Há quase 15 anos, no distante ano de 2010, apresentei Trabalho de Graduação Interdisciplinar como parte das atividades para obtenção do diploma de Bacharel em Direito da Faculdade de Direito da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob o título “Usuários e traficantes à luz da Nova Lei de Drogas”.
Na monografia analisei as mudanças trazidas pela lei 11.343/06, ainda considerada nova na época, em especial com relação às figuras dos usuários e traficantes de drogas, traçando um paralelo com a lei 6.368/76.
Um dos pontos centrais do estudo envolvia a eventual ocorrência de descriminalização do porte de drogas para consumo pessoal pela lei 11.343/06.
Naquele momento havia quatro posições doutrinárias sobre o tema.
A dra. Alice Bianchini, de forma quase isolada, defendia a ocorrência da abolitio criminis do porte de drogas para consumo pessoal, destacando que o art. 28 da lei 11.343/06 não pertence ao direito penal, sendo uma infração do direito sancionador, tendo ocorrido descriminalização substancial1. Em artigo recente ela retomou seus argumentos sobre o tema2.
Outra posição singular era do saudoso doutrinador Luiz Flávio Gomes, que defendia ter referido dispositivo legal criado uma infração penal sui generis, ocorrendo simultaneamente uma descriminalização formal (o fato deixou de ser crime, mas continua dentro do direito penal) e uma despenalização (aplicação de sanções não restritivas de liberdade), não podendo se falar em abolitio criminis3.
A posição então adotada pelo STF, rechaçando as duas anteriores, era da ocorrência da despenalização do porte de drogas para consumo pessoal: “Considerou-se que a conduta antes descrita neste artigo continua sendo crime sob a égide da lei nova, tendo ocorrido, isto sim, uma despenalização, cuja característica marcante seria a exclusão de penas privativas de liberdade como sanção principal ou substitutiva da infração penal.” (Informativo 456 - RE 430105 QO/RJ, relator min. Sepúlveda Pertence, Julgamento: 13/2/074).
Por fim, havia quem defendesse ter ocorrido um mero abrandamento jurídico-penal. Essa era a posição de Vicente Greco Filho5, Ricardo Antonio Andreucci6 e Guilherme de Souza Nucci7.
Na ocasião, em que pese meu posicionamento contrário à criminalização do porte de drogas para consumo pessoal, entendia que o Congresso Nacional não havia avançado para a descriminalização. A lei 11.343/06 apenas reduziu as sanções previstas, mas ainda são sanções de natureza criminal. Essa foi, no meu entender, a intenção do legislador, quer gostemos dela ou não.
Agora, depois de décadas de uma fracassada política de guerra às drogas, o STF alcançou maioria pela descriminalização do porte de maconha para uso pessoal, no julgamento do RE 635.659, com repercussão geral (Tema 506), no qual foram fixadas as seguintes teses8:
- Não comete infração penal quem adquirir, guardar, transportar ou trouxer consigo para consumo pessoal a substância cannabis sativa, sem prejuízo do reconhecimento da ilicitude extrapenal da conduta, com apreensão da droga e aplicação das sanções de advertência sobre os efeitos dela (art. 28, I do CP) e medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, III, do CP).
- As sanções estabelecidas nos incisos I e III do art. 28 da lei 11.343/06 serão aplicadas pelo juiz em procedimento de natureza não penal, sem nenhuma repercussão criminal para a conduta.
- Em se tratando de posse de cannabis para consumo pessoal, a autoridade policial apreenderá a substância e notificará o autor do fato para comparecer em juízo, sendo vedada a lavratura de auto de prisão em flagrante ou de termo circunstanciado.
- Nos termos do §2º do art. 28 da lei 11.343/06 será presumido usuário quem, para uso próprio, adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo até 40g de cannabis sativa, ou 6 plantas fêmeas, até que o Congresso legisle a respeito.
- A presunção do item anterior é relativa, não estando a autoridade policial e seus agentes impedidos de realizar a autuação em flagrante por tráfico de drogas mesmo para quantidades inferiores ao limite acima estabelecido quando presentes elementos indicativos do intuito de mercancia, como a forma de acondicionamento da droga, as circunstâncias da apreensão, a variedade de substâncias apreendidas, a apreensão simultânea de instrumentos como balança, registros de operações comerciais e aparelho celular contendo contatos de usuários e/ou traficantes.
- Nestes casos, caberá ao delegado de polícia, consignar no auto de prisão em flagrante, justificativas minudentes para o afastamento da presunção do porte para uso pessoal, sendo vedada a alusão a critérios subjetivos e arbitrários.
- Na hipótese de prisão por critérios superiores ao item 4, deverá o juiz na audiência de custódia avaliar as razões invocadas para o afastamento da presunção de porte para uso próprio.
- A apreensão de quantidade superiores aos limites ora fixados não impede o juiz de concluir pela atipicidade da conduta, apontando nos autos prova suficiente da condição de usuário.
Trata-se de importante avanço na discussão do tema, em que pese as justificadas críticas ao fato de que o STF avançou numa discussão que melhor caberia ao Congresso Nacional, especialmente ao ingressar no critério da quantidade de drogas que diferenciaria um usuário de um traficante. Outra crítica pertinente se deve à limitação da discussão para a maconha, quando a inconstitucionalidade deveria ter sido reconhecida para o porte para uso das drogas em geral. Mas alguém precisava dar um primeiro passo.
Quem sabe essa decisão permitirá no futuro um alinhamento do Brasil às legislações internacionais mais modernas sobre o tema, descriminalizando o porte para consumo pessoal de todas as drogas.
1 GOMES, Luiz Flávio (Coord.). Lei de Drogas Comentada artigo por artigo: Lei 11.343, de 23.08.2006. 3. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008. p. 136
2 Disponível em: https://www.conjur.com.br/2024-jun-24/lei-de-drogas-descriminalizou-porte-para-uso-proprio/
3 Op. Cit., p. 119.
4 Disponível em: https://www.stf.jus.br//arquivo/informativo/documento/informativo456.htm#Art.%2028%20da%20Lei%2011.343/2006%20e%20Despenaliza%C3%A7%C3%A3o
5 GRECO FILHO, Vicente. Tóxicos: prevenção – repressão. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 127-128.
6 ANDREUCCI, Ricardo Antonio. Legislação Penal Especial. São Paulo: Saraiva, 2007. p. 29
7 NUCCI, Guilherme de Souza. Leis Penais e Processuais Penais Comentadas. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2008. p. 299-303
8 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/410110/stf-define-40g-de-maconha-como-limite-que-separa-uso-de-trafico