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O absurdo PL 1.904/24 - Descaracterização do crime de aborto e exasperação das penas

O "PL dos estupradores", proposto por Sóstene Cavalcante, equipara aborto ao homicídio simples após 22 semanas de gestação, gerando forte oposição de movimentos sociais, parlamentares e mídias alternativas.

20/6/2024

O referido projeto de lei, chamado de “PL dos estupradores”, de iniciativa do deputado Federal Sóstene Cavalcante, PL/RJ e integrante da bancada evangélica, foi aprovado, de afogadilho,  em regime de urgência capitaneado pelo Presidente da Câmara e vem sofrendo sérias represálias de movimentos da sociedade civil organizada, de parlamentares e das mídias alternativas principalmente.

Esse monstrengo legislativo prevê alterações no Código Penal nos seus  arts. 124 a 128, equiparando o crime de aborto, como previsto originariamente, ao homicídio simples(art 121 do CP), quando há viabilidade fetal , presumida em gestação acima de 22 semanas.

Ele também  acrescenta um parágrafo único ao art 128 do CP, este que dispõe sobre as excludentes de ilicitude no crime de aborto, para eliminar aquela referente ao aborto em caso de estupro, equiparando-o ao homicídio simples. Na verdade ao art. 128 do CP prevê, como excludentes de ilicitude, na sua versão originária, o aborto necessário, quando for indispensável para salvar a vida da gestante(I) e o inciso II quando o aborto for decorrente de estupro. Com a decisão do STF na APF foi incluído nesse artigo, como excludente de ilicitude, o aborto de feto anencefálico.

Pois bem. Essas alterações subvertem a teleologia e a racionalidade do sistema insculpido no Código Penal, que data de 1940, na medida em que este prevê a punição do estupro com sanção mais branda do que o homicídio simples. Ademais, o art 128 faz parte de um código que vige há mais de 30 anos com o beneplácito da sociedade, que sempre considerou que o estupro tivesse pena inferior ao homicídio e que chancelou, e ainda chancela, a excludente de ilicitude do aborto em hipótese tais. De outro lado, outra aberração que o deputado em tela se comprometeu a corrigir, mas que não retira a teratologia do PL: o estuprador passa a ter pena inferior ao da vítima de estupro.

Esse PL olvida, ademais, que a maior parte dos estupros e abusos no Brasil são cometidos contra crianças e adolescentes, pretas, pardas e pobres, ao mais das vezes, e na intimidade do lar por tios , padrastos, irmãos, pais etc. As vítimas, nesse contexto, dificilmente denunciam os abusadores e , quando o fazem, já é tarde demais.

De outro lado, não se pode negar dois aspectos importantes na visão de especialistas quanto a esse PL: a uma, ele visa, claramente, ao favorecer os anseios da bancada evangélica,  minar  subliminarmente a laicidade do Estado, prevista em nossa Constituição, ao admitir conexões intrínsecas entre religião e Estado, este último passando a ser uma teocracia fundamentalista; com a fragilização das vítimas em decorrência de tais alterações, o abrigo e socorro delas terão como desaguadouros os templos religiosos dessas igrejas, com as vantagens econômicas e políticas daí advindas.

Se o PL não prosseguir na Câmara, como já se anuncia  --- sendo certo que não se deve perder de vista a necessidade de vigilância no tocante a possíveis alterações formais que ele possa vir a sofre, mas mantendo, essencialmente, os seus  propósitos escusos ----, ele, já convertido em lei, não resistirá ao crivo do STF. De fato, se pode, mesmo numa leitura aligeirada do PL, divisar que ele atenta flagrantemente contra a dignidade da pessoa humana, a autonomia da vontade, a liberdade, a integridade física e psíquica das mulheres etc, que são valores muito caros e sobranceiros para a Suprema Corte.

Por fim, cumpre salientar que é necessário a sociedade continuar pressionando até o fim, para que esse PL, e tantos outros grotescos da extrema – direita, sejam rejeitados. Nesse diapasão, não se pode negar que o futuro não é muito promissor quanto aos intentos dessa horda.

Gustavo Hasselmann
Procurador do município de Salvador/BA. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Direito Administrativo. Membro do IAB e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

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