O PL 1.904/24, que visa equiparar o aborto de gestação acima de 22 semanas ao homicídio, com a consequente elevação da pena máxima para 20 anos, acumula violações à Constituição Federal e aos tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo Brasil.
Ao equiparar o aborto após 22 semanas ao homicídio sem considerar as circunstâncias particulares de cada caso, o projeto ignora a complexidade das questões de saúde reprodutiva e impõe um fardo desproporcional às mulheres, violando, assim, o princípio da igualdade constitucionalmente consagrado. O constitucionalismo feminista enfatiza a importância de incorporar uma perspectiva de gênero na interpretação e aplicação das normas constitucionais, visando garantir a igualdade substancial entre homens e mulheres. Esse enfoque reconhece as diferenças contextuais e históricas que afetam as mulheres, buscando promover a justiça social e eliminar discriminações estruturais. O direito à igualdade, garantido pela CF/88, requer que as leis sejam formuladas e aplicadas de modo a respeitar as necessidades e direitos específicos das mulheres. A abordagem punitiva e insensível do projeto às realidades das mulheres é, portanto, inconstitucional, uma vez que não respeita os princípios de justiça e igualdade que devem orientar a legislação.
Ao equiparar o aborto praticado após 22 semanas de gestação ao crime de homicídio, o projeto de lei ignora as especificidades e complexidades que envolvem a decisão de interromper uma gravidez em um estágio avançado. Tal equiparação desconsidera, por exemplo, os casos em que o feto apresenta condições incompatíveis com a vida extrauterina, como a anencefalia, ou situações em que a continuidade da gravidez representa um risco significativo para a saúde física e mental da gestante. Ignorar essas nuances viola o princípio da proporcionalidade, uma derivação do princípio da igualdade, que exige que as medidas legislativas sejam adequadas, necessárias e proporcionais em sentido estrito.
O Brasil é signatário de diversos tratados internacionais de direitos humanos que garantem o direito à saúde, à vida privada e à autodeterminação das mulheres. A CEDAW - Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, por exemplo, estabelece a obrigação dos Estados Parte de eliminar a discriminação contra a mulher em todas as suas formas, garantindo-lhe igualdade de acesso aos serviços de saúde, incluindo aqueles relacionados à saúde reprodutiva (art. 12).
A criminalização severa do aborto, especialmente em estágios avançados de gestação, pode ser interpretada como uma forma de discriminação contra as mulheres, uma vez que restringe desproporcionalmente o seu direito à saúde e à autonomia reprodutiva. Além disso, a OMS - Organização Mundial da Saúde reconhece que a imposição de restrições legais ao aborto não diminui a sua incidência, mas aumenta os riscos associados aos procedimentos clandestinos e inseguros, colocando em perigo a vida e a saúde das mulheres.
Ao impor penas severas e desproporcionais para o aborto praticado após 22 semanas, o PL 1.904/24 contraria os princípios e diretrizes estabelecidos pelos tratados internacionais de direitos humanos, dos quais o Brasil é parte. A Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) tem reiterado que as restrições aos direitos reprodutivos das mulheres devem ser interpretadas de maneira a respeitar sua dignidade, autonomia e saúde, conforme previsto na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica).
A aprovação de um projeto que iguala o aborto ao homicídio, sem considerar as circunstâncias específicas e a proteção dos direitos fundamentais das mulheres, pode resultar em uma violação sistemática dos direitos humanos e das garantias constitucionais de igualdade e não discriminação.
A adoção de medidas punitivas desproporcionais não só contraria os princípios constitucionais e internacionais, como também agrava a situação de vulnerabilidade das mulheres, perpetuando a desigualdade e a injustiça social.