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Direitos das pessoas com TEA, TDAH e TOD - Aspectos gerais da proteção e dados específicos

A legislação exige respeito às pessoas com transtornos mentais, apesar das barreiras e preconceitos comuns. As dificuldades enfrentadas por elas têm implicações legais significativas.

27/6/2024

O mundo passa por enorme e bem-vindo processo civilizatório, com combate ao preconceito e ideias superadas em prestígio da defesa das pautas contra majoritárias – ideia revisitada sobre a discussão dos direitos das minorias.

Se tem vivenciado um grande avanço no número de casos, com pessoas diagnosticadas com quadros de TEA – transtornos do espectro autista (vários quadros e sintomas que evidenciam a deficiência em alguns graus e níveis), TDAH – transtornos do déficit de atenção e hiperatividade e TOD – transtorno opositor e desafiador. Realidade, aliás que conta que diagnóstico mais facilitado pelo atendimento escolar, permitindo tratamentos prévios.

O presente texto examina, situações em que as pessoas afetadas por estes quadros poderão alegar e obter acesso a um regime jurídico mais operativo, livre de preconceitos na inteireza e certeza de proteção constitucional e normativa.

Há discussão importante no sentido de que se tem buscado de modo mais proativo conferir concretude às normas constitucionais e aqui se lança a ideia da garantia da solidariedade constitucional – que nos termos do art. 3º e seus consectários CF – o que passa pela ideia de afastamento de ideias que gerem situações de marginalização e exclusão sociais.1

Tais questões passam pelo crivo da análise da concretude dos direitos constitucionais em favor de grupos não majoritários. Chama-se a atenção, neste particular, dentro da discussão da LBI - lei brasileira de inclusão (lei 13.046/15) para o fato de que o legislador buscou fazer um apanhado da legislação esparsa que protegia pessoas com deficiência, buscando harmonizar o tema no direito brasileiro. Vale lembrar que o governo brasileiro, havia em 25/8/09, firmado o decreto 6.949 promulgando no direito pátrio a Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, firmada pelo Brasil, dois anos antes (em 30/3/07).

Tal Convenção Internacional trouxe a questão da deficiência para o âmbito formal dos direitos humanos, buscando reduzir desigualdades, sobretudo no que diz respeito às oportunidades de pessoas com deficiência encontram por conta de preconceitos e discriminação. Nossa sociedade caminha para se tornar cada vez mais uma democracia participativa efetiva.

Ou seja, toda forma de garantia ao pluralismo e à defesa de interesses de minorias deve ser efusivamente estimulada para que a sociedade se torne um espaço cada vez mais democrático. E, ainda além. Por força da discussão sobre vedação do efeito cliquet2, retrocessos em tais áreas não poderão ser mais admitidos. Ou seja, uma vez que o Brasil se comprometeu com o referido protocolo de Nova York eventuais retrocessos legislativos não serão tolerados.

Ademais, se tem que o direito individual não pode comportar interpretação restrita, isso seria desprezar o que o STF chama de efeito cliquet. LIBERDADES INDIVIDUAIS SE INTERPRETAM IN NUMERUS APERTUS NON IN NUMERUS CLAUSUS, para que não se tenha vulneração do que o STF tem interpretado como efeito cliquet (vedação de retrocesso em situação de garantia de direitos humanos)...

Tentativas de reduzir os impactos das novas políticas públicas acolhidas pelo referido Estatuto não poderão ser toleradas, sem o reconhecimento de manifesta afronta à ordem constitucional, sem contar a vedação de posturas que possam ser entendidas como barreiras atitudinais – ou seja atitudes preconceituosas.

Desta feita, conquistas como as cotas para contratação de pessoas com deficiência, como as previstas na lei 8.213/91 não poderão ser reduzidas ou modificadas, apenas ampliadas, sob pena de retrocesso, por exemplo (sobre o tema o decreto 5.296 de dezembro de 2004 traz alguns parâmetros acerca do que seria, ou não, considerado como deficiência para efeitos legais – tal decreto, no entanto, não poderá colidir com os termos da lei).

Vale lembrar ainda que a LBI busca cuidar de pessoas com deficiência de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual e sensorial (art. 2º), tornando-os todos plenamente capazes para os atos da vida civil (e não há que se cogitar de incapacidade civil, como regra, em relação a pessoas de mobilidade reduzida).

