1. INTRODUÇÃO
Em recente ação judicial movida em face do INPI perante a Justiça Federal1, uma renomada empresa multinacional atuante no segmento de transportes – e uma das principais fabricantes globais de caminhões pesados e ônibus – conseguiu obter a regularização do processamento de um pedido de desenho industrial (até então arquivado), a partir do reconhecimento de procedência vindo da própria autarquia.
O pedido de DI em questão, tal como na forma originariamente depositada, envolvia 8 variantes configurativas referentes a um tipo de saia lateral para caminhões, e, não obstante possuir o mesmo objeto de sua prioridade europeia (que foi analisada e concedida pelo EUIPO), veio a ser indeferido pelo INPI em sede administrativa, sob a premissa de que sete dessas variantes supostamente não guardariam “as mesmas características preponderantes” do objeto principal do pedido.
Acontece que para além das meras questões técnicas concernentes a tal ato decisório, o que, de fato, mais chamou a atenção na ocasião foi o timing do INPI ao praticá-lo. Afinal, sua decisão de indeferimento veio imediatamente após a empresa-depositante ter prestado esclarecimentos técnicos a uma exigência divisional (despacho de cód. 34) da Autarquia, cujo teor simplesmente deixou de ser por esta apreciado.
Ou seja, ao proferir essa decisão-surpresa indeferitória (em detrimento de publicar um novo despacho de cód. 342), o INPI acabou por não oportunizar à aludida empresa sequer a possibilidade de depositar os pedidos-divididos, ou, em outras palavras, de poder dar cumprimento à sua respectiva exigência.
A situação só veio a piorar quando, na sequência, a empresa-depositante interpôs recurso administrativo em face dessa decisão para (a) apresentar novas páginas de desenhos em seu pedido (de modo a nele se manter apenas uma dentre as oito variantes configurativas originárias) e (b) informar que havia procedido ao depósito de sete pedidos-divididos (referentes, respectivamente, às demais variantes remanescentes).
Isso porque o INPI, a despeito de ter dado integral provimento a este recurso – reconhecendo que as alterações ali promovidas “permitem a reforma da decisão” – para confirmar o deferimento do pedido principal, simplesmente deixou de tratar da questão de sua divisão (item b), o que levou os sete pedidos-divididos a não serem conhecidos a posteriori pela entidade.
Esse contexto naturalmente fez com que a empresa-depositante (doravante aqui tratada como ‘autora’), uma vez exauridas as vias administrativas, ajuizasse uma ação de nulidade de ato administrativo perante a Justiça Federal, para fins de efetiva salvaguarda de seus direitos proprietários – objetivando a regularização quanto ao processamento e concessão dos referidos pedidos-divididos.
E conforme se verá a seguir, uma vez citado na demanda, o INPI houve por bem reexaminar todo o processamento do pedido em questão e reconhecer, em observância às normas legais e infralegais que regem os direitos de propriedade industrial no Brasil, a procedência do pedido da autora para que “tais pedidos divididos sejam processados e examinados normalmente”, o que veio então a ser homologado pelo juízo federal.
2. CONSIDERAÇÕES SOBRE O CASO CONCRETO
A demanda em questão foi ajuizada pela autora tendo por objeto a regularização do processamento administrativo dos sete pedidos-divididos de DI por ela apresentados junto ao INPI (em resposta/cumprimento a uma exigência divisional), que arbitrariamente haviam deixado de ser conhecidos pela Autarquia e restaram arquivados.
Tal arbitrariedade, como se viu, deveu-se basicamente a duas eivas perpetradas pela entidade durante o processamento do aludido pedido originário.
A primeira delas referente ao momento processual em que foi proferida a decisão de indeferimento do pedido de DI originário, que ocorreu imediatamente após a autora ter prestado esclarecimentos técnicos a fim de demonstrar a desnecessidade quanto à sua divisão (para fins de deferimento) – em resposta a uma exigência prévia que havia sido publicada pelo INPI.
Isso porque, ao agir dessa forma, o INPI simplesmente deixou de apreciar os argumentos apresentados pela autora (fosse para considerá-los ou não), o que decerto não coaduna com o princípio do aproveitamento dos atos das partes3 e, em especial, com as diretrizes e normas dispostas pela lei 9.784/99, que, particularmente em seu art. 3º, III, assegura aos administrados o direito de “formular alegações e apresentar documentos antes da decisão, os quais serão objeto de consideração pelo órgão competente”.
