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O heptâmetro de quintiliano: a “fórmula mágica” para acusação e para defesa no plenário do júri

Não existe “mágica” para aplicar o heptâmetro. É óbvio e instintivo aplicar a fórmula e, neste caso, a razão e a objetividade saltam aos olhos.

27/6/2024

O Heptâmetro de Quintilianoé um conjunto de sete perguntas que ao serem respondidas comprovam a existência de um fato. São elas: que? quem? quando? por quê? como? onde? com que auxílio?

Essa fórmula é muito conhecida no mundo jurídico: já foi base para criar parâmetros para rejeição da denúncia2; há julgados rejeitando iniciais de improbidade administrativa3; Bermudez descreve sua utilização na investigação criminal4; vários estudos e artigos sobre perícia criminal o empregam como matriz para coleta de vestígios e confecção de laudos5; até mesmo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2021 o utilizou para fundamentar a estatística de mortes violentas intencionais no país6; foi objeto de questões de concursos públicos e cursos de formação7. O heptâmetro pode ser “o” roteiro de todas, absolutamente todas, as peças produzidas dentro da persecução criminal, seja pela acusação, pela defesa ou pelo juiz.

A exordial acusatória, v.g., seguindo a regra prevista no Art. 41do Código de Processo Penal, deverá trazer exatamente a indicação das sete respostas ao heptâmetro para ser recebida pelo juiz. Essas afirmações descritas na acusação serão provadas ou não durante a instrução processual.

A resposta à acusação, peça defensiva, poderá ser baseada no heptâmetro. No caso de preliminares de nulidade da prova, v.g., violação de domicílio em flagrantes, ou reconhecimentos ilegais de pessoas, a própria violação legal pode ser descrita por meio das respostas. E, no caso de discussão do mérito, a tese de negativa de autoria se encaixa na fórmula que direcionará a prova testemunhal a ser produzida.  

O juiz, ao prolatar a sentença, em sua argumentação, pelo princípio do livre convencimento para apreciação da prova, seguirá também a fórmula quando concluir pela condenação ou absolvição, indicando as provas da materialidade e as provas da autoria do crime – ou ausência ou insuficiência delas. No plenário do júri não é diferente.

Ao contrário do que se propaga, o júri não é um teatro, muito longe disso, é um ato formal e solene, presidido por juiz togado, onde a acusação é formulada pelo representante do Estado, que, no Brasil, é o promotor de Justiça, membro no Ministério Público, e a defesa feita por profissional habilitado, seja advogado ou defensor público.9 Todos os participantes estão submetidos às regras estabelecidas na Constituição Federal e no Código de Processo Penal. Não cabem acusações vazias e infundadas, nem tampouco defesa deficiente ou totalmente desconexa. É nesse contexto processual que conhecer o heptâmetro diferencia o profissional que atua no júri.

No Brasil, o júri tem previsão constitucional desde a primeira Constituição pós-Independência10, sendo uma forma de participação direta e popular dentro do Poder Judiciário, em especial, para julgar “crimes de sangue”, ou seja, dolosos contra a vida.

O procedimento é longo. A primeira fase inicia-se com a denúncia e finaliza-se com o trânsito em julgado da pronúncia. A segunda fase destina-se à produção de provas remanescentes direcionadas aos jurados.

O dia do plenário do Júri é o “dia D” – o momento em que os jurados serão sorteados, as testemunhas serão ouvidas, os acusados interrogados e os debates ocorrerão, para que, ao final, os jurados respondam “sim” ou “não” aos quesitos, e decidam a causa.

Em obra notável, BITTENCOURT equipara o ato do julgamento pelo Conselho de Sentença a um jogo11, em que são aplicadas regras legais. Os jogadores principais – juiz, promotor, advogado, jurados – têm, cada qual, a sua estratégia construída ao longo do processo, com objetivos a serem atingidos: condenação ou absolvição, utilizando-se a teoria dos jogos aplicada ao processo penal. Sim, não é crível que alguém esteja ligado profissionalmente ao plenário do júri sem compreender as lições de Alexandre Moraes da Rosa, sobre estratégia no processo penal e de Aury Lopes Júnior, sobre formação cognitiva do julgador.