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1 Sobre o tema referente ao mencionado princípio da solidariedade social prevista no texto constitucional, aponta Kassandra Cardoso, no sentido de que: Para a mantença da sociedade livre e justa, os interesses particulares deverão atender aos interesses sociais, sendo que os interesses sociais das partes devem ser protegidos, desde que os valores sociais também o sejam. Assim, o contrato assume nova feição, buscando-se no plano concreto a igualdade real entre as partes contratantes e afastando as formas de dominação que antes se verificada de uma parte contra a outra, sendo que o direito exerce imprescindível papel no encontro desse equilíbrio, conferindo certeza e estabilidade às relações econômicas, buscando a justiça concreta e compatibilizando o princípio da propriedade privada com a economia.  Dessa forma, a proteção que se dá aos interesses privados incidirá não somente na liberdade das partes para contratar, mas também nos efeitos desse contrato perante a sociedade, vinculando os interesses dos particulares aos interesses dessa sociedade no que diz respeito às suas atividades econômicas. ... Consagrada no artigo 422 do novo Código Civil, a boa-fé objetiva inserida nas relações contratuais deverá ser observada em todas as suas fases e em decorrência disso observamos até responsabilidade pré-contratual, tendo em vista que as partes, mesmo antes da celebração do contrato, deverão agir com probidade, lealdade. Nesse sentido, Orlando Gomes ensina que “se um dos interessados, por sua atitude, cria para o outro a expectativa de contratar, obrigando-o, inclusive, a fazer despesas, sem qualquer motivo, põe termo às negociações, o outro terá o direito de ser ressarcido dos danos que sofreu”. Ao longo da execução do contrato firmado, os contratantes deverão garantir o pleno atendimento do disposto no instrumento contratual, atuando com a confiança incutida na outra parte. A boa-fé objetiva possui três funções, quais sejam, regra para interpretar as declarações de vontade, fonte de deveres instrumentais da relação e também limite ao exercício dos direitos das partes. Esse princípio é um elemento primordial na interpretação dos negócios jurídicos. O julgador, na hipótese de divergência sobre o conteúdo das cláusulas contratuais, interpretará o caso concreto pautado na boa-fé.

2 Esse princípio, de acordo com Canotilho, significa que é inconstitucional qualquer medida tendente a revogar os direitos sociais já regulamentados, sem a criação de outros meios alternativos capazes de compensar a anulação desses benefícios (CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição . 5ª ed. Coimbra: Almedina, 2002, p. 336.). Nesse sentido aponta Flávio Martins, a respeito do tema, dizendo muito em pouco: O fenômeno pode ser chamado de “proibição do retrocesso”, “vedação do retrocesso”, “ratchet effect” (no inglês) ou “efeito cliquet” (no francês). Essas últimas expressões, que numa tradução literal, são “efeito catraca” (expressão que, decorrente do alpinismo, significa o movimento que só permite o alpinista ir para cima, ou seja, subir, já que os pinos de sustentação estão sempre acima do alpinista). A expressão foi usada na jurisprudência do Conselho Constitucional francês (cliquet effet) para fornecer proteção especial para certas liberdades, declarando inconstitucional a lei que, em vez de torná-los mais eficazes, restringem-nos excessivamente. Por exemplo, na Decisão n. 83.165 DC, de 20 de janeiro de 1984, o Conselho Constitucional considerou inconstitucional a revogação total da lei da liberdade acadêmica, de 12 de novembro de 1968, sem substituição de uma nova lei para amparar os respectivos direitos. Um dos maiores defensores da proibição do retrocesso foi o professor de Coimbra José Joaquim Gomes Canotilho, segundo o qual, após sua concretização em nível infraconstitucional, os direitos sociais assumem, simultaneamente, a condição de direitos subjetivos a determinadas prestações estatais e de uma garantia institucional, de tal sorte que não se encontram mais na esfera de disponibilidade do legislador, no sentido de que os direitos adquiridos não mais podem ser reduzidos ou suprimidos, sob pena de flagrante infração do princípio da proteção da confiança (por sua vez, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito), que, de sua parte, implica a inconstitucionalidade de todas as medidas que inequivocamente venham a ameaçar o padrão de prestações já alcançado. Nas palavras do professor português: “a ideia aqui expressa também tem sido designada como proibição de ‘contra-revolução social’ ou da ‘evolução reacionária’. Com isto quer dizer-se que os direitos sociais e econômicos (ex: direito dos trabalhadores, direito à assistência, direito à educação), uma vez obtido um determinado grau de realização, passam a constituir, simultaneamente, uma garantia institucional a um direito subjetivo. (...) O reconhecimento dessa proteção de ‘direitos prestacionais de propriedade’, subjetivamente adquiridos, constitui um limite jurídico do legislador e, ao mesmo tempo, uma obrigação de prossecução de uma política congruente com os direitos concretos e as expectativas subjetivamente alicerçadas. A violação do núcleo essencial efetivado justificará a sanção da inconstitucionalidade relativamente a normas manifestamente aniquiladoras da chamada ‘’justiça social’”. Assim, pelo princípio da vedação do retrocesso dos direitos fundamentais, é vedado ao legislador com destaque para as citações realizadas pelo Ministro Luiz Fux do STF, na ADI4350/DF:O princípio da vedação ao retrocesso social revela-se, na compreensão de Felipe Derbli, como uma: [... “Constitui o núcleo essencial do princípio da proibição de retrocesso social a vedação ao legislador de suprimir, pura e simplesmente, a concretização de norma constitucional que trate do núcleo essencial de um direito fundamental social, impedindo a sua fruição, sem que sejam criados mecanismos equivalentes ou compensatórios. [...]” Segundo as valiosas lições de Canotilho: “[...] O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos sociais já realizado e efectivado através de medidas legislativas (...) deve considerar-se constitucionalmente garantido, sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam, na prática, numa anulação, revogação ou aniquilação pura e simples desse núcleo essencial.”

Júlio César Ballerini Silva
Advogado. Magistrado aposentado. Professor. Coordenador nacional do curso de pós-graduação em Direito Civil e Processo Civil e em Direito Médico.

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