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A absurda PEC da privatização das praias do Brasil

A PEC 3/22, apelidada de "PEC das privatizações das praias" avança no Senado, liderada por Flávio Bolsonaro. Contudo, enfrenta críticas de diversos setores, incluindo ambientalistas. A proposta revoga partes da Constituição para promover privatizações.

5/6/2024

A PEC 3/22, conhecida como a PEC das privatizações das praias do Brasil, ou mesmo projeto Cancum, como denominado pelas hostes bolsonaristas, foi aprovada na Câmara dos Deputados, sem muita discussão e debates, no início do ano passado. Depois, ela foi encaminhada para o Senado, sob a relatoria do senador Flavio Bolsonaro, onde encontra–se agora sobre o crivo da CCJ. No dia 27/5/24 houve audiência pública para discutir a matéria, tendo vários setores do governo e da sociedade civil, inclusive ambientalistas, se manifestado contra ela. É de se notar que essa PEC não tem sido divulgada nas mídias escrita e falada, tramitando à sorrelfa da população. A PEC em questão revoga o art. 20, VII, da Constituição Federal e o art. 49, & 3º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, e dá outras providências.

Antes de adentrar ao tema de fundo do presente artigo, cumpre tecer algumas considerações, em apertada síntese, sobre o fenômeno mundial do neoliberalismo, que tanto assola os países do planeta, inclusive e principalmente os em desenvolvimento, e que, dentre outros nefastos efeitos, objetiva a massiva privatização do patrimônio público e dos serviços públicos a cargo do Estado. 

Precursor do neoliberalismo, o liberalismo clássico nasceu na era moderna, em especial nos séculos VII e VIII na Europa, tendo como corifeus Adam Smith (autor da teoria da mão invisível do mercado) e John Looke, filósofo inglês. Ademais, o liberalismo clássico influenciou as revoluções Gloriosa, na Inglaterra (1688), Americana de 1776 e Francesa de 1789.

Embora a definição de liberalismo seja inçada de ambiguidades e aporias, podemos afirmar que, em linhas gerais, ele, o liberalismo, advogava, e ainda advoga, a tese fundada nas seguintes características: Proteção aos direitos civis e humanos, liberdade individual, democracia, legalidade, livre mercado, mínima intervenção do Estado na economia (estado mínimo, expressão tão utilizada hoje em dia), secularismo, dentre outras.

O capitalismo, fenômeno associado ao liberalismo econômico, passou, no curso da história, por diversas crises, dentre elas a “grande depressão”, que levou os EUA, em 1929, a uma situação de desemprego ou redução salarial, queda do consumo, enfim, uma miséria generalizada da população.

Como consequência da crise, - como os empresários começaram a investir menos na produção e mais na bolsa - a grande  especulação levou ao crash da bolsa de Nova York.

Somente nos anos 30 do século passado, o presidente Roosevelt dos EUA, lançou o new deal, vale dizer, um grande acordo entre empresários e trabalhadores, mediado pelo Estado, bem assim o governo implementou uma gama variada de medidas econômicas e sócias, notadamente nas áreas de saúde , educação, moradia, saneamento básico, assistência social, previdência social etc, com vistas a socorrer a população, que foi assolada pela “grande depressão”. Essas medidas foram inspiradas na doutrina do economista John Maynard  Keynes. Eis, pois, o chamado Estado de Bem-Estar Social (welfare state), que se espalhou pela Europa, Japão, América Latina e outras partes do mundo. O sistema financeiro e a economia foram, também, regulados pelo Estado. Não é demasiado assinalar que o nascimento do welfare state, se deu, dentre muitos motivos, para fazer frente ao avanço do socialismo real no mundo. O capital se une ao Estado para aumentar os seus ganhos e garantir justiça social como contraponto ao socialismo em voga no mundo.