Sobre essa estratégia, surge a questão: Como fazer uma acusação ou uma defesa de forma clara e objetiva, em que os jurados – os destinatários dos debates orais no plenário do júri – responderão aos quesitos acolhendo a tese apresentada?

Aparentemente é trabalhoso e complicado, e é, de fato. Mas utilizar o heptâmetro de Quintiliano como norteador da estratégia e da construção do discurso torna essa tarefa mais racional e objetiva.

A acusação, durante sua fala, deverá apontar as sete respostas devidamente provadas nos autos. É simples: “que” consiste em indicar o laudo pericial ou a prova contundente de que a vítima morreu em decorrência das lesões descritas na denúncia; “quando” e “onde” servem para atestar que o acusado estava no local no momento do fato; “quem” é usado para  evidenciar que o depoimento de ‘fulano’ e ‘beltrano’ ou o localizador do celular comprovam que o acusado praticou a conduta; “como” e o “porquê” evidenciam a existência, nos autos, de provas que indicam as circunstâncias do crime, quais sejam meio, modo e motivo, para fundamentar a condenação pelas qualificadoras do homicídio.

A defesa, por sua vez, ao refutar a fala anterior, deverá questionar a materialidade, “que, quando e onde”, apontando provas de que a vítima não morreu em decorrência das lesões, e sim por outra causa, ou, ainda, que no momento da morte o acusado não estava lá; “quem” servirá para provar que o acusado não praticou a conduta, ou existem dúvidas razoáveis acerca dessa questão; “como e por quê” devem fundamentar que os meios não existiram ou que a motivação não foi aquela ou mesmo que não foi provada pela acusação. Lembrando que cabe à acusação o ônus de provar todas as imputações, e, na dúvida razoável, a absolvição pelo júri é imperiosa, pelo princípio “in dubio pro reo”.

É de suma relevância, além da construção do discurso, o modo como se fala12, pois aporta credibilidade à mensagem que se pretende transmitir aos julgadores.

Esses são exemplos de como enquadrar o heptâmetro no plenário do júri, mas cada caso é um caso, e, repito, todos cabem na fórmula.

Na descrição da lei, os quesitos também estão diretamente ligados ao heptâmetro. Os art. 482 e seguintes do CPP trazem as regras para a formulação das perguntas e sua ordem. A primeira sempre será “que, quando e onde” – no local, na data, a vítima morreu em decorrência das lesões causadas? – esse é o quesito da materialidade do crime. A segunda é “quem”, ou seja, quem é o autor das lesões e, ainda nessa etapa, o “com que auxílio” pode determinar se o acusado julgado é autor, autor mediato ou partícipe.

Perceba que o legislador é hialino em trazer a fórmula para os quesitos.

Em seguida, se “absolve”, quesito obrigatório, no qual a defesa poderá apresentar teses incontáveis para excluir o crime.

Ainda seguindo a lei, o “como” e o “porquê” são, em regra, qualificadoras do delito, e, por isso, questionados também. O “porquê” pode ser um privilégio previsto no § 1º do Art. 121, CP, a depender do caso, tese defensiva clássica.

Em sala secreta, os jurados terão formado suas íntimas convicções baseadas em argumentos técnicos, e, sem que tenham percebido, votarão sob a égide da lei e os ditames da justiça, conforme compromissados. Assim, o resultado do júri será fruto da racionalidade, aquilo que se pretende em julgamentos dessa natureza, com o sentimento de “justiça” feita, seja acolhida a tese de acusação ou a de defesa

Com isso, só se pode chegar à conclusão de que não existe “mágica” para aplicar o heptâmetro. É óbvio e instintivo aplicar a fórmula e, neste caso, a razão e a objetividade saltam aos olhos.  

Agora, você, migalheiro, pegue seus casos de qualquer natureza – de família, cível, tributário, até mesmo em procedimentos administrativos, e experimente a fórmula na construção de suas peças e manifestações, responda às setes perguntas e saberá o resultado da causa.

