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Medidas atípicas no CPC – Da [im]possibilidade da suspensão do passaporte e da CNH do devedor

Da manutenção do princípio da tipicidade dos meios executivos.

11/6/2024

Com o advento do novo CPC1 inaugurou-se um debate sobre a possibilidade dos meios executivos serem atípicos; isto é, o Magistrado poderia tudo determinar – pouco importando a existência de legislação prévia e também as violações a direitos fundamentais – que o devedor pudesse ter passaporte, CNH e outros Direitos suspensos até que uma determinada obrigação fosse adimplida.

Trata-se, ao nosso ver, de uma leitura açodada, equivocada e temerária do art. 139, IV2, do CPC. Muito se escreveu e se escreve sobre assunto, sendo certo que a questão já chegou em tema de repercussão geral ao STJ e o STF, no julgamento da ADIn 5.941, ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores, entendera que a apreciação da constitucionalidade, ou não, das “ditas” medidas atípicas deveria ser resolvida no caso concreto.

De efetivo, podemos antecipar um ponto bastante relevante: a imensa maioria da jurisprudência firmada sobre o tema rechaça a possibilidade da suspensão da CNH e Passaporte do devedor.

(Realizamos amplas pesquisas, em toda a jurisprudência nacional, sobre o tema, em razão de classes que ministramos, artigos publicados e um livro3, também escrito sobre este – espinhoso – tema).

Numa visão, nitidamente utilitarista do Direito, diversos juristas, pelos quais temos imenso respeito e admiração, aplaudiram esse tipo de medida que poderia ser uma espécie de “bala-de-prata” que poderia pôr fim à imensa maioria dos processos que há no Sistema Judiciário Nacional.

Sim, é necessário que entendamos: a maior parte dos processos executivos não se resolverá e muitas vezes muitas vezes o “não-recebimento” de um crédito, gostemos ou não, se dá por culpa do próprio credor na formação do contrato.

Em nosso livro (citado à nota de rodapé número “3”) traçamos um paralelo entre esta sanha de se buscar a efetividade do processo executivo, ainda que à custa da violação a Direitos Fundamentais e o Direito Penal do Inimigo (Günther Jakobs) naquilo que classificamos de Direito Processual Civil do Inimigo.

Ocorre que, violar-se a norma CONSTITUCIONAL não é o meio mais inteligente e/ou saudável para que um Estado Democrático de Direito resolva problemas dos credores inadimplentes.

Sobre o tema, Araken de Assis4, afirma:

“O estudo desses meios [...] realizar-se-á, naturalmente, no livro de execução. Entrementes, convém realçar que razões políticas tornam esses meios essencialmente típicos [...]. Em outras palavras, os meios em si hão de ser taxativos, sob pena de infração ao devido processo legal (art. 5º, LIV, CF/1.988).”

Neste mesmo sentido, temos o ensinamento de Humberto Theodoro Junior5:

“No desempenho da atuação criativa, o juiz não deverá se colocar acima da lei, porque a ordem constitucional se acha apoiada no princípio da legalidade. [...] Pode aprimorá-la (a lei) [...], mas não deve, de forma alguma, desprezá-la ou revoga-la.”

Da manutenção da tipicidade dos meios executivos:

Neste tópico, notamos que há uma comunicação direta entre o arts. 3916 do Código Civil e o art. 7897 do CPC.

Antes de entrarmos, propriamente, neste tema, ressaltamos que mesmo na vigência do CPC/73, já se discutia, ainda que de forma indireta, sobre a Atipicidade dos Meios Executivos.

Entre os anos de 1994 e 1998 houve certa tendência, na Justiça do Trabalho de determinar a penhora de linhas telefônica de empresas devedoras. Houve também uma grande quantidade de magistrados trabalhistas que, como meio de “estimular” o adimplemento do débito, determinava a suspensão da linha em questão até a quitação da verba trabalhista8.

(Antes mesmo do Novo CPC, em 2.008, o Dr. Robson Carlos de Oliveira defendeu, com certo brilhantismo, diga-se de passagem, a Tese de Doutoramento na PUC/SP: Os poderes do juiz na execução por quantia certa contra o devedor solvente.)

