Migalhas de Peso

Análise da proibição do registro da marca 'Pablo Escobar' pela percepção pública na UE: Um estudo de caso

Uniões europeias rejeitam o registo da marca "Pablo Escobar" por violação da ordem pública e bons costumes, impactando critérios de avaliação uniformes.

1/7/2024

Introdução

Sinais contrários à moral e aos bons costumes não são registráveis como marca. Esta proibição visa a preservação de valores éticos aceitos pelas sociedades. No entanto, esses valores são variáveis, conforme os contextos sociais e culturais, tornando a decisão sobre a registrabilidade dos sinais subjetiva.

Em 17 de abril de 2024 o Tribunal Geral da União Europeia rejeitou o pedido de registro de marca “Pablo Escobar”, confirmando a decisão do Instituto da Propriedade Intelectual da União Europeia (EUIPO), que considerou o sinal contrário à ordem pública e aos bons costumes. 

A disputa ganha especial relevância ao considerar a recente publicação pelo EUIPO do documento “Prática Comum PC14”. Com o objetivo de garantir uma interpretação uniforme na União Europeia, a PC14 oferece regras gerais para a avaliação de sinais que possam contrariar a ordem pública ou os bons costumes.

No Brasil, assim como na União Europeia, o registro de marcas que possam ser consideradas contrárias à moral e aos bons costumes não é permitido, conforme estipulado pelo art. 124, inciso VI, da lei de propriedade industrial (lei 9.279/96). Da mesma forma, também no Brasil há críticas em relação à subjetividade do exame dessas marcas, levantando questões sobre a consistência e imparcialidade das decisões. A análise do caso "Pablo Escobar" e sua integração com a "Prática Comum PC14" oferecem insights valiosos para promover uma abordagem mais objetiva na aplicação dessa proibição, incentivando a definição de critérios mais claros e consistentes para orientar os examinadores de marcas no Brasil.

O caso

Em 30 de setembro de 2021, a empresa Escobar Inc. apresentou um pedido de registro de marca da UE junto ao EUIPO, para uma ampla gama de produtos e serviços em diferentes classes, para o sinal nominativo “Pablo Escobar”. Em 1 de junho de 2022, o examinador rejeitou o pedido com base no art. 7(1)(f) do Regulamento (UE) 2017/1001 do Parlamento Europeu e do Conselho, que proíbe o registro de sinais contrários à ordem pública e aos bons costumes.

A Requerente recorreu da decisão em 26 de julho de 2022. A Quinta Câmara de Recurso do EUIPO acompanhou o entendimento do examinador, argumentando que o sinal estaria associado à pessoa de Pablo Escobar e ao tráfico ilícito de drogas por uma parte significativa do público relevante espanhol.

Inconformada, a Requerente apelou ao Tribunal Geral da União Europeia, buscando anular a decisão. Alegou que a Câmara de Recurso interpretou erroneamente o público relevante e que Pablo Escobar, não tendo sido condenado, deveria beneficiar-se da presunção de inocência. Além disso, argumentou que outras figuras históricas associadas ao crime, como Bonnie e Clyde, Al Capone e Che Guevara, foram registradas como marcas, e destacou a reputação de Escobar como "Robin Hood da Colômbia" devido a projetos comunitários por ele financiados.

O acórdão do Tribunal Geral

O Tribunal Geral da União Europeia confirmou a decisão da Câmara de Recursos, entendendo como acertado o entendimento proferido por esta de ter se baseado na percepção do público relevante espanhol. Argumentou que o sinal "Pablo Escobar" se refere a um homem de origem hispânica, e que o público espanhol, devido a laços históricos, teria um conhecimento mais profundo sobre Pablo Escobar.  