______________

1 AVANCINI, Marta. Para além da retórica. Jornal da UNICAMP, Campinas, 11 de abril de 2016 a 24 de abril de 2016 – ANO 2016 – Nº 652, acesso 25.05.2024. https://www.unicamp.br/unicamp/ju/652/para-alem-da-retorica “Nascido entre os anos 30 e 40 da era Cristã, em Calagurris Nassica, atual Calahorra, Espanha, Quintiliano passou boa parte de sua vida em Roma, onde trabalhou como advogado e professor de Retórica. Morreu na capital do Império Romano por volta do ano 100. Sua obra, contudo, atravessa séculos, mantendo-se relevante em vários campos das ciências humanas – da Filosofia à História, passando pela Linguística.”

RHC n. 79.270/RJ, relator Ministro Sebastião Reis Júnior, Sexta Turma, julgado em 21/2/2019, DJe de 12/3/2019. “(...)Sem dúvidas, a peça cuja nulidade se requer atende ao artigo 41 do Código de Processo Penal, permite a ampla defesa e o pleno contraditório, pois submete-se ao Heptâmetro de Quintiliano: 1) Quem: a ex-prefeita, a paciente; 2) quando: no ano de 2006, na sua gestão; 3) Que: dispensou a licitação; 4) Como: fracionando despesas cuja totalidade era conhecida em desacordo com normas legais; 5) Porque: para não submeter às normas de licitação; 6) Onde: na cidade de Nova Friburgo; 7) Com que meios: com a atuação dos demais denunciados que elaboraram o procedimento, obtendo preços mais altos de concorrentes, cuja composição societária tinha sócios idênticos ao da empresa vencedora. (...)”

AG nº 5008896-31.2019.4.04.0000/PR, relatora Viviane Josete Pantaleão Caminha, 4ª turma-TRF4, julgado em 16/06/2021. “(...)Denúncia genérica há muito é denúncia inepta no processo penal, e não há qualquer razão para ser diferente no processo de ação civil de improbidade administrativa. Sem descrição, que minimamente acompanhe o heptâmetro de Quintiliano, há o perigo de se trilhar a senda da penalização da pessoa (física ou jurídica) pelo que ela é e não pelas condutas reputadas ilícitas. No âmbito civilizacional do Direito não cabe a asserção "pessoa corrupta"; cabe, "conduta corrupta". Ora, uma multa de trânsito deve descrever minudentemente a conduta inquinada, por que não a imputação de algo tão grave quanto a improbidade administrativa. (...)”

4 BERMUDEZ, André Luiz. A investigação criminal orientada pela teoria dos jogos. Florianópolis: Emais editora, 5ª edição, 2021, p. 165.

Acesso em 25.05.2024 https://academiadeforensedigital.com.br/a-importancia-da-pericia-digital/, https://revista.rbc.org.br/index.php/rbc/article/view/720/384 

6 BARROS, BETINA WARMLING. Sete perguntas que ajudam a entendem as mortes violentas intencionais no Brasil. Acesso em 25.06.2024  https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2021/07/2-sete-perguntas-que-ajudam-a-entender-as-mortes-violentas-intencionais-no-brasil.pdf

2019, IADES, PCDF, PERITO CRIMINAL- 2ª Verificação de aprendizagem. Acesso em 25.05.2024. https://www.qconcursos.com/questoes-de-concursos/questoes?discipline_ids%5B%5D=530&examining_board_ids%5B%5D=276&page=9

Art.41. A denúncia ou queixa conterá a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias, a qualificação do acusado ou esclarecimentos pelos quais se possa identificá-lo, a classificação do crime e, quando necessário, o rol das testemunhas.

ADI 4636, relator Gilmar Mendes, Plenário do STF, julgado em 04/04/2022. O STF decidiu que defensor público não necessita de inscrição nos quadros da OAB para exercer sua função.

10 LEONEL, Juliano de Oliveira. FÉLIX, Yuri. Tribunal do júri: aspectos processuais. Florianópolis: Emais editora, 2024, p. 55.

11 BITTENCOURT, Fabiana Silva. Tribunal do Júri e teoria dos jogos. Florianópolis: Emais editora, 2018, p. 141-142.

12 FAUCZ, Rodrigo. A defesa no tribunal do júri: guia para análise, planejamento e estratégias. Florianópolis: Emais editora, 2024, p. 166.

Marília Brambilla
Advogada criminal, graduada pelo UNICEUB em 2003, especialista em Direito Penal pela FORTIUM, professora universitária.

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