Já o segundo vício se deveu ao equivocado entendimento de que os pedidos-divididos da autora teriam sido depositados intempestivamente, sob a premissa de que (i) haveria prazo-limite de 60 dias para tal ato, (ii) contados a partir da exigência preliminar (de divisão do pedido) que havia sido publicada pela autarquia.
Afinal, se por um lado, a LPI não possui qualquer previsão expressa de prazo temporal para a realização de divisão de pedidos de DI, por outro, no que concerne aos pedidos de patente de invenção (de que se permite uma interpretação por analogia), ela dispõe que o depositante poderá “até o final do exame” proceder com o pleito divisional4.
Sendo que no presente caso, o “final do exame” – concernente ao pedido originário – acabou por restar estendido em razão da interposição de recurso administrativo por parte da autora, que, conforme cediço, possui os efeitos suspensivo e devolutivo pleno, à luz do art. 212, §1º, da LPI5.
Além disso, observa-se que o INPI igualmente se equivocou ao designar como termo a quo – do referido prazo de 60 dias – a data de publicação de sua exigência divisional preliminar, pois esta não apenas havia sido tempestivamente respondida pela autora, como também restou efetivamente por ela cumprida em sede recursal.
E a partir do momento em que o INPI deu provimento a este recurso administrativo para reformar o indeferimento do pedido principal (de modo a reconhecer que a autora cumpriu satisfatoriamente com a dita exigência divisional), tal decisão naturalmente também deveria ter ensejado a abertura de novo prazo para a apresentação dos pedidos-divididos – o que, contudo, deixou de ocorrer.
Não à toa, foi exatamente isso que a Autarquia reconheceu ao apresentar sua contestação nos autos dessa ação de nulidade, após reexaminar – já em sede judicial – todo o histórico de processamento do pedido principal da autora, verbis:
“Entretanto, entendemos que a reforma do indeferimento e a concordância da Autora com a divisão do pedido ensejariam abertura de novo prazo para apresentação dos pedidos divididos, fato que não ocorreu no momento da reforma administrativa de indeferimento. (...)” 6
Mesmo porque, como todo processo administrativo constitutivo de um título de propriedade industrial, este se trata de um procedimento essencialmente complexo e dialogal7, desenvolvido a partir da reciprocidade de cooperação entre a entidade autárquica e o depositante.
E de tal sorte, em observância à primazia do aproveitamento dos atos das partes em relação a uma hermenêutica excessivamente formalística de algumas de suas normas procedimentais (que não devem, jamais, sobrepujar o direito material pretendido), o INPI acabou por concordar com a tese autoral quanto à nulidade da decisão de não-conhecimento dos pedidos-divididos da autora, o que veio a ser homologado em sentença.
3. CONCLUSÃO
Ao reconhecer a procedência do pedido da autora quanto à regularização do processamento de seus pedidos-divididos, o INPI, que possui por função precípua “executar, no âmbito nacional, as normas que regulam a propriedade industrial” (art. 2º da lei 5.648/70), acabou por reforçar a dialeticidade dos processos concessivos de títulos de propriedade industrial no Brasil, consoante preveem os arts. 220 da lei 9.279/96 e 3º, inciso III, da lei 9.784/99.
Tal posicionamento é de suma importância para o desenvolvimento tecnológico e econômico do país pois confere maior previsibilidade e segurança jurídica aos depositantes, ao mesmo tempo em que fortalece o sistema nacional de proteção à propriedade industrial.
1 Processo n. 5012775-84.2023.4.02.5101.
2 Fosse para indicar que os esclarecimentos prestados pela depositante teriam sido suficientes a justificar a manutenção do pedido originário, fosse para ratificar a posição da Autarquia quanto à exigência divisional.
3 LPI. Art. 220. O INPI aproveitará os atos das partes, sempre que possível, fazendo as exigências cabíveis.
4 LPI. Art. 26. O pedido de patente poderá ser dividido em dois ou mais, de ofício ou a requerimento do depositante, até o final do exame, desde que o pedido dividido: (...).
5 LPI. Art. 212, §1º. Os recursos serão recebidos nos efeitos suspensivo e devolutivo pleno, aplicando-se todos os dispositivos pertinentes ao exame de primeira instância, no que couber.
6 Vide Proc. n. 5012775-84.2023.4.02.5101. Evento 13, CONT2, p. 05.
7 “O exame técnico do pedido, realizado pelo INPI (...) é multilateral e dialogal, importando em participação de todos interessados, e cooperação recíproca entre o órgão público e o depositante” (BARBOSA, Denis B. Tratado da Propriedade Intelectual: Patentes, Tomo II. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017. p. 1.424).