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Banco Central do Brasil: Navegando em mar revolvo na terra plana

A PEC 65/23 está em tramitação no Senado, discutindo mudanças do Banco Central de autarquia para empresa pública, o que gera incertezas e críticas quanto à supervisão e regime jurídico propostos.

18/6/2024

A discutida PEC 65/23 encontra-se no momento em tramitação junto à Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal, aguardando-se a realização de Audiência Pública marcada para o próximo dia 18. A seu respeito foi elaborada e encaminhada Nota por entidades ligadas diretamente ao BCB - Banco Central do Brasil e outra relacionada aos advogados públicos, entre os quais os daquele Órgão. Concordo plenamente com o teor da referida Nota Técnica, cabendo reforçar alguns pontos e trazer uma visão pessoal sobre outros aspectos, a qual se junta àquela que foi objeto de dois artigos recentes sobre o mesmo tema1.

1. Mudança do regime jurídico: De autarquia a empresa pública e submissão indevida ao Congresso Nacional

As razões para essa mudança não convencem. Tudo o que está proposto para a empresa pública poderia continuar sendo exercido na qualidade de autarquia, bastando uma adaptação legislativa, não sendo o caso de uma aventura em um universo jurídico desconhecido, sujeito a fortes tempestades e a muitas trovoadas.

Outro aspecto negativo e sombrio está exposto no parágrafo sexto do art. 164 da CF, objeto da nova redação proposta, que joga para o futuro aspectos fundamentais do novo BCB pretendido, ou seja, a sua gestão autônoma nos planos administrativo, contábil, orçamentário, financeiro, operacional e patrimonial, em temporada aberta para jabotis de toda a espécie, a depender da promulgação de futura lei complementar, não se sabendo quanto tempo o seu processo tomará do Congresso Nacional e quais os rumos a serem adotados. Pura incerteza cujo resultado será a geração de profundo nível de insegurança e de incerteza quanto ao modelo que vier a ser finalmente efetivado para aquele Órgão.

Além disso, passará a residir no Congresso Nacional a competência para supervisionar o BCB nesses planos e para a aprovação do seu orçamento, quebrando o sistema atual em detrimento do Conselho Monetário Nacional, na forma da lei 4.595/64, arts. 4º, incisos III, XXVII e parágrafo 2º. Significa dizer que matérias técnicas de alta complexidade e de natureza executiva serão regidas por um órgão político, evidentemente no âmbito legislativo.

2. De natureza pública a privada, outro disparate constitucional

Enquanto as autarquias são órgãos da administração pública indireta, as empresas públicas têm natureza privada, na forma do art. 173, § 1º, II, a cujo regime então esse pretendido novo BCB se enquadrará.

Veja-se o completo desvirtuamento funcional da natureza das empresas públicas, conforme dispõe o caput do mesmo artigo acima citado, considerando-se que as empresas estão ali previstas – em caráter excepcional - tão somente para o exercício de uma atividade econômica direta, originariamente cabível ao Estado quando tal atuação vier a ser permitida por necessidade inerente aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, na forma da lei. Ora, a função de qualquer banco central não se coloca, evidentemente no quadro do dispositivo constitucional citado, tratando-se de um sério desvio conceitual. Não cabe ao BCB a exploração direta da atividade econômica, sendo ele fundamentalmente um guardião da moeda.

No plano federal operam como empresas públicas mais conhecidas o Correio, a CEF - Caixa Econômica Federal e o BNDES. Ao lado dessas colocam-se a CNB - Casa da Moeda do Brasil-; o Serpro - Serviço Federal de Processamento de Dados; a Emgea - Empresa Gestora de Ativos; a Empresa de e Informações da previdência Dataprev; a ABGF - Agência Brasileira Gestora de Fundos Garantidores e Garantias; e a CEAGESP - Companhia de Entrepostos e Armazéns Gerais de São Paulo. Todas essas empresas claramente exercem atividades econômico-lucrativas, buscando a geração de lucros para o equilíbrio financeiro de suas atividades.

Suponha-se que uma empresa pública apresente um balanço negativo, circunstância que deverá determinar a sua capitalização pelo Estado. Mas no caso dela se revelar insolvente, portanto incapaz de exercer o seu objeto, ou seja um caráter perene e não um caso isolado, ela deverá ser dissolvida, em atenção ao art. 37, caput da CF, como resultado da quebra do princípio constitucional da eficiência. Em última análise, portanto, o desaparecimento de uma empresa pública poderá ser suprido nas suas funções pelo próprio Estado ou por empresa privada do mesmo ramo.

Apresentando como caso-limite – argumento sempre bom para provar uma tese -, a insolvência do BCB e sua liquidação é uma situação inaceitável porque isso desmantelaria todo o sistema financeiro do País, sendo impossível suprir as suas funções por outro meio, devendo se aplicar um regime apropriado novo (se compatível, o que não se revela possível) de relações financeiras entre aquela Autoridade Monetária e o Tesouro, o que foi remetido pelo parágrafo oitavo do art. 164 da CF na nova redação proposta na PEC em referência.

Comparando, nas empresas públicas o lucro não é apropriado pelo Governo, tal como acontece com as sociedades de economia mista. Ele deve ser integralmente incorporado ao seu patrimônio e utilizado para o atendimento das finalidades para o qual foi criado.

Quanto ao BCB, na condição atual de autarquia federal, a página do site do BCB sobre os seus resultados indica para os efeitos aqui objetivados que:

  1. Segundo a lei de responsabilidade fiscal, o resultado do BCB apurado após a constituição ou reversão de reservas – constitui receita do Tesouro Nacional, dando-se que o resultado negativo constituirá obrigação do Tesouro para com aquele, devendo ser consignado em dotação específica no orçamento.
  2. Além disso, o resultado negativo será coberto, sucessivamente, pela reversão da reserva de resultado e pela redução do patrimônio instituição do BCB, até que este atinja o limite mínimo de 1,5% do ativo total existente na data do balanço. Na insuficiência desses recursos o saldo negativo remanescente será considerado como obrigação da União para com aquele.
  3. O resultado positivo apurado no Balanço do BCB, transferido à União, será destinado exclusivamente para o pagamento da Dívida Pública Mobiliária Federal.

Esse trânsito indispensável ao funcionamento do BCB e suas relações com o Tesouro Nacional é evidentemente incompatível com a proposta mudança de sua natureza para empresa pública, espacialmente quando se verifica pela nova redação proposta ao parágrafo II do art. 164 da PEC, será estabelecida a ausência de vinculação a Ministério ou a qualquer órgão da Administração Pública. Ora o Tesouro Nacional é uma conta administrada pela Secretaria do Tesouro Nacional, órgão da Administração Pública Federal, integrante do Ministério da Fazenda. Essa condição opera evidentemente contra o dispositivo acima citado, do que não se deu conta na PEC de que se trata.

O tema necessita de muitos outros desdobramentos. Por enquanto ficamos por aqui.

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1 “Receita para detonar o Banco Central do Passado, do presente e do futuro”, de 28.03.2024; e “O Banco Central do Brasil como empresa pública: com a corda no pescoço e o banquinho balançando”, de 22.04.2024, textos publicados no Jornal Eletrônico Migalhas.

Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa
Professor sênior de Direito Comercial da Faculdade de Direito da USP. Sócio do escritório Duclerc Verçosa Advogados Associados. Coordenador Geral do GIDE - Grupo Interdisciplinar de Direito Empresarial.

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