Reiteramos, mais uma vez, que a norma legal (art. 139, IV) é confusa. A norma é mal escrita. Se analisarmos, literalmente, o que diz a norma, poderíamos inferir que estaria restituída a prisão civil do infiel depositário, ou na prisão civil por dívida, vez que a norma fala, expressamente, na possibilidade do juiz utilizar meios mandamentais, i.e., trata-se do tipo de comando que – se desobedecido – gera justa causa para a ação penal contra a parte por crime de desobediência. Aliás, neste sentido, sobre a má-redação do artigo 139, IV, citamos Fredie Didier Junior9:

“O texto legal sofre de uma atecnia: medidas mandamentais, indutivas e coercitivas são, rigorosamente, a mesma coisa. São meios de execução indireta do comando judicial. Sem distinções.”

Com  efeito, não é minimamente aceitável  que cogitemos da suspensão de Direitos Fundamentais com lastro num texto legal, segundo informações colhidas da Melhor Doutrina, mal escrito.

As medidas atípicas, mormente quando ofendem direitos fundamentais, constituem verdadeira capitis diminutio10, ou seja, uma ferramenta da história antiga do Direito que simplesmente retirava, total ou parcialmente, o status de cidadania de alguém.

Neste sentido, ademais, já se manifestou o Egrégio TJ/SP:

BLOQUEIO DE CARTÃO DE CRÉDITO, APREENSÃO DE PASSAPORTE E DA CARTEIRA DE MOTORISTA - Inadmissibilidade - Providências que não se prestam à obtenção de recursos ou bens para satisfazer a execução e implicam emviolação dos princípios da dignidade humana e da liberdade de ir e vir - Verdadeira capitis diminutio não prevista no título ou no ordenamento jurídico - Pretensão não razoável, exagerada e desproporcional - Devedor que responde com seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações e não com a sua liberdade pessoal - Decisão mantida - Agravo de instrumento desprovido. 15ª Câmara de Direito Privado do Egrégio TJ/SP. Agravo de instrumento 2216682-22.2017.8.26.0000

Assim, em que pese as vozes dissonantes, temos que o Princípio da Tipicidade dos Meios Executivos, resta mantido em nosso ordenamento jurídico, sendo, destarte, incabível, em respeito ao mesmo princípio, a aplicação da Medidas Atípicas, as quais nunca foram previstas em nossa lei adjetiva civil, tampouco na Constituição Federal. 

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1 Lei 13.105 de 2.015.

2 Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...)

IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;

3 PAPINI, Paulo Antonio. Medidas Atípicas para Cumprimento de Ordem Judicial – Suspensão do Passaporte e CNH do Devedor. São Paulo. Lualri. 2018. ISBN 978.859.2749-94

4 ASSIS, Araken de. Processo Civil Brasileiro. Volume II. Tomo I. Parte Geral: Institutos Fundamentais. Ed. Thomson Reuters Revista dos Tribunais. P. 935. ISBN 978-85-203-6587-8

5 THEODORO JUNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil – Volume I. Editora Forense. P. 444. ISBN – 978-85-309-777-2

6 Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

7 Art. 789. O devedor responde com todos os seus bens presentes e futuros para o cumprimento de suas obrigações, salvo as restrições estabelecidas em lei.

8 Nota: o TRT da 4ª Região (Rio Grande do Sul) no Mandado de Segurança 0495.000/97-2, rechaçou a medida, por entender, dentre outros, que a ordem violava o Princípio da Menor Onerosidade do Processo Executivo.

9 DIDIER, Fredie Junior. Curso de Direito Processual Civil. V. 5. 7ª Edição. P. 10.

10 Capitis deminutio ou capitis diminutio é um termo usado no direito romano, referindo-se à extinção, no todo ou em parte, do antigo status e capacidade legal de uma pessoa.

Paulo Antonio Papini
Advogado em São Paulo. Mestre e Doutorando pela Universidade Autónoma de Lisboa. Pós-graduado em Processo Civil. Especialista em Direito Imobiliário. Professor na ESA/UNIARARAS e ESD-Campinas.

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