Com relação ao argumento de que Pablo Escobar nunca teria sido condenado por nenhum dos crimes alegados, de forma que deveria prevalecer o princípio da presunção de inocência, reiterou o entendimento da Câmara de Recurso, no sentido de que, embora nunca tenha sido condenado por um tribunal colombiano, americano ou europeu, acordou voluntariamente em se entregar à justiça em troca de não ser extraditado os Estados Unidos. Tal fato reiteraria o entendimento de que seu nome poderia ser percebido pelo público relevante, formado pelo consumidor espanhol razoável, com sensibilidade e tolerância médias, como um sinal

“(…) altamente ofensiva[o] ou chocante, como uma apologia ao crime e uma banalização do sofrimento causado a milhares de pessoas mortas ou feridas pelo cartel de Medellín, do qual Pablo Escobar era o suposto líder. Esse sofrimento não é apagado pelas ações a favor dos pobres ou pelo papel de “Robin Hood” que a requerente ou muitos colombianos atribuem a Pablo Escobar na Colômbia, ou pelo fato de este se ter tornado um ícone da cultura popular em Espanha.”

O Tribunal destacou que o crime organizado é uma grave ameaça à segurança na UE, e associar o nome de Escobar a uma marca comercial afrontaria os padrões morais da sociedade espanhola. Também refutou a comparação com figuras como Bonnie e Clyde, Al Capone ou Che Guevara, argumentando que Pablo Escobar não passou por um processo de distanciamento histórico que pudesse suavizar a percepção negativa.

Prática comum PC14

Devido à falta de clareza na definição dos termos "ordem pública" e "bons costumes" no art. 7(1)(f) do Regulamento, surgiram incertezas na aplicação dessa proibição, resultando em interpretações subjetivas pelos Estados-Membros da UE. Em resposta, o EUIPO, em colaboração com diversos setores, desenvolveu a "Prática Comum PC14", aprovada em novembro de 2023, com o objetivo de garantir uma interpretação uniforme e previsível a nível da União Europeia.

Interessa destacar alguns aspectos do documento.

Ordem pública

A "Prática Comum PC14" define ordem pública como um conjunto de normas, princípios e valores fundamentais comuns às sociedades da União Europeia em um determinado momento. Esses valores incluem dignidade humana, liberdade, igualdade e solidariedade, e estão alinhados aos princípios de democracia e estado de direito. O teor desses valores deve ser determinado a partir de fontes fiáveis e objetivas, como princípios gerais do direito, tratados, convenções e jurisprudência.

Um sinal é considerado contrário à ordem pública se infringir, incitar, glorificar, banalizar ou justificar a violação de uma norma, princípio ou valor fundamental, conforme determinado por essas fontes fiáveis e objetivas. Determinante é a percepção do significado do sinal pelo público relevante, e não a percepção sobre se o sinal é ou não contrário à ordem pública.

Bons costumes

A expressão "bons costumes" refere-se aos valores e normas de natureza moral de uma sociedade da União Europeia em um determinado momento. Enquanto a determinação do que é contrário à ordem pública pode ser baseada em critérios objetivos, a avaliação de um sinal contrário aos bons costumes está vinculada a valores subjetivos, que podem mudar ao longo do tempo e variar dentro do território da União, devido à sua diversidade cultural. Isso, porém, não exime o julgador de aplicar critérios o mais objetivamente possível, baseando-se em informações verificáveis e não apenas em teorias.

Distinção entre sinais

Há uma distinção clara entre um sinal contrário aos bons costumes e um sinal de mau gosto, que pode ser grosseiro ou indelicado, mas não ofensivo para uma pessoa de sensibilidade e tolerância normais. Sinais de mau gosto não são abrangidos pela proibição de registro como marca.

Avaliação empírica

Para determinar se um sinal é contrário aos bons costumes, deve-se proceder a uma avaliação empírica daquilo que a sociedade considera como condutas socialmente aceitáveis em determinado momento. Devem ser apurados os possíveis significados vinculados ao sinal, considerando i) a legislação vigente como mero indicador de padrões morais, e ii) a opinião pública, levando em conta como o público relevante, ou seja, o consumidor razoável, medianamente sensível e tolerante, reagiu no passado e reage no presente ao sinal ou a sinais semelhantes, bem como o contexto sociocultural, sempre em relação aos produtos e serviços assinalados.

O fato de muitas pessoas não considerarem certos sinais como ofensivos ou os terem incorporado ao vocabulário cotidiano não implica necessariamente que não sejam ofensivos e, consequentemente, não registráveis como marca. Palavras ou frases blasfemas, racistas, discriminatórias ou insultuosas não são registráveis se seu significado for transmitido de forma inequívoca pelo sinal.