Saliente-se, por oportuno, que o Keynesianismo não teve sucesso, ou pelo menos foi muito mitigado, na América Latina, notadamente em nosso país. Com efeito, muito embora a nossa Constituição de 1988, tenha um perfil social democrata (expressão associada ao Estado de Bem-Estar Social), os direitos sociais nela previstos tem efetividade mínima na realidade social, ou seja, são pouco ou quase nada concretizados no meio social.

O período do forte Keynesianismo nos EUA e em outros países representou o chamado “30 anos dourados” do capitalismo, com grande prosperidade econômica e social para os países.

Pois bem. Como acima mencionado, os EUA tiveram que bancar a reconstrução de vários países no pós segunda guerra mundial, dentre eles os da Europa e Japão , contraindo, por isso mesmo, um grande déficit público

Assim, o Estado de Bem-Estar Social, não só nos EUA, Europa e outros países, começou a experimentar uma grande crise, devido a enormes  gastos e financiamentos necessários para custear as referidas medidas sociais. Acresce a isso as crises do petróleo dos anos 70. Ademais, ele deixou de ser favorável aos interesse da burguesia, que tinha que pagar altos impostos ao Estado e que via suas taxas de lucro  reduzirem expressivamente. De outro lado, a intensa luta dos operários para aumentarem os seus ganhos, inclusive salários, também serviu para solapar as estruturas do welfare state  e romper o acordo inicial entre patrões e empregados. Saliente-se, por oportuno, que o capital, com o advento do neoliberalismo, nem de longe pensa retornar plenamente ao welfare state. A fase atual talvez represente o estágio final de acumulação capitalista.

Não é demasia lembrar que  , durante os anos dourados do capitalismos, a economia era, de forma significativa, regrada pelo Estado. Nesse particular é imperioso lembrar do acordo de Bretton Woods, que tornou todas as economias do mundo presas ao padrão ouro – dólar e às regras do câmbio fixo.

Ensina o filósofo Paulo Giraldelli que a  solução para esses problemas foi unilateral, 1971. Partiu do presidente americano Richard Nixon, que desvinculou o dólar do ouro, de modo a tornar a moeda americana simplesmente fiduciária. Como consequência, as políticas social – democratas do Keynesianismo entraram em crise, dando lugar ao início do neoliberalismo.

O capital produtivo perde sua hegemonia para o capital fictício portador de juros .Passou–se, então, ao neoliberalismo, herdeiro do liberalismo clássico, que teve origem nos anos 70 e 80 do século passado, tendo, na política, como corifeus os governos de Ronald Regan, nos EUA, e Margaret Thatcher, na Inglaterra.

As citadas medidas de Richard Nixon ensejaram a desregulamentação dos mercados, que eram regidos, inclusive, pelo acordo de Bretoon Woods, favorecendo a grande circulação de capitais no mundo, sendo certo que o câmbio passou a ser flutuante.

O neoliberalismo, que é associada à ideia de capitalismo financeiro, tem como características fundamentais: As liberdades individuais e de mercado (o livre jogo de mercado seria capaz de resolver senão todos, quase todos os problemas sociais); a intervenção mínima do Estado na economia e no plano social; flexibilização no mundo do trabalho (restrição ou perda dos direitos dos trabalhadores), em prol da acumulação de capitais pelas elites dominantes; desregulação da economia; privatizações; contenção de gastos (ajuste fiscal, promovido nos países de periferia pelo FMI); captura dos políticos pela elite dominante, em detrimento da democracia; enfraquecimento dois sindicatos dos trabalhadores; fragilização do sistema de previdência social, inclusive com a introdução do sistema de capitalização, dentre outras.

Como consequências nefastas do neoliberalismo, que  ainda assolam o mundo todo, notadamente os países que tiveram um pífio Estado de Bem–Estar Social, como o Brasil,  temos a grande desigualdade social estrutural (um fosso abissal entre  ricos e pobres) e a grande degradação  ambiental, como ensina o professor Ladislau Dowbor, em sua obra a Era do Capital Improdutivo.

