Introdução
A expressão “interesse público”, embora naturalmente subentendida pela sua literalidade, apresenta contornos relativamente abstratos e genéricos. Constantemente, o termo é utilizado como “argumento coringa” por governantes, gestores públicos e profissionais do mundo jurídico-administrativo para justificar seus atos ou decisões.
Assim, a subjetividade da expressão torna impalpável, na prática, definir se determinado ato terá, de fato, como finalidade real o benefício da coletividade ou se o interesse público foi utilizado inadequadamente, visando interesses escusos ou particulares.
Nesse sentido, a lei 14.133/21, no art. 147, ao tratar sobre o regime de nulidade dos contratos administrativos, exemplifica 11 aspectos que devem ser avaliados e caracterizados quando a medida adotada (anulação/suspensão) tiver como fundamento o interesse público. A inovação legislativa visa impor ao gestor público análise profunda, capaz de caracterizar o interesse público envolvido no caso concreto, evitando que o termo seja utilizado como manobra para desvio de finalidade por meio de motivações evasivas.
O presente trabalho tem como objetivo examinar, preliminarmente, a forma como a lei 14.133/21, no âmbito das contratações públicas, ilustra o interesse público, e analisar as implicações dessa explanação, de base consequencialista, para o regime de nulidades dos contratos administrativos.
Os princípios da supremacia e da indisponibilidade do interesse público como base do regime jurídico administrativo
Conforme conceitua Maria Sylvia Zanella Di Pietro, o regime jurídico administrativo se refere ao conjunto de traços e de conotações que tipificam o Direito Administrativo, colocando a Administração Pública numa posição privilegiada, vertical, na relação jurídico-administrativa. Em síntese, este regime trata das regras que colocam a Administração Pública em condições de superioridade perante o particular.
O regime jurídico administrativo encontra alicerce em duas características: as prerrogativas, que representam poderes especiais para a Administração nas suas relações jurídicas, e as sujeições, que significam restrições de liberdade de atuação para a Administração Pública.
As prerrogativas e sujeições, de acordo com os ensinamentos de Celso Antônio Bandeira de Mello, refletem, respectivamente, nos princípios da supremacia do interesse público e da indisponibilidade do interesse público, princípios basilares do regime jurídico administrativo.
O princípio da supremacia do interesse público estabelece que os interesses da sociedade prevalecem sobre os interesses individuais. No âmbito das contratações públicas esse princípio se materializa nas cláusulas exorbitantes dos contratos administrativos, que possibilitam a Administração, por exemplo, alterar ou rescindir unilateralmente os contratos, além de possibilitar a aplicação de sanções administrativas aos contratados, demonstrando posição de verticalidade perante o particular.
Já o princípio da indisponibilidade do interesse público consubstancia-se no próprio dever de licitar da Administração Pública para contratar serviços e adquirir bens, bem como na imposição de limitações quanto à alienação de bens públicos, que só podem ocorrer nos casos previstos em lei.
Assim, percebe-se clara relação entre a indisponibilidade do interesse público e o princípio da legalidade em sentido estrito, uma vez que o gestor público só pode fazer o que estiver previsto em lei, não podendo atuar conforme autonomia de vontade que é permitida aos particulares.
Desse modo, o interesse público é a razão tanto para a formação das prerrogativas quanto para as sujeições, equalizando o regime jurídico administrativo entre poder e dever da Administração Pública.
O novo regime de nulidades da lei de licitações e contratos e a ilustração do interesse público
A lei 14.133/21, norma geral de licitações e contratos administrativos para as Administrações Públicas diretas, autárquicas e fundacionais da União, Estados, Distrito Federal e Municípios, define expressamente no seu art. 5º, o interesse público como princípio a ser observado na aplicação da lei.
O art. 147, por sua vez, estabelece uma nova sistemática para a análise de nulidades contratuais, com base consequencialista, influenciada pela lei 13.655/18, que alterou a LINDB - Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Com base no novo regime, o gestor público, em vez de manifestar-se por meio de conceitos e valores abstratos, tem o dever de avaliar, considerar e indicar as consequências da decisão, baseada sobretudo no interesse público.
