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Por que acredito em lobisomem

Egas D. Moniz de Aragão, advogado influente, enfatizou a clareza na advocacia. O livro "Por que acredito em lobisomem" narra um intrigante caso judicial no STF.

22/6/2024

Em 1977, eu comecei estágio advocatício no escritório do prof. Egas D. Moniz de Aragão. Certamente, o melhor advogado que eu conheci e que foi responsável pelas parcas habilidades que tenho nessa profissão. Muito antes de Barroso combater os despropósitos da terminologia jurídica usual, Moniz de Aragão já abominava termos como “areópago”, “carta magna”, “no entretanto” e assim por diante. Ele já anunciava que os magistrados não dispunham de tempo disponível para ler petições longas. Impunha-me rever e rever as petições que eu elaborava, reduzindo-as ao mínimo possível. As suas sustentações orais eram marcantes, inclusive no STF. Permaneci no escritório de Egas até meados de 1980.

Um dia, Egas me apresentou um livro chamado “Por que acredito em lobisomem”. Eu não me lembro muito bem de detalhes. O livro foi escrito por um certo Serafim Machado, advogado que narrou as suas desventuras em um processo judicial, cujo julgamento final ocorreu no STF.

É uma estória de arrepiar: uma senhora, proprietária de patrimônio enorme, mas interditada (por oligofrenia), lavra um testamento deixando os bens para os filhos do seu curador. Para isso, o curador obtém uma ordem judicial “suspendendo” a interdição. Lavrado o testamento, a interdição é “reinstalada”. Logo depois, a “testadora” falece.

Serafim Machado é contratado para defender os interesses de uma sobrinha da falecida. Promove ação declaratória da nulidade do testamento e dos atos que permitiram a sua elaboração. Obtém vitória em primeiro grau. No TJ/RS, há decisão majoritária pela manutenção da sentença. Mas os embargos infringentes são acolhidos. O STF julga o recurso extraordinário e mantém por maioria de votos a decisão que reconhecia a validade do testamento. O livro descreve os eventos processuais e os votos dos diversos magistrados.  

Para quem tiver interesse, há uma reedição do livro, com prefácio de Lênio Streck.

À época, o livro me causou impacto relevante. Eu estava no início de uma carreira como advogado. Ler o livro me permitiu compreender as variações da realidade.

No final, o livro aponta que há pessoas que não acreditam em lobisomem. De minha parte, o lobisomem é uma realidade para aqueles que vivem a realidade do mundo e que se aventuram nos períodos mais negros do dia e nos locais mais perigosos dessa selva.

Uma das dificuldades é que o lobisomem somente se revela nas noites escuras. À luz do dia, é quase impossível identificá-lo. Ele se apresenta como um ser humano comum. Nesse contexto, ninguém poderia supor aquilo que se encontra nas camadas mais ocultas de uma pessoa que, muitas vezes, se apresenta como até agradável e cordial. Até que, de súbito, o lobisomem surge.

As pessoas que se aventuram a viver perigosamente tentam tomar todas as cautelas para evitar o lobisomem. Mas é quase certo que a sua trajetória levará a encontrar um lobisomem. Muitas vezes, um bando. Quando isso acontece, nada resta a fazer. O destino da vítima é determinado pela vontade do lobo.

Aquele que ousou trafegar pelas sendas dos lobisomens pode dar-se por feliz se sobreviver. Nesse caso, o mais recomendável é fazer de conta que nada aconteceu. Esperar, talvez, pela Justiça Divina. Mas sempre tendo em mente a dúvida do poeta: “se foi para desfazer, por que é que fez?”.

A mim, depois de 47 anos de prática, resta – quando muito – apresentar o livro aos novos advogados.

Marçal Justen Filho
Mestre e doutor em Direitodo Estado pela PUC/SP. Sócio da Justen, Pereira, Oliveira & Talamini - Advogados Associados.

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