Contexto internacional e nacional
A escravidão africana no Brasil se estendeu por mais de três séculos, deixando marcas profundas na sociedade e famílias vitimadas. Em 13 de maio de 1888, foi sancionada a Lei Áurea, que extinguiu o regime de escravatura no Brasil1. Apesar da legislação pouco foi feito em termos de políticas públicas para reinserção e indenização da população vitimada pelo regime escravagista.
Em 2024, 136 anos após a aprovação da Lei Áurea, o Brasil bate o recorde quanto ao número de empregadores que submeteram os empregados a condições análogas à escravidão, a chamada “Lista Suja” do Ministério do Trabalho2. Reflexo da desigualdade social que permeia toda a sociedade brasileira, mas também resultado da ausência de mecanismos suficientes para evitar a prática no país. Conforme dados da OIM (Agência da ONU para Migrações), em torno de 50 milhões de pessoas, vivem em condição de escravidão moderna no mundo3, sendo países em desenvolvimento ou subdesenvolvidos os que sofrem mais com a questão.
Especificamente, o recorte brasileiro, temos alguns exemplos de escândalos como o caso Zara, empresa que enfrentou, em diversas ocasiões, autuações, dentro e fora do Brasil, relacionadas ao trabalho análogo à escravidão em sua cadeia de fornecimento. Mais recentemente o escândalo envolvendo as vinícolas Salton, Aurora e Garibaldi, em que, pelo menos 200 trabalhadores estavam em condições análogas à escravidão, sendo submetidos a jornadas extenuantes de trabalho, sem permissão para deixar as instalações e havendo denúncias de agressões físicas.
Diante de uma questão tão grave, e considerando o complexo cenário econômico atual, com cadeias produtivas descentralizadas e o fornecimento de materiais e serviços difundidos por diversos países, empresas, estados e comunidades têm se questionado sobre o que pode ser feito para erradicar as violações dos direitos humanos e o problema da escravidão contemporânea.
Responsabilidades
É comum que a resposta para essa pergunta, muitas vezes, seja delegar exclusivamente a responsabilidade da resolução do problema para o Estado. Contudo, por se tratar de uma questão tão complexa e disseminada - desde 1995 já foram resgatados, no Brasil, mais de sessenta e três mil e quatrocentos4 trabalhadores em condições análogas à escravidão - a ação exclusivamente estatal é incapaz de extinguir o problema.
Ademais, há outros complicadores que dificultam a inibição da prática, como o fato de, frequentemente a prática ser realizada em regiões afastadas e em locais onde a presença governamental é escassa, como propriedades rurais e pequenas cidades. Nesse sentido, os autores acreditam que um modelo de cogovernança, com uma participação ativa dos entes privados, tenha mais probabilidade em lograr em um resultado exitoso.
Além da das pessoas, escândalos envolvendo violações de direitos humanos têm a tendência de minar a confiança dos consumidores, clientes e stakeholders em relação à empresa, colocando em dúvida a capacidade de gestão e prosperidade dos negócios. A reputação prejudicada pode ser diretamente associada, em alguns casos, com uma expressiva perda de faturamento, acarretando consequências financeiras. No âmbito legal, as empresas envolvidas responderão perante os seus atos nas esferas cível, penal e trabalhista (a depender do caso).
A batalha contra violações de Direitos Humanos
Em 1948, com a assinatura, por todos 193 países membros da ONU, da DUDH - Declaração Universal dos Direitos Humanos, o combate a violações desses direitos começou a ser intensificado. A DUDH tem como objetivo assegurar medidas necessárias para prevenir, investigar e remediar violações no território de cada estado membro. A Declaração estabelece princípios gerais e fundamentais de proteção, que devem ser seguidos por todos os estados membros e aprofundados em suas legislações nacionais.
Em 2011 o Conselho de Direitos Humanos da ONU divulgou os UNGPs - Guiding Principles on Business and Human Rights para funcionarem como um guia, para as corporações, quanto ao combate à violações dos direitos humanos5. Conforme colocado pelo Alto Comissário de Direitos Humanos da ONU, o sr. Volker Turk, o endereçamento de questões relacionadas a violações de direitos humanos normalmente não depende apenas de mecanismos individuais, mas sim mecanismos múltiplos que possam servir de suporte um para o outro6.
Essa lógica de cogovernança, em que não apenas os governos devem agir para prevenir problemas relacionados a direitos humanos, mas as empresas, em conjunto, devem promover esforços para evitar essa violação está de acordo com o que a OIT - Organização Internacional do Trabalho chama de “Governança Sinérgica”. Na visão dos autores, para um combate efetivo a essas violações deve haver a atuação em conjunto de organizações internacionais, governo, empresas e sociedade civil.