Mais do que isso, a legislação exemplifica, de maneira não exaustiva, aspectos que devem ser avaliados pelo tomador de decisão, a fim de caracterizar expressamente o atendimento ao interesse público:
“Art. 147. Constatada irregularidade no procedimento licitatório ou na execução contratual, caso não seja possível o saneamento, a decisão sobre a suspensão da execução ou sobre a declaração de nulidade do contrato somente será adotada na hipótese em que se revelar medida de interesse público, com avaliação, entre outros, dos seguintes aspectos:
- impactos econômicos e financeiros decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
- riscos sociais, ambientais e à segurança da população local decorrentes do atraso na fruição dos benefícios do objeto do contrato;
- motivação social e ambiental do contrato;
- custo da deterioração ou da perda das parcelas executadas;
- despesa necessária à preservação das instalações e dos serviços já executados;
- despesa inerente à desmobilização e ao posterior retorno às atividades;
- medidas efetivamente adotadas pelo titular do órgão ou entidade para o saneamento dos indícios de irregularidades apontados;
- custo total e estágio de execução física e financeira dos contratos, dos convênios, das obras ou das parcelas envolvidas;
- fechamento de postos de trabalho diretos e indiretos em razão da paralisação;
- custo para realização de nova licitação ou celebração de novo contrato;
- custo de oportunidade do capital durante o período de paralisação.
Parágrafo único. Caso a paralisação ou anulação não se revele medida de interesse público, o poder público deverá optar pela continuidade do contrato e pela solução da irregularidade por meio de indenização por perdas e danos, sem prejuízo da apuração de responsabilidade e da aplicação de penalidades cabíveis.”
Por conseguinte, diante da constatação de uma irregularidade na licitação ou na execução contratual, o mencionado dispositivo estabelece uma ordem sequencial de providências que devem ser tomadas. A primeira diz respeito ao saneamento do vício, ou seja, à convalidação dos atos sanáveis a fim de suprir vício existente. Sanado o ato, não há de se falar em suspensão ou nulidade do contrato, prosseguindo o negócio conforme previsto nos seus termos.
Constatada a impossibilidade de saneamento, o dispositivo legal permite a adoção de outras duas medidas: a suspensão da execução do contrato ou a declaração de nulidade. Contudo, a adoção dessas medidas só poderá ocorrer se a análise de todos os aspectos (consequências) previstos nos incisos do art. 147, pertinentes ao caso concreto, permitirem concluir que a melhor solução para atendimento do interesse público é a suspensão ou nulidade.
Ou seja, o legislador definiu a preservação do contrato como regra, estabelecendo que a suspensão ou a anulação serão medidas excepcionais, desde que essas medidas atendam ao interesse público, que deverá expressamente estar caracterizado pela avaliação dos aspectos presentes nos incisos do art. 147.
Ressalta-se, portanto, que a legislação definiu, nesse contexto, o que verdadeiramente caracterizaria o interesse público, forçando o gestor público a profunda análise das consequências no caso de uma decisão que não seja a preservação contratual. Essa abordagem é alinhada com diversos princípios administrativos, como a eficácia, eficiência, transparência, motivação, segurança jurídica, entre outros.
Ademais, a adoção de uma perspectiva consequencialista no regime de nulidades reflete uma evolução significativa na gestão de licitações e contratos, alinhada com uma tendência evolutiva do Direito.
Tradicionalmente, as nulidades eram tratadas de forma rígida. Segundo a clássica teoria das nulidades no Direito Administrativo, o ato administrativo nulo não gera direito, nos termos da súmula 473 do STF. No mesmo sentido, a lei 8.666/93 estabeleceu que a nulidade do procedimento licitatório induz à do contrato, além de definir a retroatividade dos efeitos jurídicos, desconstituindo aqueles já produzidos.
Essa visão formalista, contudo, muitas vezes não considerava o impacto das decisões sobre o interesse público e a efetividade dos serviços prestados. Ao contrário, abordagem prevista na lei 14.133/21 não só reforça a importância do interesse público como critério central das decisões administrativas, mas também promove segurança jurídica e previsibilidade nas relações contratuais entre Administração e particular.