.

Algumas ponderações são necessárias.

A palavra legitimação parece apropriada. O significado é acolher a interpretação judicial, o que é compatível com a harmonia e integração necessária entre os poderes da República.

A interpretação da norma pode ser compreendida como processo integrado entre poderes visando a sua eficácia plena, segura e amadurecida. A experiência do Supremo Tribunal Federal é significativa enquanto Órgão no qual desaguam os conflitos jurídicos mais relevantes do País. Essa ordenação e diálogo entre pautas pode ser muito positiva.

O Congresso Nacional detém a mais relevante parcela da soberania e representação popular. O respeito e certa reverência à essa legitimidade alinha a atividade de julgar e interpretar a norma com a função do legislar, eliminando, no plano institucional, o conflito existente.

O procedimento de legitimação poderia alcançar os atos regulamentares do Presidente da República. O Congresso Nacional estaria assim reunindo e integrando a tutela da criação e modificação de atos normativos.

Parece lógico reconhecer que se, por um lado, compete ao Supremo Tribunal Federal uniformizar a interpretação das normas constitucionais, por outro lado, caberia ao Congresso Nacional unificar a tutela em situações que possam ensejar a criação de normas por interpretação, inclusive, no que toca ao poder regulamentador do Presidente da República e sua interface com a competência legislativa.

Essa breve análise sugere que a harmonia entre os poderes e o respeito às respectivas autonomias, previstas na Constituição (CF, artigo 2º), não possuem significado estático no texto constitucional. Exigem aprimoramento a partir da experiência histórica e institucional.

Outros pontos poderiam ser escritos sobre esse tema, mas preferível adotar a opinião de Montesquieu, quando tratou da divisão dos poderes, no Espírito das Leis: “Gostaria de pesquisar, em todos os governos moderados que conhecemos, qual é a distribuição dos três poderes e através disso calcular os graus de liberdade de que cada um pode gozar. Mas nem sempre se deve esgotar tanto um assunto, que nada se deixe para o leitor fazer. Não se trata de fazer ler, e sim de fazer pensar.”

________________

1 CF, Art. 66. A Casa na qual tenha sido concluída a votação enviará o projeto de lei ao Presidente da República, que, aquiescendo, o sancionará.

 § 1º Se o Presidente da República considerar o projeto, no todo ou em parte, inconstitucional ou contrário ao interesse público, vetá-lo-á total ou parcialmente, no prazo de quinze dias úteis, contados da data do recebimento, e comunicará, dentro de quarenta e oito horas, ao Presidente do Senado Federal os motivos do veto.

2 Art. 49. É da competência exclusiva do Congresso Nacional:

....

V - sustar os atos normativos do Poder Executivo que exorbitem do poder regulamentar ou dos limites de delegação legislativa;

3 https://www.terra.com.br/noticias/justica/videos/brasil-nao-tem-governo-de-juizes-diz-fux-em-voto-sobre-descriminalizacao-do-porte-de-maconha,8b7569c85d4a017c84fc2d21207aaac303n6buzo.html

Luiz Walter Coelho Filho
Sócio-fundador do escritório Menezes, Magalhães, Coelho e Zarif Sociedade de Advogados. Graduado em Direito pela UFBA, ano de 1985. Exerce a advocacia nas áreas de Direito Administrativo e Imobiliário

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