Os UNGPs estabelecem o escopo e a abrangência que o combate a violações de direitos humanos deve tomar dentro das empresas. Quanto ao escopo, são delimitados como direitos humanos, no mínimo, aqueles expressos na Declaração Internacional dos Direitos Humanos e nos princípios relativos aos direitos fundamentais estabelecidos na Declaração da Organização Internacional do Trabalho sobre Princípios e Direitos Fundamentais no Trabalho7.
Quanto à abrangência, a ONU esclarece que as empresas devem atuar sobre possíveis violações de direitos humanos estejam diretamente ligadas às operações, produtos ou serviços por meio das relações comerciais, mesmo que as empresas não tenham contribuído para esses impactos8.
Devida Diligência de Direitos Humanos como instrumento de conformidade
A DDDH é um dos principais mecanismos de conformidade e mitigação de violações de direitos humanos que podem ser utilizados pelas empresas. Conforme disposto por Jolyon Ford e Justine Nolan9.
A DDDH difere da due diligence corporativa convencional porque seu foco não consiste nos riscos ou contingências para o negócio, mas sim nos riscos para as pessoas afetadas pelas atividades empresariais. Devido à grande diversidade de empresas, setores e circunstâncias, o estilo de DDDH dos UNGPs é amplamente estruturado, enfatizando a flexibilidade e o contexto, enquanto compreende cinco elementos essenciais. A fim de “identificar, prevenir, mitigar e responsabilizar” como elas lidam com seus impactos adversos relacionados aos direitos humanos, as empresas deveriam: (1) identificar e avaliar impactos adversos atuais e potenciais; (2) assimilar os resultados internamente, implementando medidas preventivas e mitigadoras apropriadas; (3) avaliar a efetividade de tais medidas; e (4) comunicar publicamente como elas estão realizando a DDDH.
Conforme indicado pelos autores, a DDDH concentra-se nos riscos que as atividades empresariais representam para as pessoas e comunidades afetadas, direta ou indiretamente, por tais atividades. O foco do procedimento é garantir que, durante toda a cadeia produtiva, os parceiros, subsidiárias, fornecedores e todos os agentes envolvidos no processo produtivo, atuem de forma responsável, respeitando os direitos humanos.
Em resumo, a DDDH é um procedimento interno, abrangente, implementado nas empresas para identificar, prevenir, mitigar e prestar contas possíveis violações de direitos humanos que estejam diretamente ligadas às operações dos mais diversos setores econômicos mesmo que as empresas não tenham contribuído para esses impactos10.
A abrangência (abranger toda cadeia produtiva), a flexibilidade (se adequar a cada situação em concreto) e a continuidade (constância das verificações) são requisitos básicos a serem seguidos para efetividade das medidas.
Em muitos escândalos relacionados a trabalhos análogos à escravidão, a posição institucional das empresas frequentemente é alegar desconhecimento das atividades de seus fornecedores e parceiros comerciais. Durante o processo de auditoria, as empresas têm a oportunidade de conhecer melhor seus stakeholders e sua cadeia produtiva, o que não apenas pode resultar em uma possível vantagem competitiva, mas também pode prevenir muitas violações graves. A adoção desses procedimentos impõe para as empresas uma proximidade maior nas operações de seus parceiros a partir da identificação de potenciais riscos aos direitos humanos, e elaboração de quais ações poderiam ser tomadas se esses riscos acontecessem.
Ford e Justine Nolan destacam que o processo de DDDH deve ser um processo profundo, transparente e envolvendo os funcionários diretos e indiretos de toda a cadeia de produção. Os autores destacam que é essencial que a DDDH trate não apenas os sintomas, mas também a raiz do problema, desempenhando a transformação de práticas corporativas internas, que muitas vezes estão vinculadas a um modelo geral de negócios e não a um problema a nível de fábrica.
No mesmo sentido, os UNGPs11 indicam que as empresas direcionadas em adotar uma política de tolerância zero para violações dos direitos humanos devem, por meio de seus líderes de alto escalão, assumir um compromisso público afirmativo em relação a essa política. Essa declaração deve ser feita de maneira clara e abrangente, refletindo-se na política interna de gestão da empresa. É essencial também que seja implementado um procedimento de reparação/endereçamento, caso seja descoberto algum tipo de violação dentro das cadeias produtivas.
Isso porque, o respeito aos direitos humanos deve estar relacionado com as operações e valores centrais de uma empresa. Se a empresa delegar todo esse procedimento a terceiros, a probabilidade da integração na empresa será muito baixa.