De fato, 1% das famílias do mundo têm mais patrimônio do que 99%. Pode–se dizer, em outras palavras, que oito indivíduos deteriam  a maior parte da riqueza no planeta, enquanto 800 milhões de pessoas passam fome.

De outra parte, inclusive em nome  e para preservar o valor das ações na bolsa, vários atentados são praticados contra o meio ambiente, como ocorre no Brasil atual, com desmatamento, queimadas, sacrifício dos indígenas, garimpo ilegal etc.

Embora o neoliberalismo e o capitalismo financeiro sejam senso comum no mundo, inclusive no Brasil,. é  de se lembrar que os países desenvolvidos já vêm estatizando vários serviços públicos antes entregues à inciativa privada, tais como coleta de lixo, saneamento básico, aqueles relacionados à moradia etc .Eles estão percebendo que a humanidade caminha progressivamente para o ocaso final com este regime sócio,político e econômico. 

No Brasil, desde FHC, passando pelos governos do PT, Temer e Bolsonaro, o neoliberalismo vem provocando profunda desigualdade social e danos ambientais, como mais recentemente acontece no Rio Grande do Sul.

Ademais, ele, o neoliberalismo, na contramão do que já vem acontecendo nos países de primeiro mundo, prioriza, notadamente nos países periféricos, o ajuste fiscal e as privatizações. O ajuste fiscal é um obstáculo a que se faça investimentos sociais e  na produção de bens e serviços, o mesmo não ocorrendo no pagamento dos estratosféricos juros da dívida pública interna. É sabido que o déficit primário, em qualquer lugar do mundo, é importante para fomentar o desenvolvimento. É importante sim gastar com racionalidade e equilíbrio. Já as privatizações tiveram seu auge no governo FHC, mas, à exceção dos governos do PT, prosseguiram nos governos Temer e Bolsonaro. Neste último, privatizou-se a Eletrobrás e tentou-se, a qualquer custo, o mesmo com a Petrobrás. Encabeçada pelo ministro Paulo Guedes, tentou-se , até mesmo, a medida de privatização do SUS, que, indiscutivelmente indispensável,  tanto contribuiu na pandemia, demonstrando a falácia da ideia neoliberal do estado mínimo. É sabido que as privatizações constituem, ao mais das vezes, um grande mal, notadamente porque dilapidam o patrimônio público, por preços vis, e ensejam prestações de serviços públicos caros e ineficientes. Agora, o , capital, na sua sanha de acumular infinitamente, objetiva privatizar tudo que puder, até mesmo o ar, a água , as praias, objeto do presente artigo, etc. Passemos agora ao tema de fundo do presente texto.

Com efeito, volvendo ao tema central do presente artigo, a PEC 3/22 prevê, em seu art. 1º e incisos, a transferência para particulares de terrenos de marinha, de propriedade da União e que são bens de uso comum do povo. Estados e também serão beneficiados também a União também preserva a propriedade sobre terrenos de preservação ambiental, afetados a serviços públicos e aqueles não ocupados. Os incisos III e IV do art. 1º da PECc, estabelecem, respectivamente , a transferência para aos particulares de terrenos de marinha   foreiros à União, desde que os ocupantes estejam nela inscritos até a publicação dessa emenda constitucional, bem assim a transferência para particulares de terrenos referentes a ocupantes não inscritos no departamento do patrimônio  da União. Como se vê, é uma porta larga para a exploração e especulação imobiliária pela iniciativa privada, em detrimento das comunidades locais, quilombolas, pescadores etc, e do meio ambiente que - segundo estudos levados a cabo por ambientalistas, inclusive alguns dos que participaram da referida audiência pública - será profundamente impactado. Essa PEC, se aprovada, poderá afetar aproximadamente 521 mil imóveis.

Segundo depoimento de um dos participantes da citada audiência pública, “a PEC favorece a ocupação desordenada , ameaçando os ecossistemas , tornando esses terrenos mais vulneráveis a eventos climáticos”.