Público relevante

A noção de público relevante não se restringe apenas ao público-alvo dos produtos e/ou serviços para os quais se solicita o registro. Inclui também outras pessoas que, embora não diretamente afetadas por esses produtos e/ou serviços, podem ter contato incidental com o sinal em seu cotidiano. Portanto, sua avaliação deve ser baseada na percepção dos membros do público que possam vir a se deparar com a marca, independentemente de onde os produtos e/ou serviços estejam disponíveis.

Comentário

O Tribunal Geral da União Europeia e a Câmara de Recursos do EUIPO decidiram o caso em análise com base no entendimento de que, apesar de nunca ter sido condenado, a reputação criminosa do cidadão Pablo Escobar seria incontestável. Partindo deste pressuposto, concluíram que o público relevante vincularia o sinal a um conteúdo criminoso, configurando afronta à ordem pública e aos bons costumes, o que justificaria a proibição de seu registro como marca. Esta linha de raciocínio sugere que sinais capazes de serem associados à reputação criminosa de qualquer indivíduo ou personagem deveriam ser tratados da mesma forma.

Para ilustrar, compare-se com o personagem Robin Hood, notório por roubar dos ricos para dar aos pobres. Apesar de suas ações criminosas, o sinal "Robin Hood" também evoca um sentido heroico, o que mitigaria qualquer impedimento ao registro de marca com base na violação da ordem pública ou dos bons costumes.

Importa destacar que um sinal pode evocar interpretações diversas ou até contraditórias, a depender da perspectiva. Assim, a análise de uma possível violação dos padrões morais considera essencialmente a percepção do público relevante, que depende de uma avaliação empírica sobre o que é socialmente aceitável em um momento determinado.

No caso em questão, o Tribunal Geral, apoiado no acórdão proferido pela Câmara de Recursos do EUIPO, fundamentou sua decisão em informações biográficas sobre Pablo Escobar e em referências a obras sobre sua vida. Se por um lado os dados bibliográficos apresentados não indicam como o público relevante percebe o sinal em questão, por outro não se deve perder de vista que, sob uma perspectiva jurídico-formal, as obras mencionadas, em parte dramatizadas e ficcionais, não são adequadas como fonte de formação de juízo.  

Adjacentemente, a Câmara de Recurso destacou que, dentro do contexto espanhol, o termo "Pablo Escobar" está diretamente ligado ao tráfico de drogas, conforme demonstrado por manchetes que mencionam criminosos como "o Pablo Escobar de..." (Espanha, Suécia, etc.). Neste passo a informação decisiva para fundamentar a proibição do registro da marca, já que confirma a percepção do público espanhol de que o termo "Pablo Escobar" está associado a atividades criminosas. Efetivamente, o fator crucial para negar o registro do termo "Pablo Escobar" como marca não reside na reputação pessoal do cidadão colombiano, mas sim na maneira como o público relevante interpreta o sinal, ou seja, se o associa (ou não) a atividades criminosas.

Finalmente, a variação cultural quanto à percepção de sinais ofensivos é exemplificada pelo fato de "Pablo Escobar" ter sido registrado como marca no Brasil, destacando diferenças na interpretação de sinais e na aplicação de normas relacionadas à ordem pública e aos bons costumes entre diferentes culturas.

Karin Grau Kuntz
Doutora e Mestre (LL.M) em Direito pela LMU - Munique,/Alemanha. Incorpora na Alemanha o time do escritório Meissner Bolte e atua como jurista no escritório Grau e Hansen.

Veja mais no portal
cadastre-se, comente, saiba mais

Artigos Mais Lidos

A inclusão de sobrenome do padrasto ou madrasta no assento civil

29/6/2024

TDAH pode se aposentar pelo INSS?

30/6/2024

A validade do acordo judicial que estabelece o pagamento de honorários advocatícios de sucumbência quando há suspensão de exigibilidade em razão da concessão do benefício da justiça gratuita

30/6/2024

Porte de drogas para consumo pessoal e o STF. Um problema antigo e com solução antiga

1/7/2024

Imposto sobre ITBI e transferência patrimonial para holdings

1/7/2024