A DDDH é, atualmente, o mecanismo mais celebrado em sede de respeito aos direitos humanos por parte dos entes privados. Conforme já dito, a própria ONU, na criação dos UNGPs e da DDDH tomou algumas iniciativas para garantir que as corporações implementassem de forma séria o mecanismo.
No recorte brasileiro, vale citar o PL 572/22, de autoria do deputado Helder Salomão (PT-ES) e outros, que tem a intenção de criar a “Lei Marco Nacional sobre Direitos Humanos e Empresas”. Além de prever a reparação e responsabilização das empresas em caso de violações de direitos humanos, o que já é regulado pela legislação brasileira, o PL é inspirado nas diretrizes internacionais e contempla alguns dispositivos inéditos no ordenamento jurídico brasileiro. Entre esses dispositivos, destacam-se a própria Due Diligence, a criação de um fundo emergencial destinado ao custeio de necessidades básicas de pessoas, grupos e comunidades atingidas, e a participação ativa das comunidades afetadas em eventuais processos de reparação. Se aprovado, essas disposições passam a ter caráter vinculativo e as empresas deverão segui-las sob pena de incorrer em um ato ilícito.
Conclusão
Os UNGPs e demais diretrizes da ONU são guias para direcionar o combate às violações de direitos humanos ao redor do mundo. Apesar de não vinculativa, a implementação de um processo de DDDH é extremamente vantajoso para as empresas e precisa ser mais difundido em companhias de grande e médio porte.
Além do benefício óbvio e essencial de respeitar os direitos humanos, as empresas passam a conhecer de perto todos os atores com quem fazem negócios, têm uma projeção positiva de imagem perante o mercado, consumidores e fornecedores, e evitam litígios relacionados a questões sensíveis e estratégicas do negócio
Os autores, pesquisadores do tema, e as melhores práticas internacionais defendem a implementação de um processo de due diligence em direitos humanos, seguindo os princípios orientadores das Nações Unidas, independentemente de legislações internas vinculativas. Dessa forma, as empresas contribuem para a erradicação da escravidão moderna, incorporando um procedimento holístico em todas as partes de seu negócio, o que, por sua vez, traz benefícios significativos para as empresas e suas operações.
Por fim, é essencial que o tema permaneça em discussão constante, para provocar a academia e a sociedade civil a prestar atenção em medidas simples e complexas para atenuar esses riscos, passando de auditorias rigorosas até cláusulas contratuais de diluição de responsabilidade entre os contratantes.
1 Disponível em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2019/05/13/ha-131-anos-senadores-aprovavam-o-fim-da-escravidao-no-brasil#:~:text=H%C3%A1%20131%20anos%2C%20senadores%20aprovavam%20o%20fim%20da%20escravid%C3%A3o%20no%20Brasil,-Compartilhe%20este%20conte%C3%BAdo&text=Comemorada%20pelos%20abolicionistas%2C%20odiada%20pelos,aboli%C3%A7%C3%A3o%20da%20escravatura%20no%20Brasil. Acesso em 20 de abril de 2024
2 Disponível em: https://g1.globo.com/trabalho-e-carreira/noticia/2024/04/05/governo-atualiza-lista-suja-do-trabalho-escravo-com-248-novos-empregadores.ghtml Acesso em 22 de abril de 2024
3 Disponível em: https://brazil.iom.int/pt-br/news/50-milhoes-de-pessoas-vivem-em-condicao-de-escravidao-moderna-no-mundo Acesso em 23 de abril de 2024
4 Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2024-01/brasil-resgatou-31-mil-trabalhadores-escravizados-em-2023 Acesso em 10 de maio de 2024
5 Access to Remedy in Cases of Business-Related Human Rights Abuse,2024 - United Nations
6 Access to Remedy in Cases of Business-Related Human Rights Abuse,2024 - United Nations | Volker Turk
7 The Corporate Responsibility to Respect Human Rights - An Interpretive Guide. 2012, United Nations
8 The Corporate Responsibility to Respect Human Rights - An Interpretive Guide. 2012, United Nations, Guiding Principle 13.
9 REGULATING TRANSPARENCY ON HUMAN RIGHTS AND MODERN SLAVERY IN CORPORATE SUPPLY CHAINS: THE DISCREPANCY BETWEEN HUMAN RIGHTS DUE DILIGENCE AND THE SOCIAL AUDIT | Publicado originalmente em (2020) 26(1) Australian Journal of Human Rights e 1 [2020] University of New South Wales Faculty of Law Research Series (UNSWLRS) 29.
10 The Corporate Responsibility to Respect Human Rights - An Interpretive Guide. 2012, United Nations, Guiding Principle 13.
11 The Corporate Responsibility to Respect Human Rights - An Interpretive Guide. 2012, United Nations.