Foram levantados, entre os debatedores do tema, argumentos prós e contra essa PEC. Os que são contra apresentam pífias e inconsistentes  alegações. Ela iria acabar com a insegurança jurídica dos ocupantes dessas áreas. Eles se vêm na condição de não poderem fazer investimentos nos terrenos de marinha porque não são de sua propriedade, estando sob a batuta e tutela da União. Além disso, eles deixariam de pagar foro, laudêmio etc em favor da União e, consequentemente, do povo brasileiro. De outro lado, a favor da PEC, esgrimem–se  os seguintes e inapeláveis argumentos: Ela sacrificará os interesses da comunidade local, tais como comerciantes, pescadores, etc, em prol da construção desmedida de empreendimentos imobiliários ,tais como hotéis, risorts etc, dando fácil curso à especulação imobiliária; ela, se aprovada , gerará sérios impactos ambientais no litoral brasileiro. Para evitar esses nefastos efeitos, melhor que tais terrenos possam ser fiscalizados pela União, sob os moldes atuais, vale dizer, como terrenos  de marinha, ou se faça alguns ajustes na legislação vigente, independentemente de uma PEC. De outro lado, os terrenos de marinha, sob o controle da União, são importantes para a soberania nacional e, como já se disse , para o equilíbrio ambiental, ressaltou na citada audiência pública, uma importante funcionária do governo, Carolina Gabas Stuchi. Ademais, a privatização das praias significam o desmonte do patrimônio público, sem a devida contraprestação. Acresce, ainda, o argumento incontornável de que, seguramente, o acesso às praias pelo povo em geral será cerceado pela inciativa privado ou, ao menos, poderão ser cobradas quantias não razoáveis para tanto. Os defensores da PEC argumentam  que isso não ocorrerá porque a lei 7.661/98 assegura o acesso de todos ás praias do litoral, eis que são bens de uso comum. Todavia, não precisa ser um expert em Direito para saber que a emenda constitucional é hierarquicamente superior à lei. Assim, de nada valerá tal diploma legal, se uma emenda constitucional dispuser em sentido contrário. Por fim, a PEC , se aprovada, provocará um caos administrativo, pois existem mais 3 milhões de imóveis não registrados ocupando essa faixa, segundo afirmado na audiência pública.

Ademais, se tal PEC for aprovada ela padecerá de vícios de inconstitucionalidade, que podem ser reconhecidos pelo STF. Com efeito, ela, ao permitir o acesso de apenas  algumas pessoas ás praias do litoral, ou fazê-lo cobrando preços não compatíveis com os ganhos de pessoas menso abastadas, esbarrará na violação ao princípio democrático e o  da igualdade, que são cláusulas pétreas, imutáveis por emendas constitucionais. Por outro lado, restará ferido o art. 225 da Constituição, que garante a todos, inclusive a gerações futuras, o direito a um meio ambiente saudável e equilibrado, que também é uma cláusula pétrea.

Por curiosidade, importa assinalar que o jogador de futebol Neymar Júnior , segundo a mídia, já está fazendo tratativas com poderosos grupos econômicos para exploração do litoral brasileiro. A expansão imobiliária visará tornar o litoral um Caribe brasileiro, como se o Caribe fosse coisa boa para os que não sejam ricos.

Como se vê essa PEC, na toada do capitalismo financeiro e do neoliberalismo, representa um inominável avanço do capital contra os interesses do povo e o meio ambiente. Mais uma vez, com essa privatização das praias, o que se busca é o acúmulo do capital em detrimento dos interesses da população.

Para concluir, é importante registrar a necessidade da sociedade civil organizada, de setores do Congresso Nacional, a mídia oficial e alternativa e etc, se mobilizarem para barrar essa nefasta PEC 3/22, que tantos prejuízos poderá causar ao nosso país.

Gustavo Hasselmann
Procurador do município de Salvador/BA. Graduado em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em Processo Civil e Direito Administrativo. Membro do IAB e do Instituto Brasileiro de Direito Administrativo.

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