A discutida PEC 65/23 encontra-se no momento em tramitação junto à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, aguardando-se a realização de Audiência Pública marcada para o próximo dia 18. A seu respeito foi elaborada e encaminhada Nota por entidades ligadas diretamente ao BCB - Banco Central do Brasil e outra relacionada aos advogados públicos, entre os quais os daquele Órgão. Concordo plenamente com o teor da referida Nota Técnica, cabendo reforçar alguns pontos e trazer uma visão pessoal sobre outros aspectos, a qual se junta àquela que foi objeto de dois artigos recentes sobre o mesmo tema1.
1. Mudança do regime jurídico: De autarquia a empresa pública e submissão indevida ao Congresso Nacional
As razões para essa mudança não convencem. Tudo o que está proposto para a empresa pública poderia continuar sendo exercido na qualidade de autarquia, bastando uma adaptação legislativa, não sendo o caso de uma aventura em um universo jurídico desconhecido, sujeito a fortes tempestades e a muitas trovoadas.
Outro aspecto negativo e sombrio está exposto no parágrafo sexto do art. 164 da CF, objeto da nova redação proposta, que joga para o futuro aspectos fundamentais do novo BCB pretendido, ou seja, a sua gestão autônoma nos planos administrativo, contábil, orçamentário, financeiro, operacional e patrimonial, em temporada aberta para jabotis de toda a espécie, a depender da promulgação de futura lei complementar, não se sabendo quanto tempo o seu processo tomará do Congresso Nacional e quais os rumos a serem adotados. Pura incerteza cujo resultado será a geração de profundo nível de insegurança e de incerteza quanto ao modelo que vier a ser finalmente efetivado para aquele Órgão.
Além disso, passará a residir no Congresso Nacional a competência para supervisionar o BCB nesses planos e para a aprovação do seu orçamento, quebrando o sistema atual em detrimento do Conselho Monetário Nacional, na forma da lei 4.595/64, arts. 4º, incisos III, XXVII e parágrafo 2º. Significa dizer que matérias técnicas de alta complexidade e de natureza executiva serão regidas por um órgão político, evidentemente no âmbito legislativo.
2. De natureza pública a privada, outro disparate constitucional
Enquanto as autarquias são órgãos da administração pública indireta, as empresas públicas têm natureza privada, na forma do art. 173, § 1º, II, a cujo regime então esse pretendido novo BCB se enquadrará.
Veja-se o completo desvirtuamento funcional da natureza das empresas públicas, conforme dispõe o caput do mesmo artigo acima citado, considerando-se que as empresas estão ali previstas – em caráter excepcional - tão somente para o exercício de uma atividade econômica direta, originariamente cabível ao Estado quando tal atuação vier a ser permitida por necessidade inerente aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, na forma da lei. Ora, a função de qualquer banco central não se coloca, evidentemente no quadro do dispositivo constitucional citado, tratando-se de um sério desvio conceitual. Não cabe ao BCB a exploração direta da atividade econômica, sendo ele fundamentalmente um guardião da moeda.
No plano federal operam como empresas públicas mais conhecidas o Correio, a CEF - Caixa Econômica Federal e o BNDES. Ao lado dessas colocam-se a CNB - Casa da Moeda do Brasil-; o Serpro - Serviço Federal de Processamento de Dados; a Emgea - Empresa Gestora de Ativos; a Empresa de e Informações da previdência Dataprev; a ABGF - Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias; e a CEAGESP - Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo. Todas essas empresas claramente exercem atividades econômico-lucrativas, buscando a geração de lucros para o equilíbrio financeiro de suas atividades.
Suponha-se que uma empresa pública apresente um balanço negativo, circunstância que deverá determinar a sua capitalização pelo Estado. Mas no caso dela se revelar insolvente, portanto incapaz de exercer o seu objeto, ou seja um caráter perene e não um caso isolado, ela deverá ser dissolvida, em atenção ao art. 37, caput da CF, como resultado da quebra do princípio constitucional da eficiência. Em última análise, portanto, o desaparecimento de uma empresa pública poderá ser suprido nas suas funções pelo próprio Estado ou por empresa privada do mesmo ramo.
Apresentando como caso-limite – argumento sempre bom para provar uma tese -, a insolvência do BCB e sua liquidação é uma situação inaceitável porque isso desmantelaria todo o sistema financeiro do País, sendo impossível suprir as suas funções por outro meio, devendo se aplicar um regime apropriado novo (se compatível, o que não se revela possível) de relações financeiras entre aquela Autoridade Monetária e o Tesouro, o que foi remetido pelo parágrafo oitavo do art. 164 da CF na nova redação proposta na PEC em referência.
Comparando, nas empresas públicas o lucro não é apropriado pelo Governo, tal como acontece com as sociedades de economia mista. Ele deve ser integralmente incorporado ao seu patrimônio e utilizado para o atendimento das finalidades para o qual foi criado.
Quanto ao BCB, na condição atual de autarquia federal, a página do site do BCB sobre os seus resultados indica para os efeitos aqui objetivados que:
- Segundo a lei de responsabilidade fiscal, o resultado do BCB apurado após a constituição ou reversão de reservas – constitui receita do Tesouro Nacional, dando-se que o resultado negativo constituirá obrigação do Tesouro para com aquele, devendo ser consignado em dotação específica no orçamento.
- Além disso, o resultado negativo será coberto, sucessivamente, pela reversão da reserva de resultado e pela redução do patrimônio instituição do BCB, até que este atinja o limite mínimo de 1,5% do ativo total existente na data do balanço. Na insuficiência desses recursos o saldo negativo remanescente será considerado como obrigação da União para com aquele.
- O resultado positivo apurado no Balanço do BCB, transferido à União, será destinado exclusivamente para o pagamento da Dívida Pública Mobiliária Federal.
Esse trânsito indispensável ao funcionamento do BCB e suas relações com o Tesouro Nacional é evidentemente incompatível com a proposta mudança de sua natureza para empresa pública, espacialmente quando se verifica pela nova redação proposta ao parágrafo II do art. 164 da PEC, será estabelecida a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública. Ora o Tesouro Nacional é uma conta administrada pela Secretaria do Tesouro Nacional, órgão da Administração Pública Federal, integrante do Ministério da Fazenda. Essa condição opera evidentemente contra o dispositivo acima citado, do que não se deu conta na PEC de que se trata.
O tema necessita de muitos outros desdobramentos. Por enquanto ficamos por aqui.
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1 “Receita para detonar o Banco Central do Passado, do presente e do futuro”, de 28.03.2024; e “O Banco Central do Brasil como empresa pública: com a corda no pescoço e o banquinho balançando”, de 22.04.2024, textos publicados no Jornal Eletrônico Migalhas.